segunda-feira, 31 de março de 2008

Réquiem aos Sonhos


A Lagoa Rodrigo de Freitas, em Ipanema, quando a noite avança nas suas horas e os que não arriscam aconselham evitar seus caminhos.

Onde o perigo da segurança é tão grande quanto a perdição das esperanças e a morte das ilusões. Quando as luzes da cidade e os vestígios da Lua transformam sua superfície numa gigantesca face mágica, enquanto a brisa cava olhos e nariz estilizados, a correnteza suave delineia uma boca e o riscar rápido dos cardumes constitui o emaranhado dos cabelos. Se tudo foi uma pueril ficção, que ao menos ganhe uma injeção de poesia.

Aquela mesma serenidade da paisagem imagino em seus olhos, no seu rosto, mesmo à distância, independente das circunstâncias ou dos momentos de vida. Uma transparência construída em prazer, toda guardada no seu íntimo, amparada na vontade de fazer o que gosta, enfeitada pelo seu belo e largo sorriso.

O vento brando na Lagoa sussurrava e trazia tais impressões. Fazia folhas voarem, levantava um pouco de poeira, tornava as coisas um pouco turvas mas em seguida tudo voltava ao normal. Faz parte da vida que os ventos, certas vezes, semeiem cíclicas tempestades ou turbulências. Porém também podem apenas balançar de leve os galhos e as plantas, movimentar suavemente todo um espelho d'água. O que eles nunca fazem, como no seu caso, é poder desvirtuar o todo, distorcer o âmago.

Seu olhar sempre voltará a ser límpido, sua face sempre retornará à alegria. Seus momentos de confusão, duvidas ou angústias não passam de uma aragem que assim como vem, desaparece. Tornando-a mais forte e preparada, pois curvar-se ao vento não é render-se, mas simplesmente se posicionar, esperando que ele passe até o espírito retornar à normalidade.

Observando a ação final dos ventos na Lagoa fiz meus inventos. Juntei na minha mente aquelas folhas que flutuavam nas margens, construí um belo tapete mágico e imaginei ele indo ao seu encontro, levando-a para onde desejasse. Pode subir nele, querida, é seguro. Assim como ele vai, ele também volta, e a fará muito mais segura e imune às dúvidas. De qualquer forma, estarei sempre aguardando o término das suas tormentas e o pouso sereno do seu tapete.

Abençoado pela imagem superior do Cristo Redentor, o dia está amanhecendo. Sua fisionomia se apaga na Lagoa, misturada às águas de todos os horizontes e dos lugares que cabem dentro do coração. O dia enfim clareou contudo não existe maior segurança, mesmo nos trajetos iluminados e sinalizados. A única sensação que não se desvaneceu foi o buraco no peito, a ferida que se espalha em cada ritmo da respiração.

As coisas são o que não precisavam ser.

Nesse momento, carentes de porquês ou utilidade, dolorosamente, os sonhos eternamente compartilhados enfim dissolveram na execução desnecessária de seu réquiem, na indução de um destino vazio e sedução de um rumo ignorado. O passaporte definitivo de um adeus incompreensível no que destruiu e cruel no que deixou devastado, apoiado na cômoda justificativa da passagem do tempo, até o vencimento de sua validade.

Contando que a nota derradeira desta partitura jamais seja tocada.

sexta-feira, 28 de março de 2008

O Anel Que Tu Me Destes (4a. Parte)


O clima ficou pesado na Maison Léclair, após Cris, na sua condição de Chefe de Investigações, encerrar o seu relato. A busca no terreno baldio havia sido infrutífera e o espetacular anel, a esta altura, se encontrava distante, nas mãos de um ladrão anônimo.
- O caminho agora é colocar nosso departamento analisando as fichas criminais, buscando uma identificação precisa através do perfil da ocorrência: habilidade, impulso, frieza, áreas de atuação, etc. Além disso espalharemos a rede de informantes concentrada no mercado de receptação de jóias. Ele não terá vida fácil em se livrar do produto.
- Nós que não teremos vida fácil, Chefe Cris – retrucou Goldstein, trêmulo e visivelmente abatido. – Encontrar a peça impediria tantos transtornos que virão aos envolvidos e interessados.
- Não podem chegar a um acordo? Resolver numa conciliação?
- Existe um conflito de interesses. A seguradora denunciará de saída o aspecto pouco ortodoxo da transação. Acusará o estabelecimento de irresponsabilidade comercial irrestrita. Nossa empresa exigirá o reparo do senhor Bartholomée e este se defenderá alegando que não recebeu a segurança necessária nas instalações da Maison. Sem falar que poderia até desistir da transação. Pierre tem direito de alegar isso. Todos têm direitos na história. Resta saber sobre quem recairão os deveres, as obrigações.
- A despeito das tentativas múltiplas – ressaltou Bartholomée – tudo se processará exatamente como Davi acabou de descrever. A seguradora empurrará a primeira pedra da fileira de dominós, iniciando uma reação jurídica em cadeia. Muito desagradável.
- Serei a pedra dianteira na queda – lastimou-se o gerente.
- O que no momento presente seria bastante inconveniente, certo? – comentou Peter.
- Não entendi... O que insinua?
- Apenas imaginei que, na luta pela sobrevivência, cheio de contas e compromissos a saldar, despesas diversas, perder o emprego seria um golpe duro de absorver...
- Como para qualquer cidadão comum que trabalha e depende integralmente do salário que recebe, senhor Schmoll – retrucou friamente Goldstein, evidenciando que não o chamaria mais de Peter por muito tempo.
- Desculpe meu comentário então. Mas não consigo mesmo vê-los como “pessoas comuns”. Talvez eu, Cris, Leo e o Chefe de Segurança ali no canto sejamos meros tipos banais. Quanto ao distinto casal Bartholomée, o senhor e mesmo seu reservado auxiliar me parecem gente de outra categoria.
- Manera, Peter – sussurrou-lhe Cris. – A tarefa acabou, esquece...
Estavam todos acomodados na sala de estar. De um lado, como numa arena, os “seres superiores”: o sofisticado gerente Davi Goldstein, o calado assistente sem nome, o emérito advogado Pierre Bartholomée e sua devotada esposa que, ainda de compressa ajustada na cabeça, melhorara e viera se juntar à reunião. Do lado oposto da contenda, a “raia miúda”: o infatigável pesquisador de temas mundanos Leo, o persistente Chefe de Investigações Cris e Peter Schmoll. Ao fundo, em pé, sem desfrutar do conforto das maravilhosas poltronas Berger originais, o confiável Chefe de Segurança da Maison Léclair.
- Ao que parece, Peter, deseja caracterizar uma luta de classes aqui – apazigou Bartholomée, tentando conferir uma pitada de humor ao comentário. – Posso lhe garantir que, a despeito do que galguei na minha atividade, sou alguém comum, que trata todos igualmente. Qualquer empregado ou subordinado meu atestará isso.
- Contudo é justamente você quem me intriga, senhor Bartholomée.
- Como, Peter? – surpreendeu-se. – O normal seria o contrário! Por que o intrigaria?
Peter levantou-se e começou a perambular no meio do largo círculo de poltronas.
- Trinta minutos atrás eu e meus colegas estávamos sentados numa tal Birosca do Lucas, em frente ao fatídico terreno baldio. Um lugar de gente abaixo do comum. Vocês não passariam na porta, embora confesse que se pudesse também evitaria. No momento exato que concluímos que o anel não seria achado ali, uma coisa curiosa ocorreu. O esforçado sargento que liderava a equipe de busca veio falar conosco, implorando permissão de tirarem a camisa. O sol abrasante os estava cozinhando vivos. Foi impossível conter o pensamento: “gente comum sente calor e transpira”.
Ele captara a atenção da audiência, se tornara o centro das atenções, alimento perfeito do seu ego insaciável e mente brilhante. Porém onde pretendia chegar nem seus parceiros conseguiam perceber.
- Todos sofrem nesta temperatura - gracejou Bartholomée.
- Será? Então por que o senhor saiu de casa hoje com esse pesado sobretudo, um casacão típico de clima europeu? Se resolveu trajá-lo, não deve suar...
Pierre Bartholomée empalideceu. A experiência em tribunais porém o ensinara a recompor-se numa fração de segundo.
- Poderia dar-lhe inúmeras razões de me vestir assim. Devo?
- Não – concordou Peter. – Nada o obriga a prestar-me explicações.
- Então estamos sintonizados.
- Em contrapartida - emendou Peter – nada também me impede de contar-lhes uma história incrível.
Peter serviu-se de suco de laranja e esvaziou o copo num gole.
- O ponto nebuloso desse caso foram as circunstâncias do roubo. A principio, a pior conjunção havia se formado: um golpe de ocasião, regido por sorte e casualidade, sem premeditação, realizado por um profissional competente e frio. A receita do crime perfeito, senhores, praticamente impossível de desvendar. Houve um raio na escuridão contudo: para escapar à perseguição, o ladrão se livrara dos objetos atirando-os num terreno baldio. Como a mercadoria era muito mais importante do que pegar o criminoso, conforme deixaram claro, os esforços foram concentrados em recuperá-la. O larápio, imune às descrições ou detalhes, que sumisse nas trevas e fosse procurado pela polícia.
Havia expectativa no ar, apesar do resumo até então não apresentar novidades.
- No entanto o anel não ficou no terreno baldio. Somente a carteira.
- Claro, Peter – admitiu Cris. – Uma dedução perspicaz da sua parte. Por isso os ânimos aqui afloraram. O sumiço da jóia frusta alguns e preocupa outros.
- Mas a pérola South Sea não sumiu, Cris. Ela está mais próxima do que supõe.
A estimada audiência de Peter Schmoll explodiu. Somente a senhora Bartholomée, ainda sofrendo os resquícios da fortíssima enxaqueca, permaneceu observando impassível. Aqueles que não se engasgaram com a bebida logo demonstraram toda a sua indignação, incluindo o apático assistente do gerente.
- O que pensa, senhor Schmoll? Sua fama não lhe dá certas liberdades!
- Insinua que acobertamos o roubo?
- Exijo que se retrate ou responderá um processo!
Era difícil especificar na balbúrdia quem protestava o quê. Os gritos se confundiam, a algazarra generalizara. Cris tentava acalmá-los, secundado por Leo e o segurança. Peter limitou-se a cruzar os braços e aguardar o término da manifestação.
- Não disse que acobertaram o roubo - prosseguiu, alguns minutos depois. – Até porque, no sentido que imaginamos, o roubo nunca aconteceu.
- Peter, a coisa está meio confusa, amigo...
- Vai clarear, Cris... Prometo. Milagres ocorrem.
- Espero.
- A caixa com o anel de pérola permaneceu o tempo todo no bolso estreito e fundo do casacão do senhor Pierre Bartholomée.
- Não entende que eu teria notado isso, Peter? – contemporizou o advogado. – O primeiro gesto que se faz após perceber um roubo é verificar o conteúdo do bolso.
- Ninguém mexeu no seu bolso, senhor Bartholomée... Esperem! Antes do novo ataque, vamos fazer um trato? Explico tudo e depois me processam, OK?
A exaltação caminhava de mãos dadas com a curiosidade e Peter conseguiu a trégua provisória solicitada.
- Continuando... Nada foi retirado do bolso do senhor Bartholomée, sequer a carteira.
- Ai, Peter! – interrompeu Cris. – A carteira foi logo encontrada no terreno baldio. O que diz não tem sentido!
- Esta parte é pura verdade. Mas não foi surrupiada dele. Chegou até lá tendo sido entregue de antemão ao gatuno, espontâneamente.
- E por que ele daria a carteira ao ladrão?
- Porque o esquema foi todo arquitetado pelo senhor Bartholomée. O batedor não passava de um cúmplice na tramóia.
Pierre Bartholomée encarou Peter Schmoll duramente.
- Não sabe com quem trata, jovem. Várias testemunhas escutaram tal descalabro. Terá de provar isso cabalmente ou assistir seu mundinho desmoronar, seu cretino.
- Aceito o ônus da prova, senhor Bartholomée... Há algum tempo se encontra totalmente falido, quebrado. Como dilapidou sua fortuna, sequer imagino. Todavia se algum fuçador, ou mesmo através de medida judicial, quebrar seu sigilo bancário encontrará sua conta no vermelho. Toda aquela conversa que não usa Internet em transações ou evita sair com cartões de crédito e talão de cheques disfarça uma explicação convencional: eles estão bloqueados por falta de fundos, estouraram os limites há tempos. Somente suas relações, como me recordou agora, ainda resguardam sua delicada situação financeira.
