quinta-feira, 27 de março de 2008

O Anel Que Tu Me Destes (2a. Parte)


Antes de partir, Peter soube através de Cris que, para escaparem da publicidade e melhor colaborarem com o início das investigações, classificadas de sigilosas por ordens superiores, todos os envolvidos no inesperado episódio, incluindo o casal Bartholomée, haviam permanecido nas instalações da Maison Léclair. Isso lhe faria ganhar um tempo precioso. E poderia retardar um pouco sua chegada, que não pareceria tão repentina. Se eles tivessem cabeça para isso, deduziriam que fora contactado pela seguradora ou pelo influente dono da tradicional joalheria, a despeito da ignorância de seu gerente, pois era sabido que não prestava contas de seus atos a ninguém.
Nesse ínterim, localizaria seu ajudante, o maior fuçador de informações da cidade. Mesmo num domingo, graças ao seu completo e informatizado arquivo, além da memória incomum, Leo conseguiria traçar-lhe um perfil mínimo, atual e básico da situação, personalidade e preferências das ilustres vítimas. Sobre os demais, Peter lançaria mão de sua larga experiência no trato com tipos de qualquer posição social.
- Esqueça a boa vida, Leo... Preciso de informações urgentes... Me mande um apanhado daqueles que só você consegue... Sim, envie por mensagem de texto... Esprema em tópicos de uma palavra, de preferência... Anote os nomes...
Leo nem cogitou protestar. Estava habituado às emergências. Eram velhos conhecidos e associados, parceiros que jamais deixavam o outro na mão. Além disso, se por um lado Peter cobrava um absurdo por seus préstimos, sabia também recompensar regiamente todos que lhe auxiliavam. O levantamento não tardaria e seria inteiramente objetivo e confiável.
Peter atravessou lentamente os cinco quarteirões na direção da Maison Léclair. A travessia da pequena ponte asfaltada sobre o canal sempre lhe transmitia uma mudança de ares perceptível. Não era afetação, como imputara Cris, contudo um fato.
Subindo a longa escadaria da joalheria, Peter levava sua fama prévia como cartão de apresentação. Passara há muito a época em que alguém barraria sua entrada onde quer que fosse. Principalmente, se existia um assunto grave e celebridades atingidas, nada mais natural que ele aparecesse para colocar ordem nas coisas. Afinal, se tratava do prodígio “que resolvia qualquer assunto”, do mais prosaico e mundano aos complexos e bizarros. Sua infalibilidade, seu caráter profissional e sigilo total aumentavam seu cartaz diariamente. A publicidade crescente, contudo, incomodava-o não por modéstia, mas por minar o valioso anonimato ao agir.
Bastou tocar a campainha, identificar-se ao segurança e, em poucos minutos, estava acomodado numa ampla, confortável e refrigerada sala de estar, sortida de bebidas e guloseimas. Em largas e maciças poltronas vizinhas, formando um semi-círculo, Pierre Bartholomée, o conceituado advogado, Davi Goldstein, o gerente da Maison, e seu inexpressivo ajudante, cujo nome Peter mal escutura já esquecera, olhavam-no com admiração, curiosidade e expectativa.
- Sr. Schmoll, não me surpreende sua presença - murmurou Goldstein. - Um caso dessa magnitude necessita urgentemente da sua interferência. Falamos horas com a polícia e duvido que todo esforço tenha serventia.
- Tive o privilégio de atuar em inúmeros processos que contaram com a valiosa colaboração do Sr. Schmoll - reforçou Bartholomée. – Nunca tive a honra de lhe apertar a mão, todavia sua presença é tranquilizadora.
- Obrigado, senhores. Uma pena enfim nos conhecermos nessas circunstâncias. Vamos procurar remediar logo isso e liberá-los para atividades menos desagradáveis. Ah, podem me chamar de Peter, eu prefiro... - completou, enquanto esvaziava avidamente um copo de suco de laranja oferecido.
Todos sorriram confiantes ante sua cordialidade, inclusive o mirrado auxiliar do Sr. Goldstein que tratou de encher-lhe o copo de suco outra vez. A tática de Peter era surrada porém ignorada pelos três. A simpatia estava léguas distante de ser sua marca registrada, por feridas emocionais que não cabe agora relembrar.
- Sr. Bartholomée, apelo para sua paciência... Pode me relatar o que contou antes aos investigadores ?
- Sem duvida, Sr. Schmoll... Aliás, Peter... Precisava comprar um presente para minha esposa. Hoje é nosso quadragésimo aniversário de casamento. Não me perdoaria se deixasse a data em branco. O lógico seria tratar disso durante a semana. Todavia ausentei-me a trabalho, não tive tempo mesmo para nada. A Maison Léclair foi compreensiva e franqueou-me o estabelecimento no domingo. Tudo caminhava bem até o tiro sair pela culatra.
- