sábado, 3 de outubro de 2009

As Cartas de Todos Nós - 2


Paris, 3 de outubro de 1922

(...)

...Oh, pretendia sugerir a você que pedisse as Memórias de Yeats para uma resenha. Acho que serão publicadas neste outono. Acredito que você as julgaria muito interessantes. Ele não é uma pessoa "simpática", ao que sei, mas é desses homens que refletem seu tempo. Homens assim têm um fascínio para mim. Para você não?

Queria que vivêssemos mais perto um do outro. Gostaria de falar mais com você. Mas há tempo. Quando esta selva de circunstâncias clarear um pouco, ficaremos mais livres para desfrutar a companhia um do outro. Agora não é o momento. Fale-me o que puder sobre você. Nem mesmo você pode desejar sua felicidade mais do que eu. Não esqueça que os dragões são apenas guardiães de tesouros e que se luta contra eles pelo que eles guardam - e não por eles mesmos...


Katherine Mansfield


Katherine Mansfield... A única escritora ou, melhor dizendo, a “única escrita feminina” de quem Virginia Woolf teve inveja. A morte lhe ceifou cedo, aos 34 anos, de turbeculose. Era uma contista magistral. Uma artista concisa, simples e de prosa impecável. Além disso, existiram seu diário e as inúmeras cartas, provas emocionantes e sensíveis de tenacidade, como esta que enviou ao marido John Middleton Murry, do retiro na França, onde passou seus últimos anos lutando contra a doença.

Katherine, em seu estilo cristalino, era como a luz penetrando na água. O fenômeno da refração a fazia ser indireta sem ser ambígüa. Esta carta é uma das mais belas declarações de amor que conheço. Ela não utiliza essa palavra uma única vez, começa tratando de assuntos literários apenas para depois esculpir sentimentos em estado puro.

Um desvio para tornar mais nítido o que sentia. O despiste para realçar o que queria dizer. Como grande autora, Katherine sabia que, às vezes, nos faltam palavras ou que estas não são suficientes para representar algo. E que a melhor maneira de confirmar alguma coisa é agir como um raio luminoso batendo numa superfície líquida e plácida: um ligeiro desvio visando reconhecer melhor aquilo que já sabemos.

Atalhos assim são capazes de iluminar qualquer ser ferido ou enterrado, amenizando dores e resgatando-o do lodo, mostrando-lhe que os ferimentos de outrora não permanecem necessariamente, reconduzindo-o à tona e à vida plena.

As Cartas de Todos Nós - 1


Berna, 02 de janeiro de 1947


Querida,

Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de levar qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso - nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro. Nem sei como lhe explicar minha alma. Mas o que eu queria dizer é que a gente é muito preciosa, e que é somente até um certo ponto que a gente pode desistir de si própria e se dar aos outros e às circunstâncias. Depois que uma pessoa perder o respeito a si mesma e o respeito às suas próprias necessidades - depois disso fica-se um pouco um trapo.

Eu queria tanto, tanto estar junto de você e conversar e contar experiências minhas e de outras pessoas. Você veria que há certos momentos em que o primeiro dever a realizar é em relação a si mesmo. Eu mesma não queria contar a você como estou agora, porque achei inútil. Pretendia apenas lhe contar o meu novo caráter, ou a falta de caráter, um mês antes de irmos ao Brasil, para você estar prevenida. Mas espero de tal forma que no navio ou avião que nos leva de volta, eu me transforme instantaneamente na antiga que eu era, que talvez nem fosse necessário contar.

Querida, quase quatro anos me transformaram muito. Do momento em que me resignei, perdi toda a vivacidade e todo o interesse pelas coisas. Você já viu como um touro castrado se transforma num boi? Assim fiquei eu... em que pese a comparação... Para me adaptar ao que era inadaptável, para vencer minhas repulsas e meus sonhos, tive que cortar meus grilhões - cortei em mim a forma que poderia fazer mal aos outros e a mim. E com isso cortei também a minha força. Espero que você nunca me veja assim resignada, porque é quase repugnante. Espero que no navio que me leve de volta, só a idéia de ver você e de retomar um pouco a minha vida - que não era maravilhosa mas era uma vida - eu me transforme inteiramente.

(...)

Tua,

Clarice


"Tenho visto pessoas demais, falado demais, dito mentiras, tenho sido muito gentil. Quem está se divertindo é uma mulher que eu detesto, uma mulher que não é a irmã de vocês. É qualquer uma."

Um trecho de outra carta da autora Clarice Lispector, escrita também no ano de 1947, sobre sua inadaptação à vida na Europa, longe da família e dos amigos, acompanhando os passos do marido diplomata.

Quando o Dr. Victor Frankenstein concebeu sua criatura, que seria o epítemo do ser humano perfeito, o fez através da aglutinação de corpos e membros de vários outros.

Ao juntar pedaços alheios para criar um indivíduo acabou gerando uma monstruosidade, não o ideal sonhado. A criatura era muitos e não era ninguém, funcionava como a resultante do melhor braço de A, o mais saudável tronco de B, as pernas fortes de C, mas nunca era "ele". A tentativa de construir um modelo sem defeitos conduziu à aberração. Ato falho, o corpo de retalhos foi arrematado por um cérebro doentio, vindo de um psicopata.

Os mitos ou criações sempre parecem antever verdades antes da ciência. Ao nos espelharmos em ideais, ao negarmos os nossos grandes ou pequenos defeitos, adoecemos, nos tornamos uma monstruosidade, um pastiche de nós mesmos. Mas, como a Criatura apesar de tudo pareceu superar suas cicatrizes e costuras, mostrando laivos de humanidade, fica a esperança de que nada é irremediável, apesar das aparências e circunstâncias.

Clarice, numa carta, começou a construir esta ponte há 60 anos. Ainda é seguro atravessá-la.