- Senhor Schmoll – interrompeu o gerente. – Como assim? Amanhã ele seria obrigado a realizar uma polpuda transferência bancária na agência, quitando o anel de pérola.
- Por que faria, senhor Goldstein? Ele sabia que a jóia seria “roubada” hoje. O que se seguiria seria uma longuíssima batalha judicial pela responsabilidade do prejuízo.
- E o que ele ganharia com isso? – insistiu.
- Não sei se ganharia. Porém certamente não perderia.
- Ora...
- Raciocinem comigo... Ele desvia o anel através de uma simulação. Começa um intrincado jogo de empurra sobre quem deverá arcar com o prejuízo. A vítima óbvia acaba sendo a seguradora. Em segundo lugar, seria a Maison Léclair. E por último ele.
- Sim – contestou Cris. – Mas se a justiça decidisse que fosse obrigado a pagar?
- Aí que está! Ele não perderia em hipótese alguma! Venderia o anel no mercado negro e ressarciria o estabelecimento. A Maison Léclair seria indenizada com a rápida negociação de seu próprio patrimônio. Genial, na verdade! E aqui entre nós... Com sua influência no sistema judiciário, conforme me ameaçou, acumulando amigos entre juízes e desembargadores, acreditam que não venceria nos tribunais?
Todos olharam na direção de Pierre Bartholomée que, de mãos dadas com a esposa, não demonstrava o menor constrangimento.
- E quais os detalhes do meu plano diabólico, Peter? Precisará deles na corte.
- Tenho todos esclarecidos, senhor. Antes de se deslocar à joalheria, entregou sua carteira ao cúmplice. Ele não necessitará de nenhuma habilidade especial na encenação. Aguardará de tocaia atrás do poste. Deve se tratar de um sujeito esguio, fácil de permanecer camuflado. Depois, no instante em questão, fingirá que esticou sua mão para limpar um figurão. Fará simplesmente uma mímica, uma performance, autenticada por seus gritos desesperados quando passar correndo, dando veracidade ao roubo. O fato de ser num domingo facilitaria tudo: ausência de movimento e de transeuntes inconvenientes. O pormenor do casacão foi brilhante. O bolso é tão profundo, o tecido tão grosso, que ninguém percebe se algo está ou não em seu interior. Coloque agora mesmo um cinzeiro dentro e não se constatará uma alteração no volume. O tempo todo não trazia a carteira e manteve o anel consigo. Sabia que jamais seria revistado pelo segurança de plantão. É Pierre Bartholomée, afinal...
Embora sem apresentar ainda uma única comprovação definitiva, o raciocínio de Peter começava a fazer sentido aos demais.
- Houve um lance fortuito, bafejado pela sorte. Quando em meio à perseguição inesperada, por afobação e pânico, o cúmplice se livrou do que carregava, que era unicamente a carteira. Isso embaralhou toda a investigação e auxiliou involuntariamente ao estratagema. Gastamos um tempo enorme e precioso procurando algo onde não se encontrava, embora a ilusão de ótica confirmasse o contrário. Mas felizmente, como disse, as pessoas comuns transpiram no calor...
- Sensacional, Peter! – aplaudiu Bartholomée, irônicamente. – Uma perfeita conjectura de fatos circunstanciais. A Justiça não costuma se deixar seduzir por anedotas bem contadas. Falta materialidade na sua engenhosa dissertação. Precisaria me flagrar na posse do anel para comprovar tamanha ficção. Quer revistar-me? Fez isso mais cedo, inclusive, ao examinar o grau de dificuldade enfrentado pelo ladrão. O próprio Chefe Cris também, por questão de rotina. Não me opus. E nada suspeito encontraram em meu poder.
- Acredito que a jóia não esteja escondida no senhor.
- Então seu caso naufraga antes de zarpar... Nos veremos na corte, detetive.
- Um momento, senhor Bartholomée. Faz alguma restrição numa última revista?
- De jeito nenhum. Poderá dizer qualquer coisa, menos que neguei colaboração.
Ele se aproximou de Peter e ergueu os braços, facilitando o acesso aos bolsos. No entanto, para surpresa geral, o famoso detetive o contornou e se aproximou da senhora Bartholomée.
- Peço permissão de revistá-la, Madame.
- Mas que ultraje! – protestou em uníssono o ilustre casal.
- Não desejam mais colaborar? Posso embasar melhor minha petição, meu honrado adversário. Após o incidente, a senhora Bartholomée, traumatizada, teve um violento aumento de pressão arterial, seguido de uma terrível enxaqueca. Normal, às vezes sofro disso também. O dedicado marido, que escapara da revista do segurança sendo quem é, e ainda não passara pela rotineira de Cris, acompanha a esposa na sala ao lado, para aplicar-lhe um estranho cataplasma.
- Não seja ridículo, meu jovem – enfim pronunciou-se ela. – Quanto disparate!
- Quem sofre de enxaqueca ou cefaléia, mesmo de uma corriqueira dor de cabeça, não suporta a menor pressão em torno das têmporas e da fronte. Porque isso prende a circulação, o que aumenta muito o desconforto. E nosso carinhoso cônjuge caprichou ao prender essa compressa gelada. Nunca vi algo tão apertado e justo assim, me ofereci para afrouxar, inclusive.
- Gosto desse modo, rapaz. Está querendo enxergar coisas onde não há – fuzilou a senhora Bartholomée, inteiramente despida da doçura que Peter conhecera.
- Não creio nisso. Ou gente incomum tem mesmo reações orgânicas diferentes? A lógica continua simples: isolados, preparando um autêntico torniquete, Monsieur escondeu o anel na nuca de Madame, protegendo-o com a bandagem firme da compressa. A caixa original misturaram com outras vazias e idênticas, estocadas numa prateleira do aposento. Dispunham de tempo mais do que suficiente. A agitação se concentrava na outra parte do estabelecimento, onde o gerente, seu assistente e o segurança tomavam as providências emergenciais a respeito do desaparecimento da jóia. São cúmplices em tudo, no amor e no crime.
Antes que começassem as novas ameaças, Peter, habilidosamente, posicionou-se e puxou num irresistível impulso o nó posterior do cataplasma, que desmanchou-se e fez rolar pela grossa braçadeira da poltrona o deslumbrante brilho dourado do anel de pérola South Sea, flanqueado por seus puríssimos e minúsculos diamantes.
Peter tratou de juntá-lo e, num gesto solene, aproximou-se do trêmulo David Goldstein, que tinha os olhos marejados e denotava ter remoçado vinte anos.
- Aqui está, senhor. A garantia do seu emprego e o fim precoce da guerra jurídica.
- Obrigado, Peter! - desmanchou-se o gerente, demonstrando nessa gratidão uma amizade duradoura.
Voltando-se à lívida e agora claudicante senhora Bartholomée, Peter Schmoll reconheceu:
- Que belíssimo desempenho, Madame. Lamento não tê-la assistido nos palcos, no auge da sua carreira e energia. Como disse, o vírus da representação nunca se perde. Quanta doçura, quanto medo, quanta nostalgia amorosa ao cantarolar “o anel que tu me destes”. Tornou o caso mais interessante, senhora, porém não infalível.
Cris estava, ao contrário de Leo, totalmente estupefato com o inusitado desenrolar dos acontecimentos. Sem falar no destrinchar perfeito conduzido por Peter. Disposto a não deixar a peteca cair ou dar o braço a torcer, desafiou o colega:
- Por que não arremata a obra e me indica onde encontrar o falso ladrão?
- Procure pelo motorista do casal. Aquele que por bondade do patrão teve a folga dominical restaurada. Utilizar o táxi não foi casualidade. E vai constatar que as tais atividades esportivas às quais o cara se dedica são corridas de média distância. Velocidade e resistência equilibradas. Um tipo atlético, em forma, capaz de disparar e sumir de vista. Outro toque de mestre desse esquema, não há dúvida. Tipicamente feminino... – encerrou, olhando de soslaio na direção do Chefe de Segurança, que percebeu a menção e piscou-lhe de maneira imperceptível aos demais.
A linha, a fleugma e o orgulho do casal Bartholomée desaparecera. Sua expressão disparava os maiores impropérios mudos contra Peter Schmoll, que habilmente desbaratara seu plano perfeito. Cris tratou de convocar os dois policiais que aguardavam na sua viatura estacionada defronte à Maison, no ponto exato onde horas antes se iniciara o fracassado embuste. Deu intruções particulares aos dois e logo o distinto casal Bartholomée saiu conduzido à Delegacia Central, ostentando ambos uma jóia sem a marca de qualidade de Léclair: um par de algemas meio enferrujado.
- Inacreditável – murmurou o gerente. – Os modelares Bartholomée se tornando ladrões.
- A decadência definitiva das linhagens – abriu a boca, pela primeira vez, o assistente.
- A imprensa terá um prato cheio – sentenciou Leo.
- Ele alegará sem rodeios que precisava de dinheiro? Ou adotará o sentimentalismo, alegando que a vontade de presentear a esposa o cegou? - ponderou Cris.
- Tal justificativa desmorona inteiramente na participação da mulher no planejamento. Entretanto, a velha raposa jurídica se pronunciará de acordo com o tribunal que o julgar - explicou Peter.
- Notável! - exclamou Cris.
- O aspecto notável, na verdade, é que mesmo em casos que não participo meu índice de sucesso permanece nos cem por cento – congratulou-se Peter. - Mereço dormir como um anjo.
Pela reação imediata de todos, o casal Bartholomée teve, ao menos, uma pequena vingança.


