quinta-feira, 20 de março de 2008

Batismo de Fogo (Conto)


Ao arremessar um copo de plástico para o alto, Sparta deflagrou uma sequência de eventos tão desinteressantes que sequer deveriam ser citados. Muito diferente do que ocorrera mais cedo. Ainda houve quem perdesse tempo especulando sobre seu gesto absurdo, ridículo e repetitivo. Na mesa ao lado, um jovem não perdeu a chance de procurar motivos que explicassem aquela insistência. Noutra, os olhares de censura desfiguravam as feições rudes do rosto, obtendo inúmeros seguidores, denotando o profundo desagrado pela infantilidade. À esquerda, um senhor que rira pela última vez quando entrara na puberdade, denunciava com sua sisudez que os bons tempos de outrora terminaram. Porém, o que mais irritou alguns no recinto foram os pedidos de desculpa imediatos, aquela sede de perdão implícita, logo após as poucas gotas d’água batizarem uma minoria desafortunada.
-- Perdoem, estava morna. Não foi minha intenção.
Sparta nunca fora original ou brilhante. Mas algo mudara nele, óbvio. No suadouro do refeitório, agravado pela algazarra, aquela chuvinha inofensiva fora um sopro ineficaz, mas umedecera as expectativas. O copinho já viera com a água quente, isentando-o em parte. A rigor, ele não tinha obrigação de se retratar, embora o fizesse de maneira franca. O tal jovem curioso sentiu-se no dever de responder, pois o criticara para as duas moças que lhe faziam companhia.
-- Se estivesse gelada não falaria nada?
Muitos se voltaram divertidos pela pergunta do franzino intelectual e duvidando de uma resposta que confirmasse o novo temperamento de Sparta.
-- Se estivesse gelada, Príamo, teriam de me agradecer.
O recinto era bastante quente sim. Não existiam janelões ou buracos de ventilação adequados. Na parede da direita ficava a cozinha, responsável pelo infernal ambiente de sauna. No lado oposto, demarcado por duas portas giratórias, o acesso rápido ao exterior, um paraíso de frescor ambicionado urgentemente. No entanto, as refeições permaneciam atrasadas e sair dali seria perda de tempo, pois teriam de enfrentar novamente uma longa fila.
Antes de responder para Sparta, Príamo teve a atenção desviada por um irrequieto casal de namorados. As mãos de um retorciam as do outro, numa confusão de dedos e unhas. Cutucou o colega sem abrir a boca, indicando com os olhos arregalados o desconforto dos jovens pombinhos. Os dois se entreolharam como quem afirma eu não te disse, camarada, que namoro sério dá nisso?" A mocinha reclamava sem parar deixando o rapaz visivelmente zonzo.
-- Eu disse para não virmos! Saquei logo que esse programa era roubada...
-- Tinha grana apenas para isso, Anjo. Pelos folhetos parecia não ser ruim. Ônibus confortável, belo passeio, bom almoço, gente divertida...
-- Gente divertida? Com um bobão que esparrama água em cima dos outros? Ele não se cansou disso ainda? Fez essa mesma babaquice no ônibus mais de uma vez. E cadê homem para dar um tranco nesse idiota?
-- Ah, espera aí, garota!
O tal senhor mal humorado se levantou e caminhou na direção dela.
-- Quando quis tomar uma atitude já na primeira vez, um monte de passageiros me criticou. Disseram que o carinha era de um grupo de estudantes e precisávamos compreender como são nessa idade. Você própria me encarou de um jeito esquisito. Então tinha homem lá dentro, bolas. Depois fica fácil reclamar!
Como seu namorado nem esboçou replicar ao parrudo, ela se calou e vestiu a carapuça. Afinal, bancara mesmo a magnânima e paciente com o rapaz.
-- Nunca passei por uma situação tão constrangedora, Fred... Olha quanta gente! Vai levar horas! Sem dinheiro para algo melhor...
