sábado, 3 de outubro de 2009

As Cartas de Todos Nós - 2


Paris, 3 de outubro de 1922

(...)

...Oh, pretendia sugerir a você que pedisse as Memórias de Yeats para uma resenha. Acho que serão publicadas neste outono. Acredito que você as julgaria muito interessantes. Ele não é uma pessoa "simpática", ao que sei, mas é desses homens que refletem seu tempo. Homens assim têm um fascínio para mim. Para você não?

Queria que vivêssemos mais perto um do outro. Gostaria de falar mais com você. Mas há tempo. Quando esta selva de circunstâncias clarear um pouco, ficaremos mais livres para desfrutar a companhia um do outro. Agora não é o momento. Fale-me o que puder sobre você. Nem mesmo você pode desejar sua felicidade mais do que eu. Não esqueça que os dragões são apenas guardiães de tesouros e que se luta contra eles pelo que eles guardam - e não por eles mesmos...


Katherine Mansfield


Katherine Mansfield... A única escritora ou, melhor dizendo, a “única escrita feminina” de quem Virginia Woolf teve inveja. A morte lhe ceifou cedo, aos 34 anos, de turbeculose. Era uma contista magistral. Uma artista concisa, simples e de prosa impecável. Além disso, existiram seu diário e as inúmeras cartas, provas emocionantes e sensíveis de tenacidade, como esta que enviou ao marido John Middleton Murry, do retiro na França, onde passou seus últimos anos lutando contra a doença.

Katherine, em seu estilo cristalino, era como a luz penetrando na água. O fenômeno da refração a fazia ser indireta sem ser ambígüa. Esta carta é uma das mais belas declarações de amor que conheço. Ela não utiliza essa palavra uma única vez, começa tratando de assuntos literários apenas para depois esculpir sentimentos em estado puro.

Um desvio para tornar mais nítido o que sentia. O despiste para realçar o que queria dizer. Como grande autora, Katherine sabia que, às vezes, nos faltam palavras ou que estas não são suficientes para representar algo. E que a melhor maneira de confirmar alguma coisa é agir como um raio luminoso batendo numa superfície líquida e plácida: um ligeiro desvio visando reconhecer melhor aquilo que já sabemos.

Atalhos assim são capazes de iluminar qualquer ser ferido ou enterrado, amenizando dores e resgatando-o do lodo, mostrando-lhe que os ferimentos de outrora não permanecem necessariamente, reconduzindo-o à tona e à vida plena.

As Cartas de Todos Nós - 1


Berna, 02 de janeiro de 1947


Querida,

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e de outras pessoas. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou a falta de caráter, um mês antes de irmos ao Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta, eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar.

Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco a minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

(...)

Tua,

Clarice


"Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma."

Um trecho de outra carta da autora Clarice Lispector, escrita também no ano de 1947, sobre sua inadaptação à vida na Europa, longe da família e dos amigos, acompanhando os passos do marido diplomata.

Quando o Dr. Victor Frankenstein concebeu sua criatura, que seria o epítemo do ser humano perfeito, o fez através da aglutinação de corpos e membros de vários outros.

Ao juntar pedaços alheios para criar um indivíduo acabou gerando uma monstruosidade, não o ideal sonhado. A criatura era muitos e não era ninguém, funcionava como a resultante do melhor braço de A, o mais saudável tronco de B, as pernas fortes de C, mas nunca era "ele". A tentativa de construir um modelo sem defeitos conduziu à aberração. Ato falho, o corpo de retalhos foi arrematado por um cérebro doentio, vindo de um psicopata.

Os mitos ou criações sempre parecem antever verdades antes da ciência. Ao nos espelharmos em ideais, ao negarmos os nossos grandes ou pequenos defeitos, adoecemos, nos tornamos uma monstruosidade, um pastiche de nós mesmos. Mas, como a Criatura apesar de tudo pareceu superar suas cicatrizes e costuras, mostrando laivos de humanidade, fica a esperança de que nada é irremediável, apesar das aparências e circunstâncias.

Clarice, numa carta, começou a construir esta ponte há 60 anos. Ainda é seguro atravessá-la.

terça-feira, 15 de setembro de 2009

A Casa dos Tatuís (Infantil)



A Segunda Aventura de Mina e Seus Amiguinhos


- Puxa! Nunca imaginei que fosse tão fácil fazer os chapéus de cone! – comentou Mina, impressionada com a engenhosidade dos pequenos tatuís que carregava na palma da mão.

Os três encabularam, ficando com um tom rosado na pele lustrosa e reluzente. Ao mesmo tempo, não conseguiam esconder a satisfação de impressionarem alguém como Mina. A cada minuto eles gostavam mais e mais da menina que iria ajudá-los a resolver os graves problemas da Tatuilândia.