FINAL

quinta-feira, 27 de março de 2008

O Anel Que Tu Me Destes (3a. Parte)


Assim que se acomodou entre Cris e Leo, Peter, muito irritado, disparou:
- Afinal, por que não desenterraram este bendito anel ainda?
- Não começa com as tuas recriminações! – reagiu Cris. – Estamos seguindo todos os procedimentos básicos de busca. Os homens estão dando duro nesse calor infernal. Pedi até a ajuda de um grupo de garis que removem o lixo revirado, tornando limpa a área. Mesmo esse material passa por uma segunda e terceira triagens, eliminando qualquer risco de perdemos a porcaria da peça. O que mais se pode fazer, sua santidade?
- Desde que foi promovido à Chefe de Investigações, Cris, tornou-se um mero burocrata. E pensar que ajudei nessa sua escalada.
- Você é um imbecil, Peter! Vai lá, grita “apareça” e leve a jóia de volta...
- Agora tenho de fazer o trabalho alheio? Só faltava essa...
Leo nem se preocupou em apaziguar a discussão. Volta e meia os dois travavam aqueles diálogos ríspidos e contundentes porém nunca se desentenderam seriamente. No entanto a busca começava a ficar maçante e se configurava inútil. Estavam no meio da tarde e a esperança de solução arrastava-se sob o sol a pino do horário de verão.
- O que me exaspera – retomou Peter, mais calmo – é que não existe descrição do ladrão. A caixa da jóia foi jogada nesse terreno e não se consegue encontrá-la. O caso está todo amarrado por circunstâncias banais, laços que escondem as pontas.
- As digitais também nada produziram – concordou Cris. – O excesso de suor nas mãos do larápio as destruíram, tornaram a identificação impossível. A única saída é o pessoal reverter a maré da sorte e topar logo com a jóia.
- Para piorar, temos de esperar na Birosca do Lucas...
Cris e Leo não conteram o riso.
- Quer uma bebida quente? – provocou o primeiro.
- Ou uma porção de pesticos fria? – atiçou o segundo.
- Espero apenas não estar ocupando a cadeira do padreco mala ou do velho gagá...
Enquanto gargalhavam voltaram os olhos para o grupo de policiais e garis que sofriam vasculhando o terreno baldio. Os muros laterais eram compartilhados nas construções contíguas. O do fundo tinha uma altura considerável. Ninguém teria chance de vencê-la sem ajuda ou escada. O que não impediria de ser facilmente surpreendido pelos policiais da perseguição, que permaneceram virados para o interior do terreno até a chegada dos reforços. O muro frontal, por onde o ladrão atirara os objetos, era baixo, não ultrapassava um metro e meio. A conclusão se mostrava forçosa: o anel de pérola South Sea estava ali em algum lugar. Nenhum deles externou tais pensamentos, porém estava óbvio pelas suas fisionomias que os três refletiam de forma similar.
- Uma coisa me intriga, pessoal. E não consigo tirá-la da cabeça...
- Do que se trata, Peter?
- Desse enigmático e audacioso ladrão, cuja captura não interessa aos ilustres envolvidos no caso.
- Ele podia ter ficado em casa dormindo – comentou Leo. – Domingo é dia sagrado, de descanso. Pouparia tamanha confusão.
- Nem me fale em dormir... Que noite, meu Deus. Que madrugada...
- Você teima, nem insisto mais. Leo também deve ter dito milhares de vezes. Não procura ajuda médica. Um dia vai deitar e não acorda. Um triste epílogo na sua clássica biografia.
A disposição de discutir aquilo era nenhuma em Peter. Seus traços fisionômicos conservavam um autocontrole admirável. No entanto, sua irritabilidade no timbre da voz sinalizava a verdadeira condição, sendo um indício familiar aos que desfrutavam da intimidade. Os amigos observaram a estafa e respeitaram sua frágil condição. Até porque sabiam que seus extraordinários mecanismos de detecção funcionavam mesmo à baixa velocidade, podendo eclodir a qualquer instante, não cabendo atrapalhá-la com altercações inadequadas, que o exaurissem mais no momento.
- Mas o que tem o ladrão? – indagou Cris.
- O cara é profissional. Dos bons. Gente assim não circula a esmo. Apareceu aqui quando tudo normalmente não funciona. Estava no lugar certo na hora certa. E deu um bote preciso.
- Desconfia que recebeu uma dica?
- Uma possibilidade, claro. O estranho é que costumo captar isso no ar. Não detectei traços disso no gerente, no seu assistente ou no segurança. Goldstein não passa de um tipo afetado e bajulador. O sem nome apresenta uma insipidez ímpar. O fardado tem percepção, fica na dele e cuida das suas responsabilidades. Porém não descanso desde ontem. As minhas pobres faculdades podem estar bastante comprometidas, não seria inédito em circunstâncias desfavoráveis. Se ao menos tivesse repousado, a função transcorreria melhor...
O atento parceiro Leo sacudiu o desânimo adicionando um novo ingrediente ao caldeirão de poções Schmoll.
- Peter, não pergunte como consegui... Olhe bem essas cópias de movimentação bancária... Não acha interessante? Comentei sobre isso nas mensagens de texto. Agora as tem discriminadas... Lembre que se precisar dispor dessas informações não cite números, apenas encaixe indiretamente o fato.
- Quanto a mim, não sei de nada, não vi nada... – comentou Cris. – Os métodos que burlam a legalidade fogem à minha alçada.
- É curioso mesmo, Leo. Mas a princípio isso não prova nada. Podem haver outras contas. Estou propenso a classificar este caso como transcendendo quaisquer valores e referências materiais. Quase algo sobrenatural. O marginal parece invisível, ao menos sem rosto. O anel desaparece por encanto ou se esconde de nós. Tudo conspira contra a realidade, como se fosse obra de um habilidoso mágico e...
Peter estancou no meio do seu raciocínio. Ergueu-se ligeiramente, trespassou o infinito com os olhos arregalados e brilhantes, e quando voltou à posição normal um sorriso maroto lhe iluminava o rosto. Alguns conheciam aquilo como bom augúrio aos inocentes e motivo de preocupação aos culpados. A luz começava a se fazer.
- Amigos... O que necessita um mágico para realizar seus truques?
- Ah, Peter... Adora esses enigmas... Sei lá, precisa de agilidade nas mãos?
- Exato, Cris. Merece a promoção à Chefe de Investigações...
- Obrigado, amigo. A justiça tarda mas não falha. E no que a bendita velocidade de um mágico nos esclarece afinal?
- Calma... Antes de perguntar isso, responda no que a velocidade de um mágico ajuda o truque?
- Ora – interrompeu Leo. – Em tudo. Ele conta com o fenômeno da ilusão de ótica. O famoso bordão “as mãos são mais rápidas do que os olhos”.
- Ponto também, Leo! Merece um aumento.
Os dois o encaravam sem pescar o xis definitivo da questão.
- Se vocês levantam cedo, abrem a janela e o asfalto está molhado, deduzem que choveu. Um exercício absoluto de lógica. Se abrem a gaveta onde guardam sempre a chave do carro e não a encontram, revirando-a várias vezes inutilmente, mesmo que lá fosse seu lugar, o que concluem?
A despeito da inteligência indiscutível que possuíam, Leo e Cris não alcançavam a perspectiva proposta por Peter.
- Está na cara, companheiros. As chaves não estão na gaveta! O anel não está naquele terreno baldio!
- Como não, Peter? – fizeram coro ambos.
O detetive balançou a cabeça vagarosamente, firmando ainda mais sua dedução.
- Enlouqueceu? Quer complicar mais o caso? Testemunhas viram ele sendo atirado sobre o muro. De dois ângulos diversos. Os policiais que o perseguiam do outro lado da calçada e a dupla de fregueses aqui da birosca.
- E o que aliás viram as quatro grandes testemunhas, Cris? Nada de concreto! Apenas que o fugitivo jogou fora aquilo que carregava. Não puderam discernir o conteúdo à distância, pela velocidade do movimento e do arremesso. Foram vítimas de uma ilusão de ótica, quase de uma miragem, à mercê dessa temperatura. Vislumbraram apenas uma forma qualquer, um volume deixando as mãos do ladrão. Duvido que algum deles sequer soubesse dizer de que objeto se tratava. Todos partimos do princípio que eram a carteira e a caixa da jóia pelos depoimentos na Maison Léclair.
- Faz sentido... Então a coisa na verdade piorou! – admitiu Cris, desanimado. – Isso significa que a jóia continua na posse de um ladrão misterioso, desprovido de uma descrição mínima ou da identificação pelas digitais.
Peter teve de concordar com a conclusão pessimista do colega.
- O pior delito – comentou – é o de ocasião. Aquele que não foi premeditado. Nos coloca no duvidoso patamar da casualidade e das pistas fortuitas. O gatuno jogou uma cartada arriscada e venceu a parada. Tudo já indicava se tratar de alguém experiente e habilidoso. Para nosso azar ainda soube agir com extrema frieza num momento de aflição. As circunstâncias o favoreceram em demasia. Entretanto, reconheçamos que soube muito bem se utilizar delas.
Enquanto especulavam sobre possíveis alternativas para descobrir o notável criminoso, um dos policiais saiu do terreno baldio, suando em bicas, com o uniforme totalmente empapado, e se aproximou da mesa.
- O que deseja, sargento?
- Chefe... Tenho um pedido em nome do grupo. Podemos prosseguir a busca sem camisa? O calor está de matar camelo. Fica na moita, como sempre...
- Não se preocupe, sargento. Mande a turma recolher e dispersar. Não há porquê prosseguir. A missão aqui está encerrada.
- Jura, Chefe? Podemos sair desse inferno?
- Se demorarem cinco minutos quem sabe mudo de idéia? - dardejou Cris, com azedume.
A alegria no seu rosto seria contagiante se as circunstâncias fossem outras. Os gritos de júbilo logo ecoaram no terreno baldio, enquanto os policiais arrumavam o material utilizado e se apressavam em partir. Uma por uma, as viaturas deixaram para trás a Birosca do Lucas, de onde os garis já haviam sumido rapidamente com os caminhões de entulho.
- Ao menos a imprensa não farejou esta matéria, pessoal. Aturar jornalistas fuçando e cobrando tornaria tudo pior. Os superiores é que vão cair sobre mim...
- São os encargos da competência, Cris – ironizou Peter. – Se você ficasse na ronda dormiria tranqüilo à noite. Mas se transformou no investigador do ano...
- Culpa sua, gênio! Não foi o que disse antes?
- Ora, Chefe... Eu e Leo lhe daremos o máximo apoio moral. Vamos acompanhá-lo à Maison Léclair, para relatar o tremendo fracasso das investigações e reconhecer que o anel está à deriva no espaço. Os ilustres figurões aguardam notícias suas. Devem estar cansados de esperar naquela mordomia. Aos seus superiores entretanto não teremos acesso. Aí terá de encarar sozinho.
- Muito obrigado! Estão me dando um apoio fenomenal...
- Interessante – murmurou Peter.
- O que?
- O sargento veio pedir em nome de todos para tirarem a camisa. Não aguentaram o calor.
- Puxa, um acontecimento mesmo deveras marcante, Peter. Uma surpresa extraordinária, realmente. Na certa deviam torcer que nevasse. Aguardar por um repentino milagre... Quem sabe alguns flocos não congelassem também nosso foragido e o transformassem num picolé entregue a domicílio?
- Quem sabe? Devia acreditar mais em milagres, Cris. Eles acontecem.
- Hora então de rogar pelo seu, Peter.
- Por que precisaria disso?
- Ora, o gênio infalível, o investigador que ostenta cem por cento de eficiência acaba de fracassar... Qual o gosto inédito do insucesso? Será que enfim o transformará num humilde ser humano?
- Cometeu um equívoco, Cris. Se esqueceu que na verdade não fui contratado por ninguém? Nenhuma das partes? Nem a seguradora? Estive no caso a seu pedido, extra-oficialmente, como de costume. Acabou sendo uma vantagem não ter os malditos jornalistas zanzando e revelando minha presença. Isto sim foi um belo milagre. Logo, não posso registrar no currículo algo do qual não participei. E se amanhã me procurarem dou uma desculpa esfarrapada e declino do caso. Por essas e outras acabou valendo me chamar. Direi meu “não” na hora certa. Desde quando foi segredo que apenas os grandes desafios me seduzem? Capturar um meliante é assunto policial dos mais prosaicos...
- O casal Bartholomée poderá mencionar sua presença na Maison. Assim como o gerente e seu assistente. Ou até o segurança.
- Não creio. O encarregado da segurança é dos meus. Quanto aos nomes ilustres, terão mais com que se preocupar. Você mesmo disse que batalharão no tribunal.
- O que mais me irrita, Peter, é que ao final sua primeira sugestão será implementada: os acalguetes em alerta, na tocaia do ladrão, quando ele ameaçar queimar a mercadoria.
- Ora, Chefe... Não se atinge cem por cento à toa! – gargalhou, dando um tapinha nas costas de Leo, que apenas sacudiu os ombros consolando o abalado Cris.


