quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

O Silêncio das Estrelas

Poeira de estrelas... Chão de estrelas... Estrelas de cinema...
Ora direis ouvir estrelas.
O brilho de uma bela estrela no céu noturno pode vir de um astro que nem existe mais. As distâncias cósmicas são tão gigantescas que, mesmo após desaparecer, a luz irradiada no último instante demora anos viajando até aqui. O firmamento pode estar coalhado de cadávares estelares, das mais diversas grandezas.
Associamos morte com escuridão, mas na relatividade do universo ela na verdade se representa também pela luminosidade. Talvez daí, intuitivamente, venha aquela inclinação poética de explicarmos às crianças, após a perda de um ente querido, que este agora virou uma estrela celeste. Tudo recheado de lirismo é menos doloroso. A partir dessa miscelânea de ciência e sentimentalismo as enxergamos sob uma nova ótica, onde nada soa definitivo.
Mas como ouvir as estrelas? Se a luz percorre durante anos um trajeto longínqüo, o que dizer do som? A existência, de tão complexa, oferece respostas simples. O problema de escutá-las não é delas e sim nosso. Além disso, muito mais orações subiram da terra rumo aos céus, do que vice-e-versa. Uma plêiade de súplicas, de pedidos, de dores procurando bálsamos. Séculos e milênios de angústias, dúvidas e tormentos travestidos de componentes da condição humana.
A ideologia, a política, a religião, a guerra, a ambição, a inveja, todos os assuntos que nos exigem total atenção ao preço absurdo da serenidade e felicidade pessoais. Imagine o acúmulo disso se deslocando célere pelo éter, alcançando nebulosas ou espirais astrais. Os gemidos e gritos, as dores e lágrimas, todo legado que fomos capazes de transmitir do nascimento ao estertor.
Somos nós que matamos as estrelas com nosso desespero. As ensurdecemos e depois as consumimos inteiramente. Elas não respondem empenhadas que estão na sua luta pela sobrevivência. Sequer permitimos que descansem em paz. O silêncio que segue ao caos é involuntário, apenas a lei natural de causa e efeito.
Assim, não digas ouvir estrelas.
Não há mais nada lá em cima para nos socorrer ou escutar.

sábado, 23 de fevereiro de 2008

A Brincadeira (Conto)