- Ninguém sabe quem fez o primeiro chapéu de cone, Mina. Mas os avós explicam aos filhos, que contam aos netos e assim por diante. Desde sempre nosso reino é o maior fabricante de chatuís que existe!
- Chatuís? O que é isso? – espantou-se Mina.
- É o nome que damos aos chapéus de cone – esclareceu Zefi. – Nossa família é fabricante de chatuís há muitas gerações. Tuti e Dingo são considerados os dois melhores chatuizeiros que surgiram nos últimos anos!

Os caçulinhas se encolheram, mortos de vergonha com o elogio do irmão mais velho. Mina achou muito fofinho aquilo e fez carinho neles com a ponta dos dedos.
Passava do meio-dia e o sol brilhava bastante forte. Mina tomava todo cuidado para proteger seus novos amiguinhos de uma insolação, pois viviam embaixo da terra e próximos do mar. Apesar dos chatuís ajudarem, estavam habituados com muito frescor e pouca claridade ao redor. Assim levantava a ponta da sua camiseta por cima deles, como se fosse uma barraca de praia. E utilizava sua garrafinha de água para borrifá-los e diminuir o calor.
Quando chegaram na casa onde morava com os pais e a avó, Mina colocou-os no murinho. Era uma rua tranquila e arborizada, sem muito movimento de carros, que permitia às crianças brincarem soltas e seguras. Na frente do terreno da casa existia um enorme gramado, com muitas árvores, algumas frondosas e outras cheias de deliciosos frutos. Um sistema de irrigação molhava as plantas naquele momento, acabando com sua sede e deixando o ar geladinho. Havia bastante sombra e soprava um ventinho bem gostoso. As folhas balançavam de modo suave e roçavam nos galhos fazendo um som engraçado.

- Parece barulhinho de sucrilhos na boca, né? – disse Mina, percebendo que os tatuís não tinham a menor idéia do que se tratava.

Ela correu até a cozinha, abriu a caixa de cereais e apanhou três sucrilhos. Eles deviam estar famintos, embora não soubesse qual o horário das refeições na distante Tatuilândia. Mas era um alimento nutritivo e saudável, que faria bem aos novos amiguinhos. Não podiam passar tanto tempo sem comer alguma coisa. Pegou também alguns para ela, pois sua barriga já estava roncando.
Zefi, Tuti e Dingo olharam curiosos para aquilo. Nunca tinham visto nada parecido antes. Para o tamanho deles, cada um valia uma refeição completa. Aos poucos, meio sem jeito, seguraram o sucrilho como podiam nas suas patinhas, lambendo de leve e achando o gostinho do açúcar delicioso. Era impressionante o modo que logo descobriram de agarrar facilmente aquela guloseima desconhecida.
Ela observava encantada eles roendo e mordiscando os sucrilhos. Dingo, apesar de ser o menorzinho, devorava o seu mais rápido do que os outros. Mas todos soltavam várias exclamações de felicidade, aprovando o sabor daquela estranha e maravilhosa comidinha. Para surpresa de Mina, quando terminaram pediram um repeteco e mais três sucrilhos sumiram, engolidos pelos simpáticos tatuís.

- O barulho é mesmo igualzinho ao das folhas! – confirmou o trio, achando muita graça naquilo. – Pena que não tenha sucrilhos na Tatuilândia!
- Zefi... Eu estava pensando...
- No que, Mina?
- Os tatuís são mais parecidos com gente do que muitos imaginam... Vocês falam, sabem fazer coisas e gostam de sucrilhos... A diferença é que são bem mais inteligentes... Porque se preocupam em cuidar da natureza.

Mina ficou triste e uma lágrima começou a escorrer pelo seu rosto. Os tatuizinhos, de coração partido e aflitos, limparam os farelos da boca e começaram a subir pelo seu braço, tentando fazer cócegas para que ela sorrisse. Zefi, o mais velho, procurou animá-la com receio que Tuti e Dingo logo começassem a chorar.

- Nós vamos dar um jeito nisso, Mina! Lembra do nosso plano de explicar aos adultos a necessidade de manter as praias, os rios e as florestas limpas? Foi uma idéia sua! Vai tudo dar certo! E nunca mais iremos nos separar!

Um sorriso mágico iluminou o rosto da menina, um traço belo e luminoso que era somente dela e encantava aos que a conheciam. Ela começou a concordar com a cabeça, recordando o que haviam combinado uma hora antes. Enquanto o sol se escondia atrás de uma nuvem, Mina irradiava toda a claridade do mundo através dos olhos doces e agora tranquilos.

- Vou fazer uma casinha para vocês aqui – afirmou Mina.
- Como assim? – perguntaram cheios de surpresa.
- Ora, tem muito espaço no nosso jardim! Naquele cantinho de terra perto das flores, basta deixar uma mangueira derramando água aos pouquinhos durante o dia. Coloco ainda uns tabletinhos de sal dentro do chuveirinho. Ela ficará molhada e salgada, como acontece na beirinha do mar. Será igualzinho ao lugar onde vivem e poderão passar mais tempo aqui, se enterrando nela quando sentirem vontade ou necessidade. O que acham? Querem ter uma linda casa de veraneio aqui, ao lado dos girassóis?
- Seus pais não ficarão zangados?
- Não! Eles são muito legais! E sabem que adoro bichinhos! Sempre permitem que eu traga para casa os que gosto. Além disso, se passarem mais tempo comigo, vamos poder começar a planejar hoje mesmo nossa campanha para conscientizar as pessoas da necessidade de conservarem as praias limpas. Concordam?
- Sim! – aceitaram felizes, correndo sem parar pelo bracinho de Mina.
- Vou colocar uma plaquinha ali dizendo: CASINHA DOS TATUÍS! Que tal a gente comemorar com uma nova rodada de sucrilhos?
- Viva! Três para cada um! – gritaram os tatuizinhos, agora os maiores fãs de sucrilhos, atirando os chatuís para o alto.
- Nossa! – riu Mina com prazer. – Melhor trazer logo a caixa...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Mina e os Tatuís (Infantil)


Quando Mina colocou os pés descalços na areia, correndo até à beira-mar, sabia que algo incrível iria acontecer naquela manhã. A beleza do sol, do céu e da praia a encantavam, fazendo-a sorrir mais do que nunca. Não havia outro lugar que desejasse estar, ainda mais em dias tão ensolarados assim. Chegava sempre com essa impressão de aventura, de novidade, ansiosa pelas surpresas mágicas que a natureza pudesse oferecer.

Mas antes de continuar nossa história vamos ter de explicar algumas coisas. Na verdade, ela não se chama Mina. Esse nome lhe foi dado pelas criaturinhas que vai encontrar daqui a pouco. Sua idade também é um mistério, melhor que você decida isso. Agora pode considerá-la uma linda menina, bem pequena e esperta. Quando tiver de ir embora será mais velha, sabendo atravessar a rua e voltar sozinha para casa. Cada vez de uma maneira diferente, de acordo com a situação do momento. Talvez por isso tenha chamado a atenção dos que vivem embaixo da terra, porque eles procuram apenas pessoas especiais, como ela e você.

Mina foi correndo para perto do mar. Deixou a água cobrir seus pés, sentindo todo aquele frescor delicioso das ondinhas quebradas. Agachou-se e começou a seguir na areia molhada aqueles furinhos que apareciam aos montes quando a maré recuava. Começou a cavar em volta deles e não demorou muito a se deparar com alguns pequenos tatuís, aqueles bichinhos pequeninos, adoráveis e cheios de patinhas que vivem enterrados, colocando-os com cuidado na palma da mão.

Eles não demonstraram ter medo dela. Começaram a passear pelos seus dedos, com um deles se aventurando pelo seu pulso. Ficou ainda mais contente quando percebeu que os três usavam um chapeuzinho de cone, sem saber que era a última moda na Tatuilândia, terra natal deles.

-- Que bom que veio nos visitar, Mina! – disse o maiorzinho, falando bem baixinho. – Adoramos receber visitas.
-- Meu nome não é Mina... Vocês sabem falar? – espantou-se.
-- Claro! – disse o tatuí do meio. – Tanto quanto vocês sabem. Mas nunca prestam atenção na gente. E seus nomes para nós são diferentes. O seu é Mina.
-- O meu é Dingo! – disse o menorzinho, enquanto se equilibrava no dedo indicador dela.
-- Eu sou o Tuti – apresentou-se o do meio, fazendo cócegas ao correr de um lado para outro da mãozinha em concha.
-- E todos me chamam Zefi – contou o maiorzinho, demonstrando ser corajoso ao subir pelo braço da menina.

Mina sorria encantanda para os novos amiguinhos. Achava graça do modo como eles se equilibravam sem dificuldade na sua pele, na ponta das suas unhas, passeando sem qualquer cerimônia. Porém o que a deixava mais intrigada era sua capacidade de falar, de entender e ser entendida por eles. Imaginando que de hoje em diante poderia conversar normalmente com qualquer animalzinho que encontrasse, ela tratou de aproximar deles o rosto, pois sua vozinha não era muito forte, sendo abafada pelo quebra-mar e a brisa.

-- Vou visitá-los sempre – disse Mina, com o olhar maravilhado. – Ah, como eu queria um chapeuzinho de cone também!
-- São chiques, né? – comentaram os três ao mesmo tempo, cheios de si. – A última moda na Tatuilândia. Eles são feitos com restos de conchas e coloridos com algas, usando bigode de peixe como elástico – explicaram.
-- Muito lindos! Quero ir no lugar onde moram nas próximas férias. Quem sabe consigo um para mim?
-- Vamos adorar que nos visite – garantiu Zefi. – Mas está cada vez mais difícil arranjar um chapeuzinho de cone. A Tatuilândia já foi o melhor lugar do mundo para se viver. Tudo mudou de uns tempos para cá. Nem comida se consegue achar como antes.
-- Por que? – preocupou-se Mina.
-- Porque nem todos os seres humanos são do seu jeito, Mina. A maioria sequer repara em nós, não escuta nossos gritos. Eles sujam a praia e poluem as águas, tornam a vida impossível para todos os seres vivos. Se continuar assim a Tatuilândia e todos os demais reinos animais vão desaparecer.