Príamo assistiu aquilo preocupado. Tinha duas moças na sua mesa, que convidara à excursão com segundas intenções. Até agora estavam caladas, provavelmente chocadas com o programa de índio que se meteram. Se resolvessem seguir os passos da reclamona teria perturbação em dose dupla. Talvez necessitasse se aliar com Sparta, diluindo as possibilidades de um ataque feminino em larga escala.
-- Amigo, não tem queda por louras? Quer sentar conosco? Tive de trazer ambas... A prima estava de visita, se não carregasse junto a Meg não viria.
-- Não gosto de louras. Prefiro as ruivas.
-- Puxa, Sparta! Depois de tudo ainda fica escolhendo garotas? Não ataca a loura porque prefere as ruivas? Você é complicado, hein?
-- Não acho graça nas louras.
-- E morenas? Tipo a Meg? Vá lá, abro mão e...
-- Somente ruivas...
Um senhor com aspecto pacato e conciliador levantou-se abrindo os braços, solicitando atenção. O tédio, que se insinuava por todos os poros pegando carona no calor sufocante, ajudou na sua pretensão.
-- Sei que todos tivemos um contratempo bem desagradável. Nessas horas, no lugar de queixas e recriminações, precisamos demonstrar boa vontade, amigos. O ambiente está mais pesado que o necessário. Qualquer um sente isso.
A loura desprezada por Sparta enfim abriu a boca.
-- Não deve ter nada melhor a fazer, vovô! Contratempo?
Outros começaram a protestar causando uma repentina balbúrdia. Na confusão, Sparta tratou de atirar todos os copinhos disponíveis, sendo imitado por Príamo na sua frustração de algo para fazer. O motorista do ônibus, que poderia anunciar um ponto final naquele confinamento forçado, não aparecera ainda com as tão ansiadas boas notícias. Devia estar muito ocupado nos reparos. Na sua presença, certamente, os rapazes o poupariam da brincadeira estúpida que motivara sua retenção ali por tanto tempo, suando numa sauna involuntária, à espera das refeições atrasadas e do conserto do veículo.
Entretanto, a babel recrudesceu e as discussões acaloraram. A nota excludente era Meg, que permanecia absorta a tudo, fisionomia melancólica e dispersa no infinito, consolada inutilmente pela prima loura. Os demais apontavam irados os dedos entre si, trocavam ofensas e cogitavam cobrir Sparta de tapas depois de resolverem suas pendências mútuas. O senhor que pedira há pouco serenidade recolhera os braços e nem ousava mais abrir a boca. O jovem casal de namorados não discutia, porém sentara-se em mesas separadas, um de costas ao outro. O homem parrudo radicalizava, preparado para erguer uma cadeira contra quem estivesse mais próximo, com toda a força que a inanição lhe permitisse.
-- Em nome do bom Deus, o que se passa aqui?
As portas de entrada se abriram repentinamente, dando passagem a um elegante maître, acompanhado por um séquito de doze esguios garçons, todos impecáveis em seus trajes e maneiras, profissionais até a raiz do cabelo. A visão daquele grupo e a pergunta solene, cheia de autoridade, aquietaram a maioria.
O parrudo baixou a cadeira, mas não se fez de rogado:
-- Nos diga você o que se passa nessa espelunca! Estamos retidos há séculos nessa fornalha, cansados e famintos, e nada acontece. Nem comida, nem motorista, nada mesmo! Serviço de segunda, hein? E não aceita protestos?
O maître respirou fundo, puxou toda sua experiência e se aproximou dos clientes, ficando no centro de uma roda de mal humorados e reclamantes.
-- Estão todos cobertos de razão. Entretanto entendam que existem outros para atendermos. O movimento, certas vezes, ultrapassa o programado. Por outro lado, não precisam de comida. Quanto ao motorista, no fundo sabem porque não veio. Ficou no hospital, sob cuidados. Deverá ter alta em sete dias.
Seria normal uma reclamação enfática ao ouvirem um prazo assim tão longo. Mas o maître transmitia calma e dominara os ânimos sutilmente.