(CONTINUA)

O Anel Que Tu Me Destes (2a. Parte)


Antes de partir, Peter soube através de Cris que, para escaparem da publicidade e melhor colaborarem com o início das investigações, classificadas de sigilosas por ordens superiores, todos os envolvidos no inesperado episódio, incluindo o casal Bartholomée, haviam permanecido nas instalações da Maison Léclair. Isso lhe faria ganhar um tempo precioso. E poderia retardar um pouco sua chegada, que não pareceria tão repentina. Se eles tivessem cabeça para isso, deduziriam que fora contactado pela seguradora ou pelo influente dono da tradicional joalheria, a despeito da ignorância de seu gerente, pois era sabido que não prestava contas de seus atos a ninguém.
Nesse ínterim, localizaria seu ajudante, o maior fuçador de informações da cidade. Mesmo num domingo, graças ao seu completo e informatizado arquivo, além da memória incomum, Leo conseguiria traçar-lhe um perfil mínimo, atual e básico da situação, personalidade e preferências das ilustres vítimas. Sobre os demais, Peter lançaria mão de sua larga experiência no trato com tipos de qualquer posição social.
- Esqueça a boa vida, Leo... Preciso de informações urgentes... Me mande um apanhado daqueles que só você consegue... Sim, envie por mensagem de texto... Esprema em tópicos de uma palavra, de preferência... Anote os nomes...
Leo nem cogitou protestar. Estava habituado às emergências. Eram velhos conhecidos e associados, parceiros que jamais deixavam o outro na mão. Além disso, se por um lado Peter cobrava um absurdo por seus préstimos, sabia também recompensar regiamente todos que lhe auxiliavam. O levantamento não tardaria e seria inteiramente objetivo e confiável.
Peter atravessou lentamente os cinco quarteirões na direção da Maison Léclair. A travessia da pequena ponte asfaltada sobre o canal sempre lhe transmitia uma mudança de ares perceptível. Não era afetação, como imputara Cris, contudo um fato.
Subindo a longa escadaria da joalheria, Peter levava sua fama prévia como cartão de apresentação. Passara há muito a época em que alguém barraria sua entrada onde quer que fosse. Principalmente, se existia um assunto grave e celebridades atingidas, nada mais natural que ele aparecesse para colocar ordem nas coisas. Afinal, se tratava do prodígio “que resolvia qualquer assunto”, do mais prosaico e mundano aos complexos e bizarros. Sua infalibilidade, seu caráter profissional e sigilo total aumentavam seu cartaz diariamente. A publicidade crescente, contudo, incomodava-o não por modéstia, mas por minar o valioso anonimato ao agir.
Bastou tocar a campainha, identificar-se ao segurança e, em poucos minutos, estava acomodado numa ampla, confortável e refrigerada sala de estar, sortida de bebidas e guloseimas. Em largas e maciças poltronas vizinhas, formando um semi-círculo, Pierre Bartholomée, o conceituado advogado, Davi Goldstein, o gerente da Maison, e seu inexpressivo ajudante, cujo nome Peter mal escutura já esquecera, olhavam-no com admiração, curiosidade e expectativa.
- Sr. Schmoll, não me surpreende sua presença - murmurou Goldstein. - Um caso dessa magnitude necessita urgentemente da sua interferência. Falamos horas com a polícia e duvido que todo esforço tenha serventia.
- Tive o privilégio de atuar em inúmeros processos que contaram com a valiosa colaboração do Sr. Schmoll - reforçou Bartholomée. – Nunca tive a honra de lhe apertar a mão, todavia sua presença é tranquilizadora.
- Obrigado, senhores. Uma pena enfim nos conhecermos nessas circunstâncias. Vamos procurar remediar logo isso e liberá-los para atividades menos desagradáveis. Ah, podem me chamar de Peter, eu prefiro... - completou, enquanto esvaziava avidamente um copo de suco de laranja oferecido.
Todos sorriram confiantes ante sua cordialidade, inclusive o mirrado auxiliar do Sr. Goldstein que tratou de encher-lhe o copo de suco outra vez. A tática de Peter era surrada porém ignorada pelos três. A simpatia estava léguas distante de ser sua marca registrada, por feridas emocionais que não cabe agora relembrar.
- Sr. Bartholomée, apelo para sua paciência... Pode me relatar o que contou antes aos investigadores ?
- Sem duvida, Sr. Schmoll... Aliás, Peter... Precisava comprar um presente para minha esposa. Hoje é nosso quadragésimo aniversário de casamento. Não me perdoaria se deixasse a data em branco. O lógico seria tratar disso durante a semana. Todavia ausentei-me a trabalho, não tive tempo mesmo para nada. A Maison Léclair foi compreensiva e franqueou-me o estabelecimento no domingo. Tudo caminhava bem até o tiro sair pela culatra.
- Preparavam-se para entrar no táxi quando tudo aconteceu?
- Sim. Ele surgiu do nada, vindo por trás, enfiando a mão no meu bolso. Quando dei por mim e gritei, já estava quase na esquina. Felizmente vimos dois policiais no seu encalço. Soubemos que para não ser agarrado atirou tudo num terreno baldio. Menos mal... Logo a polícia deverá encontrar o anel. Esta é a razão fundamental de permanecermos aqui. Quer dizer, minha esposa repousa também na sala ao lado. O susto elevou sua pressão, convém aguardar.
- Sinto pela sua senhora. Enfrentar todo esse constrangimento nessa data festiva.
- Graças a Deus ela é uma mulher forte. Mais um pouco e ficará bem. Coloquei uma compressa fria em torno de sua cabeça para aliviar a enxaqueca. Ela reage bem aos tratamentos simples.
- Fico feliz em saber disso... Sr. Bartholomée, se importaria em ficar de pé?
O advogado sequer preocupou-se em perguntar o porquê. Obedeceu ao pedido de Peter, embora demonstrasse certa curiosidade.
- O anel e a carteira estavam no bolso direito do seu casaco?
Enquanto Bartholomée assentia com a cabeça, Peter esgueirou-se agilmente por trás dele, simulando o ladrão. Colocou naturalmente a mão no bolso do sobretudo e constatou que era bem fundo mas estreito, daqueles que acolhem em segurança qualquer pequeno objeto. Repetiu o gesto de introduzir e retirar a mão, buscando especificar seu grau de dificuldade, apesar de conseguir fazê-lo com facilidade.
- Uma coisa podemos ter certeza... – diagnosticou.
- O que? - perguntou o gerente, impressionado com a reconstituição.
- Nosso homem é um profissional. Não é simples colocar a mão num bolso fundo assim com tamanha presteza e eficiência. Um amador se atrapalharia todo, enrolaria os dedos na borda, seria agarrado no meio da tentativa.
- Mas ele deu foi muita sorte! – enfureceu-se o gerente. – Atirou no escuro e achou mais do que a carteira do senhor Bartholomée. Encontrou coincidentemente a caixa do anel. Não tinha como saber e conseguiu um bilhete premiado.
- Minha experiência, senhor Goldstein, ensina que a chamada sorte acompanha os competentes, mesmo quando a causa não é nobre. Lidamos com um experiente surrupiador, não apenas com um reles punguista. Deve ser fichado, fácil de identificar.
- Sejamos francos, senhor Schmoll. Nem eu, o senhor Bartholomée, o proprietário ou a seguradora – o gerente enfatizou esta última palavra, como que insinuando que Peter se encontrava ali a serviço dela – estamos interessados no tal sujeito. A polícia que trate disso e faça sua caçada. Queremos recuperar o anel e evitar atribulações futuras. Ao que parece isso deve ocorrer a qualquer instante, pois este se encontra num terreno baldio próximo. Quando trouxerem a boa notícia iremos todos embora para nossas casas e o assunto, por nós, estará encerrado.
Davi Goldstein suava frio naquele ambiente climatizado. A espada estava sobre seu pescoço, apesar de, a rigor, ser uma vítima indireta dos fatos. No entanto seu patrão sempre buscava uma cabeça para decepar e a dele estava à beira da guilhotina.