Mina ficou com os olhos úmidos. Mergulhou com cuidado seu braço na beirinha do mar, para refrescar um pouco os tatuís e lavá-los da areia, com medo que sua pele delicada ficasse arranhada.

-- Queremos ser visitados e ouvidos – explicou Zefi, enquanto sacudia as gotas de água do corpo. – Nós gostamos de gente e queremos também que gostem de nós. E nos tratem bem, sem sujar nossa casa - lamentou-se Tuti.
-- Temos chapéus de cone para todo mundo... – completou o miudinho Dingo, sem esconder sua tristeza. – Somente as crianças nos escutam ainda, gente grande não liga que a Tatuilândia esteja sumindo...

Mina soprou um bafo quentinho para ajudar a secá-los e lhes dar um pouco de conforto. Estava comovida com tudo que escutara, com a preocupação agora substituindo o encantamento inicial.

-- Vamos fazer assim, meus amiguinhos – gritou Mina, excitada com uma idéia. – Hoje vocês vão visitar a minha casa. Não fiquem com receio, depois os trago de volta à praia. Vou mostrá-los aos vizinhos, a todos os moradores daqui. Vão pode falar o que sentem e garanto que eles vão ouvir.

Zefi, Tuti e Dingo pularam de alegria, rolando felizes pela palma da mão, se revirando por todos os lados, sem o mínimo receio. Adoravam Mina e confiavam em tudo que ela dizia. Com sua ajuda, haveria outra vez esperança para o futuro da Tatuilândia. E para todos os reinos animais desta e de outras praias, além dos reinos dos rios, florestas e montanhas.

-- Hora de irmos então, tatuizinhos – disse Mina, ternamente. – E no caminho vocês vão me explicando como se faz um chapéu de cone desses. -- Muito fácil! – exclamou Dingo.
-- Basta juntar um monte de caquinhos de concha e misturar com um pouco de cascalho... – continuou Tuti. -- Mas o truque mesmo para deixar no formato de cone é sempre... – começou a revelar Zefi.

E lá se foram conversando pelo caminho cheios de animação.

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Entre Silêncios e Sussurros (Poesia)



Retorne aquele riso,
Que anula a ausência,
Ou ainda teu sorriso,
Que apaga a carência.

A alma ressecada chora,
Irriga e traz outra noite,
Derrama-se até a aurora,
Como o flagelo do açoite.

Será que eu sonhei contigo,
No despertar que nunca vem,
Corpo tão sedento e arisco,
Na oração sem fim ou amém.

Agarro as mãos numa prece,
Abro os braços em convite,
Arrisco solitário no palpite,
De que nem tudo desvanece.

Há tanto esqueci qualquer amanhecer,
Com sua claridade torpe e ilusória,
Vale apenas quando eu pude conhecer,
Aquela que escreve minha história.

Páginas em branco adiante,
Lençóis amassados na lembrança,
Emoção ávida e palpitante,
Matéria-prima daquela esperança.

Devo ainda ajoelhar e jurar,
Por sentimentos que você criou?
Preciso nessa boca declarar,
A atração que teu corpo batizou?

Desejo todos os mesmos desejos,
Que tua carne quer compartilhar,
Apagar o fogo dos velhos anseios,
Somente para outros poder atear.

Sob velas, estrelas, luares e incensos,
Manhã e anoitecer agora retornarão,
Libertados por gemidos tão intensos,
Verdadeiros guardiões dessa paixão.

Alguns acham que nada tenho de poeta,
Que sou um pseudo em estrofes soltas,
Mas se o coração deles não se completa,
Não os acusarei pelas suas visões tolas.

A poesia é a apoteose da criação,
E reservá-la aos poucos autores,
Capazes de rimar em arte dores,
Seria conferir a posse da emoção.

Entre silêncios e sussurros,
Quem ama assim emerge puro,
Pois não existe alternativa,
Nos versos ao renascer da vida.


sábado, 22 de agosto de 2009

Rimas Cúmplices (Poesia)



Nessa janela que se faz de espelho,
Vejo teu rosto pleno e sorridente,
Mergulho inteiro, vivo e contente,
Pois no reflexo também me revelo.

Se toda linha desenhada na natureza,
Fosse uma rota para encontrar você,
As seguiria, com disposição e certeza,
Colocando meu coração a tua mercê.

Não é como renunciar a mim,
Mas o mágico complemento em ti,
Ou esperar milagre nesse fim,
Porém cantar o amor em sol, lá, si.