Fora na primavera passada que Ravshi morrera.
As imagens ainda permaneciam nítidas: a tez cor de cal, o traje mortuário branco, um certo aroma indefinível produto da queima de velas, lírios espalhados e lágrimas nos lenços. A transparência, porém, não se revelava apenas nos restos mortais, nos apetrechos fúnebres ou na dor dos que o homenagearam na derradeira jornada. O próprio céu, de portas abertas para alma tão boa, mostrara-se cristalino, de um azul imaculado, puro como a água.
Na última primavera Ravshi partira, não havia dúvida. Depois se seguiram Amashi, Lebthi, Kiroshi e Hanara. Uma longa seqüência de perdas e cerimônias, onde nunca a sensação de estar vivo serviu de consolo. Todos tinham algo especial. Um modo de justificar sua presença no mundo, uma forma de conferir sentido a vida que os tornava especiais, únicos.
Amashi tinha sido famoso por seu amor incondicional aos livros. Pela vasta coleção de volumes e pergaminhos, alguns em linguagem obscura, desconhecida. Tratava-os como um verdadeiro tesouro, não importava a procedência. Zelo parecido ao do lacônico Lebthi com suas técnicas de jardinagem, esmero em podar as ramas e cuidado ao extirpar ervas daninhas. Seu jardim era um ponto de visitação. O próprio Kiroshi muitas vezes buscou inspiração para suas pinturas através das alamedas dele. Registrou numa série de telas uma beleza que, sob suas tintas, ganhava contornos inusitados, cores fosforescentes e sombras mais do que convidativas. Como dizia Hanara, usualmente prolífica em idéias, ambos sempre se misturavam, sem um anular ao outro. Ela sabia melhor do que ninguém colocar as coisas no seu devido lugar, com frases que todos podiam compreender.
Nosso grupo se completava com mais duas pessoas. Mas elas não tinham talento algum, nada de especial. Com certeza, nenhuma herança crucial para legar à posteridade. Mesmo assim foram acolhidas pelos outros quatro. Porque se Amashi possuía livros, Lebthi cuidava de flores, Kiroshi embelezava imagens e Hanara produzia idéias, eu dispunha apenas de meu amor por Tallara. E ela por mim. Mas isso, ao espírito sensível dos amigos, parecia compensar a arte, o panteísmo e a erudição ausentes. E talvez por essa total incapacidade de realização, elaboração e método tenhamos sido até então poupados, deixados por último pelos espectros.
-- Adrishi, está acordado?
Os olhos negros e despertos de Tallara procuravam os meus.
-- Estou, querida – murmurei, me aproximando.
-- Eles virão hoje? – perguntou, assustada.
-- Não sei. Perdi a noção do tempo aqui. Não há como riscar as paredes, contar os dias. Eles fazem de propósito.
-- Imagino como Lebthi sofreu. Ele amava a liberdade.
-- Todos amam a liberdade a seu modo. Todos sofreram.
Ela me abraçou e deitou a cabeça em meu peito.
-- Por que precisa ser assim, Adrishi?
-- Apesar do que pensa, não tenho todas as respostas – disse, sorrindo, enquanto acariciava seus vastos cabelos também negros.
Tallara devolveu o sorriso me encarando bem de perto.
-- Pode ser que não. Mas no dia que me pediu para segui-lo, bem que parecia saber tudo.
-- Ali foi diferente. Muito diferente.
-- Diz isso agora, querido. Na época foi bastante sedutor...
O sorriso tornou-se travesso, enquanto mergulhava no passado.
-- Lembra-se quando todos passamos férias em Maryla, querido? Nosso grupo nunca se divertiu tanto. Até os mais sérios trocaram o trabalho pelo prazer. Hanara me disse que lá, em meio aos jogos e devaneios, se sentiu revigorada para ao retornar produzir melhor do que nunca. Lebthi caminhava grandes distâncias e encontrava, naturalmente, novas mudas e espécies, deixando-as sossegadas. Amashi escrevia com um graveto, na areia úmida, poemas que o mar apagava. Com argila, Kiroshi pintou pedras e rochedos que abandonou à própria sorte. E nós, deitados na praia, procurando conchas, a mais colorida, a maior, a menor. Simplesmente uma brincadeira inofensiva, como tantas que fazíamos. Mas difíceis de apagar, de esquecer...
A dormência vinha aumentando recentemente. Começara leve na ponta dos dedos dos pés. Vinha subindo, se espalhando, obrigando-nos a ficar sentados, imobilizados. Sentíamos a presença dos espectros nos minando como uma praga, a vencer de início as resistências físicas e prosseguindo sua sanha destruidora. O ardor parecia queimar nervos e músculos, invadir os órgãos e navegar na corrente sanguínea. A prostração nos deixava cada vez mais convictos do fim próximo, apesar de mantermos silêncio sobre o assunto, colocando-nos em busca do amparo mútuo. Nada diverso do que fizemos desde sempre.
-- Sabe o que dizem, Adrishi? Que Lebthi em pessoa rasgou seus livros no instante derradeiro... Que Hanara renegou suas crenças, gritou a quem pudesse ouvir que nada do que defendera valia a pena.
Permaneci calado. Sabia onde pretendia chegar.
-- Ninguém sabe com certeza, querida.
-- Mas não acha que tem lógica?
-- Se existisse lógica estaríamos aqui, condenados ao inferno?