-- Como lhes disse, senhoras e senhores, não precisam mais se preocupar com comida. Ou bebida... Não é Sparta? Aliás, acho que já bastou por hoje, concorda? E devem esquecer de vez o motorista. Ele está salvo, um milagre. Quando nosso rapazote estabanado atirou o terceiro copo no interior do ônibus, no instante exato de uma curva, quem imaginaria que cairia na cabeça do chofer? Ele se assustou, tentou frear desesperadamente, virar ao máximo o volante do veículo. Contudo estavam na borda de uma ribanceira íngreme e a aceleração tornava impossível evitar a queda. O Seu Marcos foi cuspido do veículo e amortecido por um ninho de arbustos. Escapou com arranhões, escoriações e um pequeno traumatismo no tórax. Todos vocês, lamentavelmente, pararam no fundo do precipício. A sorte não lhes sorriu.
Numa fração de segundo, as imagens do acidente retornaram céleres às memórias do grupo. A morte havia sido rápida, indolor. Muitos estavam cochilando e não perceberam a trágica sequência dos fatos. Uma letargia parecia dominá-los agora, qualquer ânimo de protestar desaparecera subitamente. As palavras do maître produziram um eco simbólico em seus tormentos, resgatando do limbo instintos essenciais, acima de valores tornados anacrônicos.
-- O que acontece conosco agora? – alguém indagou, representando um pensamento comum, uma curiosidade natural.
-- Agora vou cumprir minha função. Sentar-me naquela mesinha do canto e aguardar sua decisão. Farão uma fila e, com honestidade de propósitos, revelarão aquilo que consideram merecer. De um lado, temos as vicissitudes e desconforto da sauna, do suadouro como andaram batizando. A cozinha do inferno. No lado oposto, a brisa, o antídoto, a temperatura amena e paradisíaca. Não interpretem ao pé da letra ambos, mas será assim que os perceberão. Aqui é o lugar que se determina onde viverão eternamente. Não os julgarei. Seres humanos costumam bancar os juízes mais severos de si próprios. Meu Senhor já os perdoou. Resta saber se estão prontos a também se outorgarem o mesmo direito. Acreditem que, longe do seu senso de oportunismo terreno, teriam maior chance de clemência se nós deliberássemos seu destino... Vamos começar com você, Sparta?
Tremendo, o jovem se aproximou em lágrimas, cabeça baixa e espírito destroçado. A consciência o atormentava pela perda de tantas vidas numa brincadeira idiota. Percebia os olhares acusadores em volta, penetrando cada poro da sua pele qual uma agulha. Tudo muito recente e não menos doloroso. As marcas físicas e emocionais permaneciam. Os gritos derradeiros o ensurdeciam na mesma proporção dos sonhos abortados. No íntimo, seu impulso imediato solicitava-lhe afastamento e solidão, cobrando resoluto uma expiação condizente. Somente Meg, impotente no seu alheamento, poupava-o dessa terrível convicção. O maître sorria, procurando dar-lhe o apoio e a confiança do qual não dispunha. Assim como seus auxiliares, mesclados ao restante do grupo, na tentativa de transmitir aos demais um mínimo de paz nesse momento crucial.
Sparta seria o fiel da balança, o fator decisivo de perdão irrestrito, embora o maître soubesse que a ordem correta sempre se impusesse ao final. E que céu e inferno se constituíam em estados da alma, induzidos pela leveza da consciência, inexistindo materialmente. Os rios corriam plácidos ao mar e, superados trechos turbulentos, jamais deixariam de fazê-lo. Aquele moço carregava não os pecados do mundo, porém seu remorso pessoal. Similar a Meg, que demonstrava não haver absorvido ainda os novos acontecimentos. Mesmo Cristo tivera seus momentos de angústia e dúvida na longa travessia noturna do Monte das Oliveiras até à ressurreição. Aquelas pessoas amedrontadas tiveram suas existências ceifadas e sua excursão interrompida no meio do caminho, mergulhando em densas trevas individuais que no presente manchavam sua visão.
Todavia elas iriam descobrir na sua luz interior que a maior das jornadas apenas começara.


FELIZ PÁSCOA PARA TODOS!

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