- Então nem vou perguntar se conseguem descrevê-lo... Seu interesse na ordem das coisas é comovente.
Os três entreolharam-se bastante surpresos. Começavam a lidar com o verdadeiro Peter Schmoll, o do nome completo, sendo difícil perceber se estava sendo irônico ou conclusivo. Se tivessem chance de conhecê-lo melhor descobririam que ambas as facetas não se dissociavam nele.
Ignorando o assistente de Goldstein no seu interrogatório, Peter pediu licença ao trio e se dirigiu ao segurança postado na ante-sala, deixando-os agora aliviados por sua ausência. Não era incomum causar essa sensação, que passava do fascínio ao desconforto num intervalo curto.
- Tanta confusão num domingo abafado, hein?
- Foi inesperado, senhor Schmoll. Nunca passamos por isso antes.
- Apenas Peter... Trabalha há muitos anos aqui?
- Sim, sou o Chefe da Segurança. Quase doze anos de casa. Certas horas o posto é uma desvantagem. Por isso fui designado para vir acompanhar a visita. Quando abrimos excepcionalmente, sempre sobra para mim.
- Entendo. Conhece então o senhor Bartholomée há tempos, certo?
- É nosso velho freguês. Cliente bom e fiel. Um cavaleiro educado e distinto. Comprou muito aqui, em especial nas épocas natalinas. Andou afastado ultimamente mas eles acabam retornando com seu dinheiro. Quando a data procede, não há estabelecimento que supere a Maison Léclair.
- Por que não os escoltou ao carro?
- Ninguém achou que fosse necessário. Bastava descer e entrar no táxi, que aguardava de porta aberta. Olhei antes pela janela da frente e não havia viva alma na avenida. O gatuno estava de tocaia, agora sabemos. Talvez encoberto com a ajuda involuntária do veículo, atrás do poste de iluminação. Além disso, o senhor Bartholomée, ou sua esposa, tinha pressa. E eu precisava fechar tudo, guardar certos estojos valiosíssimos no cofre forte, norma número um de segurança interna.
- Ele não costuma se deslocar nos seus carros particulares? Ao que consta, Bartholomée possui uma frota deles, de várias marcas e modelos, com chofer à disposição. Logo hoje veio de táxi?
- Ah, o senhor Goldstein também ficou curioso. Eles têm alguma intimidade e indagou sobre isso. Parece que madame Bartholomée vinha exigindo horas extras de seu motorista e o marido não quis sacrificar-lhe o domingo. Havia prometido deixá-lo livre para não perder suas competições esportivas, seja lá quais forem...
Peter riu com o segurança, um tipo simpático e sultimente mordaz no seu jeito contido. Havia captado uma pequena ironia no fundo daquelas pretensas horas suplementares que “madame exigia” e nas desconhecidas “práticas atléticas”, embora tal morresse no mesmo instante.
- Queria trabalhar para alguém assim, não é? Que respeitasse os seus domingos?
Ele concordou sem pestanejar, despedindo-se com um largo sorriso. Peter retornou à sala de estar e perguntou ao ainda lívido senhor Bartholomée:
- Poderia trocar uma palavrinha com sua senhora? Prometo não perturbá-la...
Ela descansava próxima numa espécie de saleta de reposição, cujas paredes cobertas de extensas prateleiras empilhavam uma infinidade de caixas e estojos utilizados na Maison Léclair, na proteção e venda de suas peças. Um convidativo sofá forrado de veludo providenciava o descanso necessário ao restabelecimento da frágil mulher.
Uma década e pouco mais jovem que seu septuagenário marido, a senhora Bartholomée era uma sessentona vistosa, bem cuidada, exibindo uma beleza exótica como a famosa jóia que ganharia. Peter lembrava de haver lido que na época a união provocara um certo escândalo. O advogado em ascensão, de tradicional linhagem, se unindo a uma fulgurante estrela de teatro de variedades não fora bem digerido pelas mentes conservadoras. Nada difícil conjecturar o que atraíra Pierre Bartholomée nela quarenta anos atrás. A verdade é que, apesar dos prognósticos pessimistas, o casamento durara este tempo todo, destilando verdadeiro amor e harmonia, sem que se soubesse de percalços ou tropeços dignos de nota.
- O senhor é Peter Schmoll, o reconheço das fotos nos jornais. Foi contratado por conhecidos meus no passado, falaram maravilhas do seu trabalho.
- Sinto que passe por isso numa data tão importante, senhora.
- Não será suficiente para abalar nossa felicidade, meu jovem. Mas minha pressão é delicada e sucumbiu ao susto. Estou melhorando da enxaqueca. O cataplasma gelado que meu marido carinhosamente preparou opera maravilhas em mim.
- Se me permite, senhora... – Peter inclinou-se respeitosamente sobre o divã onde ela repousava e ajeitou melhor a larga compressa na testa. – Ele aplicou-a bem firme... Não a incomoda? Prefere que afrouxe um pouco?
- Estou acostumada, senhor Schmoll. Não se preocupe. Prefiro assim. A idade nos prega tais peças. Felizmente tenho quem cuide de mim.
Peter não se incomodou que ela o chamasse de senhor Schmoll. Sabia conceder direitos aos que padeciam e ele próprio era vítima de eventuais dores de cabeça.
- Não há descrição física do ladrão, senhora. Mulheres costumam ser mais observadoras, capturar os detalhes. Qualquer coisa me serve: altura, corpulência, cor do cabelo, roupas... Os próprios policiais se concentraram na perseguição e não souberam apontar uma única característica. É como se a figura não existisse. Pode me dizer algo? Para onde olhava no momento do ataque? Viu o sujeito, por acaso?
Ela ficou visivelmente encabulada.
- Sinto decepcioná-lo, senhor Schmoll. Achará ridículo o que eu fazia no momento do golpe. Estava cantarolando, não em voz alta, mas comigo mesma.
- Cantarolando? – Peter cada vez mais absorvia as surpresas da vida.
- Sim. Um velho hábito dos meus tempos de artista teatral. Um vírus que nunca se perde, o dos palcos. Entenda que eu estava muitíssimo feliz. Pela data, pelo presente, por compartilhar tudo com meu marido. Assim, tomada de alegria, cantarolava aquele velho trecho de cantiga: “o anel que tu me destes...”. Lógico que minha versão da adorável “Ciranda, Cirandinha” tem adaptações. O anel não é de vidro, nem o amor se acabou...
Ela cerrou os olhos emocionada e virou-se para o lado soluçando baixo. Peter compreendeu que a entrevista acabara e não havia porque insistir. Havia um lado patético em tudo aquilo, porém acima de qualquer sarcasmo. O tempo urgia, a tarde esvaía rapidamente e nenhum sinal do que todos queriam: o valiosíssimo anel de pérola South Sea.
- Peter – implorou o gerente. – São quase 16 horas. Como não conseguiram ainda achar o anel? Não sabem vasculhar um simples terreno? Quanta incompetência!
- Não sou responsável pela busca, senhor Goldstein. Porém tenho contatos na força policial. Estou indo lá agora acompanhar de perto os trabalhos. Realmente é muito estranha essa demora...
Ao se afastar da Maison Léclair, deixando um bando de lamuriosos atrás de si, Peter verificou seu celular. As mensagens de texto prometidas por Leo se encontravam disponíveis. Constatou que as informações sintetizadas confirmavam tudo que percebera deles, no aspecto comportamental. Nada acima do superficial ou óbvio. Gente famosa era extremamente desinteressante por um lado. Por outro, a situação financeira individual revelara certas surpresas, embora nada que fosse decisivo ao mistério do sumiço da jóia.
Uma última mensagem de Leo dizia que se encontrava no local das buscas, ao lado de Cris, no Bar do Lucas, bem defronte ao terreno baldio, aguardando com informações adicionais.
Peter suspirou fundo. Hora fatídica de cruzar novamente a ponte sobre o canal, passando da Maison à Birosca.