Ela se agarrou ainda mais em mim, agora enterrando o rosto em meu ombro. O cárcere a deixara mais frágil, fisionomia macilenta, os ossos bem saltados, cabelos desgrenhados. Apesar disso, sua chama interior nunca brilhara tanto, debatendo-se contra a provação. Nunca a vira tão bela.
-- Ravshi gostava de pintar, Adrishi?
-- Não, esse era Kiroshi – respondi, num esforço. – Ravshi tinha predileção pela música. Tocou na festa quando decidimos ficar juntos.
O sobressalto dela me despertou do torpor.
-- Como pude me esquecer disso tão rápido? A hora está vindo, Adrishi. Vamos ser sugados no que temos de melhor. Irão tomar nossas lembranças, o que possuímos e somos. Aconteceu assim com eles, será igual conosco. Logo não teremos noção do que representamos nas nossas vidas.
-- Não acredito nisso, querida. Ninguém tem essa capacidade.
-- Não são pessoas, trata-se de espectros. Seres etéreos que nos contaminam por ordem dos que controlam tudo.
Ela se levantou desesperada.
-- Na hora final, Adrishi, além de desconhecê-lo, serei capaz de agredi-lo. Partiremos em meio ao ódio, o amor desaparecerá de nós. É o jeito de nos punirem por sermos diferentes, tendo ousado sonhar.
-- Se isso tudo for verdade, melhor poupar as energias. Ficarmos focados nas lembranças. Preservar nossos sentimentos acima de tudo.
-- Você é tão ingênuo! Não somos nada. Eles eram superiores a nós, tinham um legado às gerações futuras. Um trabalho para conectá-los com o amanhã. Um senso de eternidade. Apesar disso sucumbiram, foram abatidos.
-- Não nos tem em grande conta, Tallara...
-- Querido – disse, segurando meu rosto entre as mãos – Temos apenas um ao outro, jamais foi diferente.
Ao longe havia um som de tempestade. Apenas o barulho distante nos alcançava, não existiam ali janelas ou frestas para o exterior. Ao ver o desespero estampado na face dela, a maneira como arregalava os olhos, me indaguei se o medo de quem amava, o contato frio do metal da parede e o ruído da tormenta seriam as sensações finais que levaria deste mundo. Além da possibilidade de agredir a única pessoa que me despertara para a vida.
Tallara começou a tossir, a torcer o corpo à procura de um apoio inexistente, enquanto a respiração tornava-se comprometida por uma presença invisível, uma influência maléfica. Passara do estágio da dormência para as mesmas sensações agudas que eu procurava manter sob controle com esforço sobre-humano, percebendo que a luta aos poucos vinha sendo perdida. O ar já grudava nos pulmões, não achando o caminho de volta.
-- Adrishi... Temos de fazer alguma coisa, criar algo nosso. Mas que não seja maculado pelos espectros. Canalizar nosso amor, nossa fonte de energia, numa forma que não estejam habituados... Como em outra de nossas velhas brincadeiras... Como numa dança! A mais louca e deliciosa das danças!
Para meu espanto, antes que discordasse, ela se ergueu com uma força que não devia dispor mais. Começou a rodopiar loucamente, numa coreografia frenética, acompanhada pela música da chuva, pelos acordes dos trovões. Ela me estendia os braços, me chamando para acompanhá-la, de um jeito despojado, sensual, convidativo. Achei aquela atitude uma arrematada tolice, um equívoco completo. Busquei na concentração o antídoto contra o câncer que fazia a investida decisiva. A saída era direcionar tudo para o que desejavam de nós, formando uma barreira, uma couraça.
Mas quando Ravshi morrera mesmo? Amashi gostara afinal de livros ou de flores? Conhecera algum Kiroshi? Havia mais alguém no grupo? O nome de Tallara surgiu em minha mente como um último ponto de apoio. Sim, logo ela, que enlouquecera. A mulher que sempre amei e me amou, em atitudes sérias ou brincadeiras. T-a-l-l-a-r-a... T-a-l-l-a... T-a-l...
Foi por puro instinto que, antes de me atirar violentamente sobre ela, aceitei seu convite, segurei suas mãos e passei a acompanhá-la naquela dança patética e maravilhosa. Os espectros agora nos cercavam, mas não conseguiam penetrar nossa essência. Nos sugavam a existência embora impedidos de arrancar as lembranças. E quanto mais nos entregávamos na loucura do movimento, mais tudo parecia pertencer somente aos dois. Os companheiros de outrora nos saudavam novamente, as brincadeiras enfim prosseguiam, o sentimento comum ficava imortalizado, transcendia às fronteiras terrenas.
Assim, horas depois, quando a tempestade cessara e nossos corpos exaustos, entrelaçados e sem vida se acolhiam mutuamente, não havia traço de dor ou de brutalidade. O silêncio trouxera paz e serenidade ao ambiente, nos velando sem apetrechos fúnebres ou mesmo a presença de amigos saudosos. No entanto, as imagens nunca estiveram tão nítidas. E um sorriso pleno enfeitava nossos lábios descorados, registrando a mesma transparência da primavera passada, quando Ravshi morrera.
Amashi adorava livros, Lebthi cultivava flores, Kiroshi pintava quadros e Hanara concebia idéias. Eu e Tallara tínhamos apenas o nosso amor, que transformamos numa simples brincadeira.
Que ela valesse por toda uma eternidade.

