segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Sublime Obsessão

Todos os dias, antes de começar a trabalhar nas suas composições, Beethoven escrevia em seu diário: Senhor, ajuda-me a vencer-me.
Era uma prova sublime de humildade. Uma constatação dos densos limites pessoais ante ao desconhecido, às fraquezas, ao ócio e às temeridades. O talento do genial compositor alemão, assim como toda capacidade individual, estava longe de ser um mecanismo acionado quando desejava. As forças ao redor capazes de desviá-lo do curso eram infinitas. Nada tinham de sobrenaturais, faziam parte da condição humana. Poderiam se manifestar na autopiedade pela surdez ou no rancor pelo isolamento sentimental, contudo, ao contrário, acabaram servindo de matéria-prima aos fundamentos da manifestação artística.
Assim, a fé surgia como um ponto de apoio. Beethoven, ao contrário da maioria dos mortais, conversava mesmo com Deus pelas manhãs. Enquanto a maioria tratava disso antes de dormir, em suas orações, ele buscava forças divinas nas horas matinais, quando a vida efervescia no exterior. Suas nove sinfonias, seus cinco concertos para piano e orquestra, as 32 sonatas para piano e tantas outras obras demonstram que, acima de tudo, ele foi ouvido em sua súplica.
A arte romântica, cujo auge foi o século XIX, foi construída sobre dores, desilusões e devaneios emocionais. As entranhas e o sangue de vários artistas preencheram pautas, páginas e telas. Mas dentre todos os criadores dessa época, o que sempre mais me fascinou foi o polonês Fredric-François Chopin. De saúde frágil, seguidamente debilitada, realizava um esforço hercúleo para conciliar os impulsos criativos com a agenda repleta de um notável virtuose.
Chopin, ao lado de seu contemporâneo e amigo pessoal Franz Liszt, é apontado, baeado nas descrições e críticas da época, como o maior pianista de todos os tempos. E isso foi reconhecido em vida, corroborado pelo fato de ser requisitado a se apresentar nas maiores salas de concerto européias. Apesar de precoce, não chegou a ser um menino-prodígio como Mozart, lapidando seu talento com muita disciplina e perseverança, tanto em suas obras quanto em suas performances.
Enquanto a tuberculose o minava, antecipando uma vida curta, que não passaria dos 39 anos, Chopin exalava uma melancolia, uma aguda inclinação ao desencanto bem palpável em suas polonaises e noturnos. Freqüentemente compunha acamado, suas forças se extingüindo em cada nota escrita, em toda variação concebida. As chances de dialogar com Deus eram escassas e, se aconteciam, certamente transcorriam nas madrugadas, quando a vida adormecia ao redor.
Ao completar uma opus, talvez percebesse que um dia de sua existência fora-lhe abreviado ou uma semana inteira tenha-lhe sido diminuída. Porém, ele prosseguia em sua sede de descortinar o sentido do universo, os sons da natureza, o diálogo com a alma atormentada encarcerada num corpo enfermo. A mente arguta surgia como o ponto de equilíbrio entre o passado e o futuro, o certo e o incerto. Antes de tudo, Chopin prosseguiu no seu caminho, fazendo de suas dores não um veneno, mas o antídoto que serviria de bálsamo a tantos outros espíritos errantes ou seguros, pois sua obra, em amplitude, antes de terrena se revelava cósmica.
E se existiu algum diário em sua vida, provavelmente ele tenha escrito certa vez, mesmo que com tinta invisível: Senhor, ajuda-me a consumir-me.
A noção do sublime e da fé encontra-se no âmago de todos nós.

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