(CONTINUA)

quarta-feira, 26 de março de 2008

O Beijo de Maira

Dizem que os anjos encarregados de uma curta missão terrena chegam como bebês ou crianças que partem deste mundo cedo. Francamente não sei o que é verdade nessas horas. O quanto a poesia que embasa uma tristeza consegue atenuar o sofrimento dos que são atingidos. Certos desígnios sempre carregarão um aspecto duro e incompreensível, mesmo aos que acreditam e tem fé em Deus. Novos seres costumam trazer consigo a esperança. A renovação de situações na forma de um sorriso, uma covinha, uma mecha de cabelo.
Muitas vezes esses anjos não chegam a nascer, a contemplar o rosto de seus familiares. Mas isso não os impede de cumprirem uma tarefa. Que pode começar na expectativa da concepção, reafirmando o comovente milagre da vida. Ao crescerem no útero materno, sendo detectatos na ultra-sonografia, ou escutarmos as batidas surdas mas decididas de um coração se formando, sentimos o espírito abrandar. O nascimento, antes de tudo, é a reafirmação de um pacto maior. Um choro que traz serenidade, uma sucessão de extremos cuidados que transmitem alegria, além da força que extraímos para enfrentar o futuro. Seja relativo aos filhos, netos, sobrinhos, primos ou dos amigos.
Contudo nem todos os seres humanos são iguais, nem todas as almas se mostram uma matéria-prima a ser modelada facilmente. Em casos assim a missão angelical pode ser árdua e não menos amorosa. Estes são os alvos principais desses seres efêmeros, de rápida passagem entre nós. Se não encontram a chance de crescerem, despertam a luz onde havia escuridão, apesar dos males físicos e emocionais iniciais. O seu bater de asas, rápido como o do beija-flor, deixa o rastro de uma brisa tênue qual um afago. Um bálsamo às lágrimas e a dor do primeiro momento, o carinho que desmancha o nó formado no peito. O terreno fértil que germina a semente luminosa aos que precisam.
Maira foi um desses anjos cativantes. As letras de seu nome traziam afeto e poesia. Algumas delas combinadas formam “irmã” ou “rima”. Outra disposição e formamos “Maria”. O som doce dessas palavras induz ao lirismo, a crermos na lenda que explica sua perda prematura. O pacto não foi rompido, pelo contrário. Ele repercute agora, mesmo que o desencanto nos impeça de ouvi-lo. Mas abra o espírito, pois os versos que o confirmam pairam no ar, na sua aragem perfumada.

Se Maira pousou um dia,
Na leveza de tantas rimas,
Assim beijou esta família,
Que esperou bela menina.

Se Maira levantou um dia,
E comoveu tão linda irmã,
Ainda brindou esta família,
Que numa Maria tem a tia.

Que a reprodução de anjo colocada hoje em sua lápide, pela mais delicada das mãos, seja o terno reconhecimento do que plantou e se colherá. Porque se nem tudo na vida são sonhos, muito menos serão somente pesadelos.

P.S. Maira partiu aos oito meses de gestação, na noite de 25 de março de 2008, na cidade de Cabo Frio, RJ, sendo enterrada no dia seguinte. Aos que lhe desejaram um sincero “descanse em paz”, ela responde, de onde estiver, com seus beijos de “vivam em paz”. Se ainda não os escuta, não esmoreça, pois ela jamais desistirá de você.

domingo, 23 de março de 2008

O Anel Que Tu Me Destes (1a. Parte)


- Por favor, Cris, resuma... Tive uma péssima noite, dormi pouco.
- Muito simples, Peter. Bem aqui na nossa frente, esse terreno baldio tomado de policiais, restos de lixo e objetos abandonados. Cinco quarteirões abaixo, à direita, depois do canal, fica a sofisticada Maison Léclair, a célebre joalheria. Hoje, por volta do meio-dia, o honorável senhor Pierre Bartholomée desceu a escadaria da frente acompanhado da esposa, do gerente e de um ajudante rumo ao táxi que o aguardava. Havia levado em confiança, para quitar amanhã, um anel de pérola. Enquanto tratavam das despedidas, Bartholomée deu um grito. Levou a mão ao casacão, dando por falta da carteira e do pequeno estojo da jóia. Apontou um sujeito que acabara de esbarrar-lhe e partia em desabalada carreira nessa direção. Ninguém conseguiu esboçar reação e o camarada desapareceu da vista.
- Não acredito que me chamou aqui por isso...
Há algum tempo, Peter Schmoll se ressentia do papel atípico que desempenhava no mundo das investigações, embora lhe fosse sempre proveitoso. Como detetive particular ocupava uma posição rara: era adorado pelos guardas e delegados porque jamais interferia nas investigações ou sonegava pistas. Compartilhava tudo que sabia e recebia de volta tratamento igual, em termos extra-oficiais. Além disso, quando estava envolvido profissionalmente, contratado por alguma parte interessada, resolvia os casos mais complicados, aliviando as autoridades de situações vexaminosas. Muitas vezes até abrindo mão dos louros da solução, para alegria daqueles que colhiam o reconhecimento sem o mínimo esforço. Contudo, do cheque polpudo ele não abria mão. Aliás, convém mencionar o fato que somente figurões ou ricaços o contratavam, pois seus serviços eram extremamente caros, baseado nos cem por cento de eficiência que ostentava.
O problema é que recentemente os chapas da lei o solicitavam também em situações onde não tinha interesse direto, utilizando o poder da farda e do tráfico de influências para convencê-lo. Porque sua simples figuração tranquilizava os ânimos e permitia que a engrenagem funcionasse liberta de ingerências, na proporção direta da gravidade do problema. Sem desejar indispor-se nos altos escalões ou alterar um panorama favorável, construído durante anos de trabalho meticuloso, se fazia de completo desentendido e ajudava generosamente. Uma noite mal dormida, no entanto, o tirava do sério, fazendo-o reclamar acintosamente.
- Ah, que troço chato, Cris. Qualquer novato cuida disso. Espalha os alcaguetes e quando o otário queimar a mercadoria se dá mal.
- Peter... Estamos falando do advogado Bartholomée e da Maison Léclair. Não sabe quem é o proprietário da joalheria? Então...
O sonolento detetive concordou com a cabeça. Aqueles argumentos eram irrefutáveis, principalmente no auge da insônia.
- Outra coisa, Peter... Certamente alguma das partes envolvidas vai dispor de seus serviços, cedo ou tarde. Se o anel não for recuperado haverá um desagradável embate nos tribunais. Ninguém vai querer sair perdendo.
- Como assim?
- Bartholomée levou a jóia em total confiança. Deveria saldar a dívida amanhã. Não houve assinatura de compra ou mesmo preenchimento de nota fiscal. Trata-se de um cliente ilustre e de posses, merecedor de regalias. Vão discutir juridicamente se a venda havia sido caracterizada. Ele podia inclusive desistir da compra no dia seguinte, acontece. Ou alegar que o roubo se deu na imediação da Maison, tanto que saiu do local acompanhado pelo gerente e um assistente, transferindo a responsabilidade. O estabelecimento, por sua vez, afirmará que já negociou assim antes, inclusive com o senhor Pierre, formalizando um consensual modus operandi. A própria seguradora acompanhará com interesse, não vai querer arcar com o prejuízo. Vai por mim, amigo, o melhor para todos é recuperar o objeto.
- Tanto barulho por um anel...
- Ah, não é um anel qualquer... Trata-se de uma pérola South Sea.
- Falou grego.
- Um homem tão instruído e requintado... Conhecedor das coisas boas da vida. Pensei não existir assunto que desconhecesse, Peter.
- Gosto de arte, de vinhos e de estudar a História. Enfeites não me interessam – sentenciou, impaciente, consultando o relógio de pulso.
- A South Sea é uma pérola natural rara, encontrada apenas, como o nome indica, nas profundezas dos mares do sul, a sudeste da Indonésia e das Filipinas. Não pode ser cultivada, o que aumenta muito o seu valor. Ela é produto de condições ambientais peculiares, que lhe conferem às vezes um tom dourado, e não se acham nesse matiz além de duas centenas por ano. Valorizando ainda mais o conjunto, o engaste é incrustrado de diamantes, gemas puríssimas cortadas com precisão, acondicionado num pequeno estojo preto e padronizado. Dois e meio centímetros de jóia valendo a bagatela de 500 mil dólares.
- OK. Peguei o espírito da coisa... Casinho insosso.
Peter observou a movimentação dos guardas no terreno baldio. Eles iam revirando tudo, ocupando uma área de cem metros quadrados como animais revirando lixo e entulho à procura de restos. Era nítido o insucesso deles, irritados por colocarem a mão na sujeira e no fedor sob o mormaço forte das duas da tarde.
- Se a ocorrência foi lá, cinco quarteirões adiante, defronte a Maison Léclair, por que estamos parados aqui?
- Porque agora talvez eu lhe torne o caso rápido, menos chato e à altura da sua genialidade, senhor Peter Schmoll.
Peter sorriu sinceramente com a ironia. Essa linguagem entendia e o ajudava a despertar os sentidos.
- Quando surrupiou a carteira e a caixa do anel, disparando pela rua, o ladrão cruzou com uma dupla de patrulheiros na primeira esquina depois da Maison Léclair. Infelizmente faziam ronda a pé. Alertados pelos gritos histéricos de Batholomée e companhia, e pela pressa do sujeito, trataram de persegui-lo. O cara tinha asas nos pés mas os nossos tiras também. Quando estavam quase alcançando o vigarista, passando pelo terreno baldio, ele se livrou da mercadoria atirando para o lado tudo que carregava. Curiosamente, ao perceberem isso, ou até pelo cansaço, os policiais preferiram isolar a área e proteger os objetos, aguardando a chegada urgente de reforços. Viram de onde provinha a fonte da riqueza, se é que me entende...
Apontou na direção da imponente Maison Léclair, além do canal, uma construção de opulência detectável mesmo à distância.
- Mas pelo jeito, Cris, ninguém encontrou nada ainda...
- Apenas a carteira do senhor Bartholomée, intacta. Enviamos para a coleta de digitais. No final da tarde podem ter algo e informam de imediato
- Nenhum sinal da jóia, evidentemente...
- Não.
Peter passou a mão na cabeleira e suspirou aliviado. O caso indicava possibilidades, ao menos não o mataria de tédio.
- Há quanto tempo essa turma está vasculhando?
- Quarenta e cinco minutos. Acharam a carteira no princípio, com uns dez minutos de busca. Estava perto de um monte de latarias enferrujadas, na dianteira do terreno. Concentraram os esforços ao redor delas, sem resultado.
- Estranho... O ladrão no seu desespero, ofegante, não conseguiu arremessar muito longe. O anel deveria ser encontrado perto da carteira.
- Sei lá, Peter. Isso é sempre aleatório. Um terreno todo acidentado, cheio de ondulações e desníveis, coalhado de quinquilharias... Uma caixa de jóia pequena e leve pode ter quicado, ido ao acaso noutra direção, entrado numa lata ou caixa... Andando não saiu, certo? Questão de paciência...
- Além da nossa dupla de corredores, alguém mais assistiu a correria e os objetos serem jogados no terreno baldio?
- Sim, na birosca da outra calçada. Um padre e um aposentado molhavam a garganta ali e cuidavam a rua. Relataram a mesma história dos patrulheiros. Ao passar pelo terreno, o tratante se livrou do que segurava. De onde estavam não podem afirmar o que era, mas que atirou suas coisas, não há dúvida.
- Valha-me... Que contraste... De um lado do canal, a Maison Léclair, gente fina e patrulheiros zelosos da propriedade individual. Do outro, a Birosca do Lucas, terreno baldio imundo e dois mamados vigiando a área... Mundos próximos e distintos. Parece a época do Muro de Berlim...
- Peter, como você é afetado, amigo – gargalhou Cris, dando-lhe um tapa amigável nos ombros. – Gostaria de falar com as testemunhas?
- Se quer minha ajuda, faça-me um favor: mantenha o padreco e o velho fora de vista. O pouco que tinham a dizer não é novidade.
- Tudo bem, calma... Por onde vai começar?
- Por você, Cris... Alguns pontos me intrigam...
- Quais?
- O que aconteceu com a famosa segurança da Maison Leclair? Não havia gente deles na calçada, impedindo a usual abordagem de oportunistas ou pedintes? Um estabelecimento desse nível costuma ter inúmeros...
- Sem mistério, Peter. Esqueceu que hoje é domingo? Abriram com o mínimo de funcionários necessário. Apenas um segurança interno, além do gerente e seu auxiliar. Não há quase movimento nessas imediações nos finais de semana. Aqueles patrulheiros, na verdade, são um luxo despropositado. Entretanto além da Maison existem outras lojas de primeira linha, de grife, no lado nobre do canal. A presença da polícia circulando confere um requinte adicional.
Peter voltou a agitar a cabeleira desgrenhada, afugentando o calor.
- Abriram unicamente para atender Pierre Bartholomée?
- Sim, uma venda de urgência, sondei ligeiramente. A transferência bancária seria realizada amanhã, na agência. Parece que o veterano advogado não confia em transações pela Internet, nem carrega talão de cheques ou cartões.
- Uma venda de emergência? Só faltava essa... Tanta deferência aos notáveis... E por que o nosso abonado comprador precisou de um táxi? Não possui uma frota de carros e uma tropa de motoristas para servi-lo?
- Aí não sei dizer, Peter.
- Bom, respondendo sua pergunta anterior, vou dar a partida além do canal. No lado nobre, como diz. Xeretar a gente fina. Me apresentar como contratado de alguém interessado na solução de tudo. Vão desconfiar uns dos outros e ficar à mercê... Ah, um conselho: dá uma pausa ao pessoal se liquidando no terreno. Senão eles derretem e acabam sumindo também...