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2008

Desatando os Nós

Ao iniciar seu avanço fulminante pelos inexplorados rincões da Ásia, Alexandre Magno, o jovem monarca da Macedônia que arrasara inúmeros reinos e anexara vastos territórios ao seu Império, conheceu a lenda do nó górdio. Tratava-se de um colossal, robusto e intrincado novelo, composto de uma infinitude de nós e laços, complexamente entremeados, sem princípio ou fim. Dizia a secular tradição que quem conseguisse desatá-lo inteiramente dominaria todo o continente. Inúmeros haviam tentado desembaraçar aquele labirinto de cordames e tinham fracassado. Sem perceber uma solução usual para o desafio, o intrépido conquistador, que de Colin Farrell não tinha nada, sacou a espada e despedaçou-o num único golpe. Depois, partiu rumo ao cumprimento da profecia, acumulando novas glórias e riquezas.
Algumas relações são capazes de produzirem nós górdios em nossas vidas. Não percebemos bem como elas começaram, muito menos onde vão terminar. Ficamos apenas tateando, procurando uma ponta, um fio solto, tentando desembaraçar o labirinto emocional que geraram. Nos falta talvez uma arma, o instrumento que nos permita agir como Alexandre e destroçar tudo aquilo subitamente, evitando vagar pelo limbo sem eira nem beira.
No entanto, mais importante do que refletir sobre as conseqüências é trabalhar as causas. Os fatores que tornaram um envolvimento sentimental uma corrida contra o tempo, um passeio sem volta. As circunstâncias que transformam as cordas do coração numa confusa rede de sensações, nos levando a dedilhar uma harpa ignorando os principais acordes da partitura. Isso vale tanto no romance quanto na amizade, no âmbito familiar ou entre colegas de trabalho.
Ao perambularmos como Édipo, cegos e sem destino, percebemos que não existe qualquer inocência na condução dos diversos relacionamentos cotidianos. Os meios e os fins são peças díspares de um quebra-cabeça. Carregamos o volumoso nó górdio na esperança que desmanche naturalmente seus impasses e suas pendências. Mas quem nos deu esse presente de grego, a exemplo do Cavalo de Tróia, encarou tudo de forma diferente, deixou que camada se acumulasse sobre camada, nó se confundisse com nó, partindo como se nada houvesse ocorrido ou tudo fosse fruto dos caminhos habituais do exercício de viver e aprender.
Talvez você não soubesse que a Ásia antiga estava assim tão perto. Que lendas orientais fizessem parte do seu dia-a-dia. Que os fardos que se empilham no seu peito lhe foram dados à revelia. Os mais céticos irão sempre dizer que “nada nos é imposto, que no fundo permitimos manipularem nosso amor próprio e também nossas vãs esperanças”. Eles nunca tentaram desatar coisa alguma, pois jamais abriram as portas da confiança plena, da entrega completa ou incondicional. E devem ter sorrrido interiormente quando viram o intrépido Alexandre, o invencível guerreiro, se aproximar do nó górdio, qual portador de outro insucesso anunciado, nova vítima de uma decepção recorrente.
Mas como Alexandre não era mesmo Colin Farrell, e a vida também é feita de grandes surpresas, devem estar com fiapos de barbante lhes arranhando os olhos até hoje. Porque os que nasceram somente para criar impasses, cedo ou tarde deixarão de enxergar o horizonte, desvirtuando-se nas vias da indiferença ou na pretensão de saber o que convém melhor aos semelhantes. Tais histórias fabricadas não encontram contrapartida alguma na realidade.
Afinal, nós podemos nada ter em comum com Alexandre, o Grande, porém muito menos somos Colin Farrell.