Você me ofereceu o começo,
Um futuro rico em frutos,
Te devolvo nosso recomeço,
A vida eterna nessa terra.

Emudecidos e umedecidos,
No ardor desta louca paixão,
Fazendo do desejo o tecido,
Que nos imuniza da solidão.

Quero seu sexo, receba o meu,
Misture sua pele então na minha,
Ao redor, os corpos em revolta,
Na busca onde cada um se aninha.

E mesmo que o tempo sempre pare,
Cada segundo sendo um presente,
Um dia enfim não haverá despedida,
O olhar não será do outro ausente.

Encontro e reencontro juntos num só,
Qual a poesia que extrai fluida de mim,
Sabendo que te doando jamais a perco,
O meu verso voltando de ti em reverso.


quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Cânticos do Desterro (Conto)


Pendurados à beira do precipício.
Apenas dois míseros palmos de uma reentrância de terra escura e endurecida, salpicada por raízes retorcidas, nos separavam do vazio. O suficiente para mal acomodar o traseiro e colocar o ego em dia com as pendências. Além disso, repetindo uma experiência que tivera no deserto, sobrava a oportunidade única de contemplar a beleza da natureza em estado bruto, a harmonia oculta daquela gigantesca lacuna do relevo. Nem vale a pena mencionar os detalhes que nos conduziram e deixaram na presente situação. Atualmente vivíamos a parte mais excitante da tola desventura, melhor nos concentrarmos nela. O tempo escoava rapidamente, no seu ritmo insensível, exigindo atenção redobrada na postura corporal contra a força invisível que parecia nos atrair ao fundo daquele poço de almas. Até mesmo porquê, à mercê do desenlace, o antes e o depois desapareceriam no buraco negro das memórias órfãs, de autores anônimos.
Era desesperador contudo lançar o olhar na direção do abismo. Posso estar me contradizendo por obra da fraqueza e da vertigem. Flutuar num torrão ressequido, qual um minúsculo intruso na paisagem, restringia a perspectiva à lâmina de um pêndulo. A altura descomunal colocava em dúvida se estávamos mais próximos do céu ou do inferno. Havia nuvens sobre nós, retalhos suaves e plácidos como flocos de algodão. Sentia que podia tocá-las, que ficavam bem próximas das pontas dos dedos. Ao contrário do fundo sob nossos pés, cujas extremidades percebiam que o infinito residia ali, nos limites de um assento naturalmente desconfortável, bundas flácidas e esqueletos doloridos invadidos pela dormência.
Quando se colocarem numa enrascada dessas ao menos saibam escolher sua companhia. Ninguém sabe quanto vai durar a agonia, nem se o final será feliz. Meu companheiro de infortúnio se chama Sparta. Nome estranho, sempre achei. Os cacos de memória que restavam não informavam se alguma vez ele explicara o motivo de lhe batizarem assim. Mas como já andava de saco cheio dele isso carecia de importância. Suas idéias de merda nos colocaram naquela ínfima ravina projetada sobre o nada.
Andávamos tão dissociados que nossas conversas se tornaram apenas mentais. Se ele me ouvia, ou eu próprio ainda o escutava, sinceramente não posso afirmar. Jamais voltamos a nos encarar desde que caímos nessa armadilha. Algumas frutas na mochila e um resto de água numa garrafinha plástica tinham garantido nosso débil sustento nos últimos dois dias. Uma brisa suave e constante trazia refresco aos pensamentos confusos, dificultando assim o avanço da demência e renovando o ânimo. Não abrir a boca e falar bobagens era outra maneira de economizar as energias.
Enquanto devorava a metade de uma maçã, com casca, semente e tudo, lembrei o quanto Sparta podia ser místico em relação às suas empreitadas. Companheiro, havia me dito há meses, existe uma maneira de provar a existência de Deus.
Tive um velho professor de História que costumava comentar que para todo louco com uma idéia mirabolante existiam outros tantos dispostos a segui-lo. Sparta conseguiu apenas um. Entretanto bastou-lhe para desenvolver sua idéia de olhar a face do Criador. Aliás, quem dera fosse tão simples, pois a rigor seu plano apresentava matizes variadas e contrastes originais.
Não ergueremos uma torre atingindo o firmamento, como em Babel. Tal tarefa seria sobrehumana. Desceremos às profundezas. Para baixo todo santo ajuda. Se encontrarmos o Diabo, em contrapartida saberemos que Deus também existe.
Agora devem mais ou menos ter entendido como chegamos aqui. Após uma série de pesquisas complicadas, rastreando volumes senis, grossos e empoeirados nos corredores das bibliotecas, Sparta concluiu que as portas da morada infernal jaziam escondidas no fundo inatingível daquela vertente. Estávamos exilados no meio do desconhecido, no coração de uma selva sem nome, afastados de qualquer contato, porque o sigilo seria um componente fundamental ao sucesso da jornada.
Seu babaca, xinguei-lhe com toda força do pensamento.
Não suportaríamos encarar a luz divina, amigo. Ela nos cegaria em todo seu esplendor, ponderou. Precisa avaliar nossa jornada como um ato de contrição: o fogo demoníaco não consumiria nossos espíritos, blindados pela força pura da fé.
As divagações pretensiosas de Sparta momento algum afastavam a realidade crítica ao redor. Não tínhamos mais o material de escalada. Corrigindo: de descida. Os poucos metros acima que nos separavam de terreno plano e seguro tornaram-se então inatingíveis. A outra opção, a garganta abaixo, sequer exibia o que guardava. Não passava de um negrume longínquo, inacessível ao alcance dos olhos.