(CONTINUA)

quinta-feira, 20 de março de 2008

Batismo de Fogo (Conto)


Ao arremessar um copo de plástico para o alto, Sparta deflagrou uma sequência de eventos tão desinteressantes que sequer deveriam ser citados. Muito diferente do que ocorrera mais cedo. Ainda houve quem perdesse tempo especulando sobre seu gesto absurdo, ridículo e repetitivo. Na mesa ao lado, um jovem não perdeu a chance de procurar motivos que explicassem aquela insistência. Noutra, os olhares de censura desfiguravam as feições rudes do rosto, obtendo inúmeros seguidores, denotando o profundo desagrado pela infantilidade. À esquerda, um senhor que rira pela última vez quando entrara na puberdade, denunciava com sua sisudez que os bons tempos de outrora terminaram. Porém, o que mais irritou alguns no recinto foram os pedidos de desculpa imediatos, aquela sede de perdão implícita, logo após as poucas gotas d’água batizarem uma minoria desafortunada.
-- Perdoem, estava morna. Não foi minha intenção.
Sparta nunca fora original ou brilhante. Mas algo mudara nele, óbvio. No suadouro do refeitório, agravado pela algazarra, aquela chuvinha inofensiva fora um sopro ineficaz, mas umedecera as expectativas. O copinho já viera com a água quente, isentando-o em parte. A rigor, ele não tinha obrigação de se retratar, embora o fizesse de maneira franca. O tal jovem curioso sentiu-se no dever de responder, pois o criticara para as duas moças que lhe faziam companhia.
-- Se estivesse gelada não falaria nada?
Muitos se voltaram divertidos pela pergunta do franzino intelectual e duvidando de uma resposta que confirmasse o novo temperamento de Sparta.
-- Se estivesse gelada, Príamo, teriam de me agradecer.
O recinto era bastante quente sim. Não existiam janelões ou buracos de ventilação adequados. Na parede da direita ficava a cozinha, responsável pelo infernal ambiente de sauna. No lado oposto, demarcado por duas portas giratórias, o acesso rápido ao exterior, um paraíso de frescor ambicionado urgentemente. No entanto, as refeições permaneciam atrasadas e sair dali seria perda de tempo, pois teriam de enfrentar novamente uma longa fila.
Antes de responder para Sparta, Príamo teve a atenção desviada por um irrequieto casal de namorados. As mãos de um retorciam as do outro, numa confusão de dedos e unhas. Cutucou o colega sem abrir a boca, indicando com os olhos arregalados o desconforto dos jovens pombinhos. Os dois se entreolharam como quem afirma eu não te disse, camarada, que namoro sério dá nisso?" A mocinha reclamava sem parar deixando o rapaz visivelmente zonzo.
-- Eu disse para não virmos! Saquei logo que esse programa era roubada...
-- Tinha grana apenas para isso, Anjo. Pelos folhetos parecia não ser ruim. Ônibus confortável, belo passeio, bom almoço, gente divertida...
-- Gente divertida? Com um bobão que esparrama água em cima dos outros? Ele não se cansou disso ainda? Fez essa mesma babaquice no ônibus mais de uma vez. E cadê homem para dar um tranco nesse idiota?
-- Ah, espera aí, garota!
O tal senhor mal humorado se levantou e caminhou na direção dela.
-- Quando quis tomar uma atitude já na primeira vez, um monte de passageiros me criticou. Disseram que o carinha era de um grupo de estudantes e precisávamos compreender como são nessa idade. Você própria me encarou de um jeito esquisito. Então tinha homem lá dentro, bolas. Depois fica fácil reclamar!
Como seu namorado nem esboçou replicar ao parrudo, ela se calou e vestiu a carapuça. Afinal, bancara mesmo a magnânima e paciente com o rapaz.
-- Nunca passei por uma situação tão constrangedora, Fred... Olha quanta gente! Vai levar horas! Sem dinheiro para algo melhor...
Príamo assistiu aquilo preocupado. Tinha duas moças na sua mesa, que convidara à excursão com segundas intenções. Até agora estavam caladas, provavelmente chocadas com o programa de índio que se meteram. Se resolvessem seguir os passos da reclamona teria perturbação em dose dupla. Talvez necessitasse se aliar com Sparta, diluindo as possibilidades de um ataque feminino em larga escala.
-- Amigo, não tem queda por louras? Quer sentar conosco? Tive de trazer ambas... A prima estava de visita, se não carregasse junto a Meg não viria.
-- Não gosto de louras. Prefiro as ruivas.
-- Puxa, Sparta! Depois de tudo ainda fica escolhendo garotas? Não ataca a loura porque prefere as ruivas? Você é complicado, hein?
-- Não acho graça nas louras.
-- E morenas? Tipo a Meg? Vá lá, abro mão e...
-- Somente ruivas...
Um senhor com aspecto pacato e conciliador levantou-se abrindo os braços, solicitando atenção. O tédio, que se insinuava por todos os poros pegando carona no calor sufocante, ajudou na sua pretensão.
-- Sei que todos tivemos um contratempo bem desagradável. Nessas horas, no lugar de queixas e recriminações, precisamos demonstrar boa vontade, amigos. O ambiente está mais pesado que o necessário. Qualquer um sente isso.
A loura desprezada por Sparta enfim abriu a boca.
-- Não deve ter nada melhor a fazer, vovô! Contratempo?
Outros começaram a protestar causando uma repentina balbúrdia. Na confusão, Sparta tratou de atirar todos os copinhos disponíveis, sendo imitado por Príamo na sua frustração de algo para fazer. O motorista do ônibus, que poderia anunciar um ponto final naquele confinamento forçado, não aparecera ainda com as tão ansiadas boas notícias. Devia estar muito ocupado nos reparos. Na sua presença, certamente, os rapazes o poupariam da brincadeira estúpida que motivara sua retenção ali por tanto tempo, suando numa sauna involuntária, à espera das refeições atrasadas e do conserto do veículo.
Entretanto, a babel recrudesceu e as discussões acaloraram. A nota excludente era Meg, que permanecia absorta a tudo, fisionomia melancólica e dispersa no infinito, consolada inutilmente pela prima loura. Os demais apontavam irados os dedos entre si, trocavam ofensas e cogitavam cobrir Sparta de tapas depois de resolverem suas pendências mútuas. O senhor que pedira há pouco serenidade recolhera os braços e nem ousava mais abrir a boca. O jovem casal de namorados não discutia, porém sentara-se em mesas separadas, um de costas ao outro. O homem parrudo radicalizava, preparado para erguer uma cadeira contra quem estivesse mais próximo, com toda a força que a inanição lhe permitisse.
-- Em nome do bom Deus, o que se passa aqui?
As portas de entrada se abriram repentinamente, dando passagem a um elegante maître, acompanhado por um séquito de doze esguios garçons, todos impecáveis em seus trajes e maneiras, profissionais até a raiz do cabelo. A visão daquele grupo e a pergunta solene, cheia de autoridade, aquietaram a maioria.
O parrudo baixou a cadeira, mas não se fez de rogado:
-- Nos diga você o que se passa nessa espelunca! Estamos retidos há séculos nessa fornalha, cansados e famintos, e nada acontece. Nem comida, nem motorista, nada mesmo! Serviço de segunda, hein? E não aceita protestos?
O maître respirou fundo, puxou toda sua experiência e se aproximou dos clientes, ficando no centro de uma roda de mal humorados e reclamantes.
-- Estão todos cobertos de razão. Entretanto entendam que existem outros para atendermos. O movimento, certas vezes, ultrapassa o programado. Por outro lado, não precisam de comida. Quanto ao motorista, no fundo sabem porque não veio. Ficou no hospital, sob cuidados. Deverá ter alta em sete dias.
Seria normal uma reclamação enfática ao ouvirem um prazo assim tão longo. Mas o maître transmitia calma e dominara os ânimos sutilmente.
-- Como lhes disse, senhoras e senhores, não precisam mais se preocupar com comida. Ou bebida... Não é Sparta? Aliás, acho que já bastou por hoje, concorda? E devem esquecer de vez o motorista. Ele está salvo, um milagre. Quando nosso rapazote estabanado atirou o terceiro copo no interior do ônibus, no instante exato de uma curva, quem imaginaria que cairia na cabeça do chofer? Ele se assustou, tentou frear desesperadamente, virar ao máximo o volante do veículo. Contudo estavam na borda de uma ribanceira íngreme e a aceleração tornava impossível evitar a queda. O Seu Marcos foi cuspido do veículo e amortecido por um ninho de arbustos. Escapou com arranhões, escoriações e um pequeno traumatismo no tórax. Todos vocês, lamentavelmente, pararam no fundo do precipício. A sorte não lhes sorriu.
Numa fração de segundo, as imagens do acidente retornaram céleres às memórias do grupo. A morte havia sido rápida, indolor. Muitos estavam cochilando e não perceberam a trágica sequência dos fatos. Uma letargia parecia dominá-los agora, qualquer ânimo de protestar desaparecera subitamente. As palavras do maître produziram um eco simbólico em seus tormentos, resgatando do limbo instintos essenciais, acima de valores tornados anacrônicos.
-- O que acontece conosco agora? – alguém indagou, representando um pensamento comum, uma curiosidade natural.
-- Agora vou cumprir minha função. Sentar-me naquela mesinha do canto e aguardar sua decisão. Farão uma fila e, com honestidade de propósitos, revelarão aquilo que consideram merecer. De um lado, temos as vicissitudes e desconforto da sauna, do suadouro como andaram batizando. A cozinha do inferno. No lado oposto, a brisa, o antídoto, a temperatura amena e paradisíaca. Não interpretem ao pé da letra ambos, mas será assim que os perceberão. Aqui é o lugar que se determina onde viverão eternamente. Não os julgarei. Seres humanos costumam bancar os juízes mais severos de si próprios. Meu Senhor já os perdoou. Resta saber se estão prontos a também se outorgarem o mesmo direito. Acreditem que, longe do seu senso de oportunismo terreno, teriam maior chance de clemência se nós deliberássemos seu destino... Vamos começar com você, Sparta?
Tremendo, o jovem se aproximou em lágrimas, cabeça baixa e espírito destroçado. A consciência o atormentava pela perda de tantas vidas numa brincadeira idiota. Percebia os olhares acusadores em volta, penetrando cada poro da sua pele qual uma agulha. Tudo muito recente e não menos doloroso. As marcas físicas e emocionais permaneciam. Os gritos derradeiros o ensurdeciam na mesma proporção dos sonhos abortados. No íntimo, seu impulso imediato solicitava-lhe afastamento e solidão, cobrando resoluto uma expiação condizente. Somente Meg, impotente no seu alheamento, poupava-o dessa terrível convicção. O maître sorria, procurando dar-lhe o apoio e a confiança do qual não dispunha. Assim como seus auxiliares, mesclados ao restante do grupo, na tentativa de transmitir aos demais um mínimo de paz nesse momento crucial.
Sparta seria o fiel da balança, o fator decisivo de perdão irrestrito, embora o maître soubesse que a ordem correta sempre se impusesse ao final. E que céu e inferno se constituíam em estados da alma, induzidos pela leveza da consciência, inexistindo materialmente. Os rios corriam plácidos ao mar e, superados trechos turbulentos, jamais deixariam de fazê-lo. Aquele moço carregava não os pecados do mundo, porém seu remorso pessoal. Similar a Meg, que demonstrava não haver absorvido ainda os novos acontecimentos. Mesmo Cristo tivera seus momentos de angústia e dúvida na longa travessia noturna do Monte das Oliveiras até à ressurreição. Aquelas pessoas amedrontadas tiveram suas existências ceifadas e sua excursão interrompida no meio do caminho, mergulhando em densas trevas individuais que no presente manchavam sua visão.
Todavia elas iriam descobrir na sua luz interior que a maior das jornadas apenas começara.


FELIZ PÁSCOA PARA TODOS!

domingo, 16 de março de 2008

Vidas Amargas, Medos Difusos


Onde estará o sol que nós aquecia?
Guardado, esperando o momento,
Brilhando longínqüo qual incenso,
Abençoando este futuro de alegria.

As certezas por nós são construídas,
Na atração irresistível dos desejos,
Na força carinhosa de doces beijos,
No abraço protetor que a faz querida.

Procuro sempre tua face na neblina,
Nas brumas do tempo, se escondida,
Se na pousada vejo um sorriso de menina,
Na morada descubro o encanto da mulher.

Tantas noites a dois, tantas histórias,
Tateando juntos longas madrugadas,
Ao amanhecer, o renascer em glória,
De corações servis destas cavalgadas.

Outros desafios, antigos segredos,
No toque mútuo o valor da alforria,
O prazer de propor novos enigmas,
O pacto de recriá-los todos os dias.

Se o caminho é longo, o que importa,
Ao seu final aguarda a maior riqueza,
Na travessia impetuosa da Mudança,
O encontro natural da nossa certeza.

No lugar de bradar aos ventos,
Quero sussurrar ao teu ouvido,
Palavras de doçura e de alento,
Frases que invadem ao infinito.

Não será a cavalo, mas vindo num carro,
Não tenho armadura, somente as vestes,
Não há doença, apenas nossas crenças,
Não existe separação e sim a redenção.

Faces cruas exibindo vidas amargas,
Semblantes vívidos e medos difusos,
Quando a minha mão se fechar na tua,
Acenderemos até o lado escuro da Lua.

sexta-feira, 14 de março de 2008

A Linguagem das Estrelas

O céu estrelado está mais próximo do que nunca.
Todos os tetos para onde convergem olhares, suspiros ou desejos se tornam o painel celeste da emoção. Basta que realmente sintamos algo verdadeiro, pleno de luz própria, projetando a luminosidade que emerge da entrega.
Os telescópios apontam para o alto no balanço do prazer. Se ao redor tudo gira ou desaparece, a órbitas dos nossos olhos reciclam penumbra, objetos e distâncias. Começamos a flutuar sem sair do lugar, liberar tudo que necessita de repouso na excitação, enquanto os ruídos se abafam em si próprios, pois tornaram-se brados no vácuo de nosso espaço interior.
Cometas, asteróides, sóis, um estimulante desfile psicodélico abre passagem na sensação gostosa de durante e na prostração deliciosa de depois. O riso faz contato, aproxima dois mundos em busca da mesma trajetória. Os enigmas não precisam mais ser explicados. Foram saciados diretamente na fonte apenas para introduzir novos desafios, atrair numa jornada infinita pelas cores do arco-íris.
As centelhas pulam em volta, podem ser tocadas. É divertido brincar cercado de tantos tons, na intensidade de flores flutuantes, de espasmos cromáticos. As cabeças ávidas se liberam sem hesitação, seja no desejo terreno ou no prazer cósmico, através das carícias ansiadas e do toque reconhecido.
A doce violência de agarrar e ser agarrado, a louca persitência de invadir e ser invadido, os nomes murmurados entre si, mapeiam uma viagem que sequer se encerra ao final. Não importa tanto como se sabe, mas aquilo que é praticado.
Porque entre tantos firmamentos que vibram sobre nós, o contato com as estrelas volta enfim a ser restabelecido. E em troca elas revelam segredos surdos que, ao invés de apontarem uma solução única, desvirginam possibilidades que se regeneram em novas situações e explorações conjuntas, no calor e ardor mútuos, numa linguagem descrita simplesmente como mágica.
Agora sim direis ouvir estrelas...