domingo, 10 de fevereiro de 2008

Por Pochoca (E Por Você)

Somos levados a acreditar que dentro de cada ser humano brilha uma centelha divina. Cada vez mais tenho a impressão que tal certeza não se encontra em nós. Porém ela está na natureza em geral e nos animais em particular.
O mundo parece ser pródigo em gestos absurdos e incompreensíveis. A herança da inocência a cada dia é dilapidada, solapada no seu brilho e na sua essência. Parece que o preço alto da ambição e da desumanidade sempre recai mais em criaturas inocentes, frágeis ou indefesas. Crianças, idosos e animais são a bucha ideal do canhão. E cada agressão dessas, isoladamente, pode ser imperceptível, mas traz arranhões profundos ao equilíbrio e harmonia, aos poucos escondendo a imagem suprema da beleza e da serenidade.
Quantas coisas horríveis desconhecemos. Quantos fatos tenebrosos desvanecem sob o desvio confortável do olhar. Quanta prepotência desfila cheia de empáfia no cotidiano, embotando os sentidos. Contudo a ignorância, a fuga e a cegueira não impedem que haja o confronto com o caos, a barbárie e a violência. O girar equivocado da roleta cruel e mortífera nos induz a duvidar do amor, única saída que dispomos para revertê-la. E cujos resultados nos mergulham em sofrimento e dor.
Nunca vi de perto uma cadela bassê chamada Pochoca, o que nada diminui o choque. Conheci-a apenas através de fotografias e da descrição afetuosa de sua dona. Não vai estar nos jornais o que aconteceu com ela, assim como o que ocorre com tantos. No entanto, na manchete pessoal de alguém que a ama, isso vai estar gravado, e por algum tempo permanecer, em letras garrafais, mesmo que borradas pelas lágrimas. Não por mera casualidade do destino. Mas através do desejo consciente de alguns de machucar, de ferir, de obter os fins sem observar os meios.
Acredito que mesmo os animais, enquanto criaturas de Deus, tenham um lugar especial após a morte, onde reencontrem ou esperem seus entes queridos. Claro que isso não serve de consolo imediato aos que os criaram com tamanho cuidado, recebendo e dando afeto. Afinal, o que dizer também a uma mãe que viu seu filho sacrificado, um marido que enviuvou pela esposa alvejada ou para alguém que perdeu envenenada sua cachorrinha de estimação?
E se você acha tais comparações desproporcionais, um exagero, talvez seja hora de parar e refletir. A roleta deve estar girando na contramão de sua compaixão e ainda não percebeu, ao camuflar viciosamente sua fagulha vital nestes caminhos tortos. Entretanto, sempre resta a oportunidade de freá-la e alterar o rumo.
Assim, em última instância, a agressão injustificável que levou embora Pochoca enfim não será de toda inútil, resgatando um mínimo de esperança e bondade.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Ängst In Varekai