Me intrigava a possibilidade de que Sparta não tivesse a menor noção do beco sem saída que nos enfiáramos. Que suas constantes reflexões continuassem vagando entre delírios messiânicos, acalentados por desconexos ideais superiores. Sua cruzada fora detida no primeiro obstáculo, o fracasso das intenções se mostrava indiscutível ante às circunstâncias. Apesar disso, na sua total confusão íntima talvez interpretasse tudo como um recompensa celestial ou um castigo demoníaco. Deus estaria nos conferindo a chance de avaliarmos nossa pequenez ou o Diabo demonstrando o quanto as aparências são traiçoeiras? Ou seria o inverso? Gelava meu sangue imaginar que o líder da empreitada decidisse as lições aprendidas de acordo com um espírito otimista ou pessimista, rebelde ou conformado.
Percebe o problema, seu cretino? Notou que ficamos encurralados, aprisionados enfim numa rocha minúscula, incomunicáveis e segregados, sem avanço ou retrocesso, aguardando o final da contagem regressiva? A cavalaria não virá nos salvar no último segundo, Sparta.
Sua fé se revela extremamente decepcionante, camarada. Não enxergaria o Santo Graal mesmo que o encontrasse. Deseja segurança e garantia de êxito em questões que trafegam além destes valores terrenos.
Minha fé é tudo que me resta. Mas ela não impede que avalie as coisas como são. Fui reduzido a mero adereço dessa encosta. A expressão e a estima, a liberdade de ir e vir, me foram confiscadas. Sou o único responsável. Agi sem pensar, decidi por impulso e arrogância. Sequer disponho do consolo de descobrir se o veredicto veio de Deus ou do Diabo.
A cada segundo, a concentração exigida para firmar o corpo no assento incômodo redobrava de intensidade. Porém haviam poucas reservas vitais a recorrer. As pernas pairavam largadas e mortas sobre aquele despenhadeiro inclemente, dominadas por uma letargia absoluta, comprometidas pela circulação deficiente do sangue. As palmas das mãos, esfoladas e em carne viva, pouco auxílio podiam oferecer, procurando apoio em qualquer abertura. Anestesiadas pela dor e indefesas na ausência de esperança, teimavam em escorregar na superfície sebosa do terreno nauseabundo, atraídas pelo vácuo assombroso do abismo. A sacola não oferecia mais sustento, com exceção de um derradeiro gole de água. E as nuvens outrora alvas cederam sua pureza ao avanço viril da cor da fuligem.
Não saberia mais como rezar, rogar auxílio ou implorar piedade. Sparta acusara minhas crenças de serem frágeis e estava coberto de razão. O blefe de toda a existência ficava exposto perante nuvens negras, folhagens rasteiras e a bocarra que velava as portas da morada demoníaca. O suplício minara toda convicção filosófica ou espiritual, desnudando meu temperamento insosso, de convicções nulas. Entre a cruz e o tridente correria ligeiro para aquele que primeiro acenasse com a tênue promessa de salvação. A convulsão do choro se camuflava na revolta muda do desenlace medíocre, sem pompa ou circunstância, clarins ou trombetas.
O grito desesperado que soltei da garganta jamais derrubaria as muralhas de Jericó ou até os arbustos próximos. No entanto serviu para esfumaçar Sparta, despachá-lo em definitivo. Uma consciência torpe era algo inútil próximo ao fim. Fosse por um companheiro imaginário ou um alter-ego recalcitrante, o indício inconstestável de que a origem de minhas atribulações se incubava no meu interior caótico configurava-se insuportável. Ele alcançara a serenidade sem merecimento, descansava em paz noutra dimensão, provavelmente abrindo caminho ao dono que acabara de lhe conceder alforria. Se a morada era infernal ou paradisíaca... Sim, estou me contradizendo novamente.
A aragem agradável ganhara velocidade e anunciava tempestade. O frescor mais escaldante que experimentei até hoje. O sibilar agudo do vento passando entre as ramas e as folhagens densas da montanha representavam uma estranha cacofonia. A percepção comprometida tentava teimosamente descortinar algum sentido naquilo. Pareciam trechos musicais desencontrados, melodias pouco adocicadas e amorfas introduzindo uma coleção de cânticos de desterro. Um hino ao pobre indivíduo solitário, isolado do mundo naquela poltrona empedernida ridícula, prestes a ejetá-lo sem pára-quedas num vôo previamente condenado.
O frenesi do corpo em colapso embotava os sentidos. Inúmeros sonhos antigos de grandeza pareciam aptos a ensaiar sua patética despedida, conferindo um sabor ácido ao passado. Amores perdidos, sentimentos abortados, ideais melancólicos, promessas desfeitas, estratagemas engenhosos, transas consumadas, trepadas frustrantes, amizades ocasionais, talentos desperdiçados, emoções outonais. No descompasso generalizado, as notas do réquiem, os sons do exílio, o concerto de galhos e caules adquiriam formas sonoras estranhas, nuances excêntricas. O olhar procurava seguidamente um ponto de descanso, iludido pelos vórtices que invadiam as pupilas cansadas. As imagens alucinatórias eram da magnificência de um turbulento circo romano, onde a derrota seguia-se ao escárnio por parte da multidão ávida. Os polegares de patrícios e plebeus viravam-se para baixo, negando anistia ou compaixão. A cavalaria não apareceria mesmo no instante crucial.
Quando meu corpo morimbundo começou a deslizar rumo ao abismo uma última gargalhada foi o adeus que reservei à vida. Ou a saudação que destinei à morte? De qualquer modo, um misto de sarcasmo e desencanto. Nem Deus, nem Diabo. Muito menos, o dilema entre a cruz ou o tridente. Para baixo todo santo inegavelmente ajudava, conforme o finado Sparta. Minhas vãs esperanças miravam a coroa de louros do Imperador, o cetro reluzente em seu poder. A linha tênue entre a vida e a morte repousava nas suas mãos sagradas, no seu perfil divino, não importando mais o certo e o errado, a ilusão e a realidade. Não seria doravante cristão mas um súdito leal. Ao invés de um indivíduo desgarrado, um cidadão do império, temente ao panteão dos deuses pagãos, incensados nas oferendas.
Ave César, os que vão morrer te saúdam...