Aridez de sentimentos.
Existe uma espiral, em algum lugar, que suga tudo e todos. Pode vê-la num céu enevoado ou no quebra-mar. No crepitar do fogo ou no torrão dos canteiros. Cada um possui sua cota de mistificação. Ao juntar os cacos do espelho, não ilumine os despojos sob a luz de velas, não se deixe refletir numa tela cheia de fissuras, de veios. Talvez perceba que ali está sua verdadeira imagem. Ou então se permita a experiência.
Círculos que flutuam são como pálidas estrelas sem pontas. Alguém aparou suas setas, as indicações do espaço infinito. O caminho das nebulosas, o mapa das galáxias. O cheiro de amônia parece emergir de pensamentos que não encontraram os tons necessários. O rubor alaranjado do crepúsculo, o frescor da noite caindo, trazem perfume e cor aos sonhos esboçados. Contudo a madrugada, embora não esteja distante, jamais será alcançada. Não a partir daquele abraço mágico, que fazia o tempo voar e a escuridão comparecer igual um convidado silencioso.
Os corvos planam sobre um ensolarado campo de girassóis. À esquerda, o horizonte resumido num traço reto. À direita, apenas dissertações de figuras difusas na paisagem. Os melhores anos de nossas vidas, na perspectiva do olhar vago, da paleta ressequida e dos pincéis endurecidos. Os vastos campos de batalha da memória ergueram uma bandeira branca, ansiosos pela anistia que nunca vem liberar a angústia. O que resta é anotar datas, saber o que cada dia representa, o consolo do senso comum.
O contato com as paredes se mostra tão difícil quanto o equilíbrio sobre o chão. O último toque de um mundo em total decomposição. O olhar resoluto que atravessa o teto carregando aquilo que restou, enfim se mescla à espiral que suga tudo e todos. Os quatro elementos, água, ar, fogo e terra, agora dão boas vindas ao que simbolizou uma vida. Se as lágrimas ficaram para trás, derramadas por nós ou pelos que nos querem bem, pouco importa. Existem também os que apenas ouviram falar e se comovem, mesmo que por uma fração de segundo.
Todo esse pranto, ao menos, irá umedecer debilmente a aridez dos sentimentos.

terça-feira, 5 de fevereiro de 2008

Um Texto Sob Encomenda

Certamente desnorteado pelos dias de folia, um conhecido me lançou um desafio: elaborar um texto sob encomenda.
Claro que não receberia coisa alguma por isso, apenas o prazer de superar uma meta. O tema, lógico, seria proposto por ele. Nessa hora eu devia ter caído fora. Esse tipo de convite é tão ardiloso quanto uma festa infantil no final de semana. Ou comer aquele bolinho de bacalhau maravilhoso, mas que só existe num bairro distante, totalmente fora de mão. No entanto, empolgado com a algazarra da Banda de Ipanema ao entardecer, concordei. E agora preciso escrever algo que relacione sundae e Carnaval.
Na verdade, sempre que olhei para uma taça requintada de sundae me lembrei de uma alegoria de escola de samba. Aquele sorvete todo empinado, cheio de calda, biscoito e castanhas, quais plumas, adereços e paetês, é muito mais do que carnavalesco. Um autêntico abre-alas dos quilos excessivos, uma volúpia momesca para a gordura acumulada. Ou será que a cereja equilibrada no topo não equivale aos destaques alegóricos, como as desnudas célebres ou anônimas que povoam acintosamente a avenida? As cores da guloseima transcendem o azul e branco, o verde e rosa.
Um sundae então pode ser uma Portela aberta ao colesterol, mesmo com o sabor cítrico da Mangueira. Adocicado ao excesso, somente não comporta o gosto de um Salgueiro. Porém a Mocidade adora se regalar com ele. Mesmo não tendo a leveza do Beija-Flor, provoca um Viradouro também na gula da Velha Guarda em geral. Dizem que até a nobreza, representada no Marquês de Sapucaí, não conseguia resistir.
E o Carnaval? Se parece em alguma coisa com um sundae? A recíproca será verdadeira?
Acho realmente que sim. E concluo isso encerrando o desafio. Porque o meu amigo, que sugeriu esse texto de encomenda, parece ter esquecido do assunto. Está na frente da televisão devorando o desfile. Vidrado no alto das alegorias, se lambuzando de desejo, comendo com os olhos as castanhas sem casca das modelos e passistas, lambendo a calda de seu suor resplandecente, louco para molhar nelas seu biscoito. Ah, sem esquecer do principal: atacar a cereja rubra de cada uma!
Ao menos, numa diferença, dizem que serve para queimar sob forma de prazer as calorias...