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Crepúsculo dos Deuses


Remexer velhas notícias muitas vezes causa efeito retardado. O que passou em branco na época apenas talvez não tenha encontrado o momento certo para fustigar nossa percepção ou então acionar os mecanismos da reflexão. O texto a seguir foi publicado no UOL, no final de agosto de 2008:


Fatia de bolo de casamento de Diana e Charles é leiloada:

Uma grande fatia de um bolo preparado para celebrar o casamento de Lady Diana Spencer com o Príncipe Charles foi vendida por 1.000 libras (cerca de R$ 2.980), em um leilão no Reino Unido.

A porção tem a forma de um quadrado com 23 centímetros e havia sido dada a Moyra Smith, uma faxineira da residência real de Clarence House, em Londres, por um chef da família real, em 1981.

A fatia foi comprada por um colecionador privado do Reino Unido que deseja permanecer anônimo.


Fatias de bolo, fatias da vida... Mesmo transcorridos 28 anos.
Acho a história de Diana Spencer de uma fatalidade absoluta. Faço questão de citar-lhe sem o Lady ou Princesa. E de devolver-lhe o sereno nome de solteira. Charles é o maior exemplo de príncipe desencantado que conheço, o único sapo que beijado se transformou em coisa pior e mais feia.
Deve haver algo de Jocasta ou Electra nisso tudo. Ora parecia que ela era sua mãe, ora ele posava de seu pai. Encará-los como um casal sempre esteve fora de cogitação. Mas não temos em nossos escribas atuais Sófocles ou Eurípedes. Resta ler sobre o imbroglio em revistas de diversas nacionalidades, nas “Caras” de todos os cantos. O que na Antiguidade Clássica era tragédia, na época contemporânea vira escândalo. Devoramos as dores alheias assim como consumimos doces em recepções. Ainda existe quem pense que nada foi perdido no caminho.
Lembro de ambos acenando na sacada do Palácio de Buckingham. A multidão em delírio acenando de longe (“Não me convidaram/Pra esta festa pobre”) e testemunhando a materialização do moderno conto de fadas. Contudo não nos restou nem Branca de Neve, nem Cinderela. Não temos mais também os Irmãos Grimm ou Charles Perrault. O que restava então para Diana? Naquele dia ela ainda dispunha de suas expectativas e de seus devaneios.
Aos poucos, cena após cena, ato sucedendo ato, ela tornou-se o personagem central desta tragédia anunciada. Vomitou tudo, menos a maçã envenenada que lhe ofereceram. Atirou longe suas esperanças, sem conseguir fazê-lo com o sapatinho de cristal que já lhe machucava os pés. A morte de Diana, ou seu assassinato como alegam alguns, não foi num túnel parisiense. Investigando aí nada se encontrará. Mas que tal recuar no tempo e seguir seus passos após os acenos aos londrinos amontoados, quando o balcão esvaziou e as portas do Palácio foram cerradas? Que preço imputamos a alguns para acalentar nossos sonhos.
Relendo a nota inusitada, é impossível evitar a sensação que o ciclo se fechou. Que tudo isso, no seu absurdo, apenas aconteceu para que uma fatia do bolo da noiva, dada a uma faxineira palaciana, fosse leiloada anos depois, dentro da nossa escala atual de valores. Ela varria a sujeira da realeza, sabia com quem lidava, nunca colocaria na boca uma fruta podre camuflada em guloseima. Exigir o que da teia do destino? Que em pleno século 21 Édipo assassinasse seu pai para dormir com a mãe? Ou que Electra matasse a mãe e o amante para vingar seu pai?
Jamais. Tempos Modernos. Restou apenas uma fatia ressequida da festa e um bater de martelo de leiloeiro. Uma princesa morta sem pavana e um príncipe vivo com cara de anfíbio.

Como é difícil não vomitar...

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

Ensaio Sobre a Cegueira


A justiça é cega.

O pior cego é aquele que não quer ver.

Em terra de cego quem tem um olho é rei.

O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) estruturou seu pensamento sobre as relações de poder. Elas estariam parcialmente distribuídas na história da sexualidade, da loucura e das formas jurídicas. Assim, involuntariamente, um ser humano adoentado creditaria ao médico o poder de curá-lo. Num sentido correlato, o saber científico acumulado deste, o dotaria então de uma força arbitrada convencionalmente de decidir a necessidade de uma internação, por exemplo, ou diagnosticar um desequilíbrio.
Esse esquema do panopticum, da sociedade que se vigia e pune através de múltiplos olhares (a ciência, a jurisdicão, a religião, os costumes), ao menos se equilibra quando os profissionais agem com consciência e ética, embora jamais anule a equação saber-poder. Quanto pior a atitude naquilo que lhe cabe, mais vicioso será o indivíduo que emergirá, podendo o mesmo processo estar embutido no sistema educacional, de forma geral. Assim, as diversas relações escapam ao controle, ganhando vida própria, não importa quão envenenadas estejam as conjunturas ou se fechemos comodamente os olhos às situações.
Se pudéssemos mesmo “ensaiar” a cegueira, além de dissertar sobre ela, com a mesma facilidade com que decoramos ditados populares... Teríamos um mundo em permanente escuridão, onde nada reluziria e portanto não haveria ouro. Reconstruiríamos os conceitos de feio e belo, talvez até fossem banidos em definitivo.
Redimensionaríamos as distâncias, as proporções, as formas e as perspectivas. Com o desenvolvimento dos outros quatro sentidos para compensar a perda da visão, o tato agarraria o abstrato, o olfato cheiraria os sentimentos, o paladar saborearia a fraternidade, a audição perceberia as batidas dos outros corações.

Seria naturalmente Um Ensaio Sobre Ser Humano.

Cárcere Sem Grades


As crianças, intuitivamente, detectam o xis de quase toda questão.
Vamos acompanhar uma delas, dentre tantas. Encantada com o mundo ao redor, cada dia uma nova descoberta ou, ainda melhor, um novo enigma. Quando vê um temporal, gruda o rosto na vidraça da janela, especulando se o aguaceiro que desaba não se constitui de longos cordões de prata ligados ao céu. Puxando um deles, talvez faça descer um belo anjo ou um bebê rosado, quem sabe.
Na frente do espelho encontra-se com a própria imagem. Toca nela apenas para reparar que ela faz o mesmo com ele. Não há muito calor humano, percebe, e o motivo não reside apenas no vidro ser gelado. Interagem mas o fato daquela réplica agir como macaco de imitação logo perde todo encanto. Porém um maior perdura. Afinal haverá um irmão gêmeo do outro lado, esperando ser libertado?
Enfim, a televisão. Ainda desligada e não sabe como acioná-la. Ou deixaram o controle remoto muito no alto do móvel. Acordou cedo, os adultos ainda dormem. Na frente da tela escura recorda da dedução mágica: existem vários bonequinhos ali dentro, anõezinhos adoráveis. Hoje, enfim, talvez quebre esta vidraça, destrua este espelho, e os liberte para si, sem imaginar que também libertaria a si próprio.
Olha resoluto a vidraça encharcada, o espelho seco e a tela escura, prestes a definir tudo. Entretanto, do nada, sua mãe passa por ele, diz que o ama, beija seu rosto, afaga seu cabelo e, num último gesto antes de se encaminhar à cozinha, liga o aparelho sedutor. Tudo se ilumina e nossa criança imediatamente se aprisiona, esquecendo os anões encarcerados na sua frente, o gêmeo congelado atrás de si, os anjos aguardando serem puxados lá fora.
Qual será o próximo programa?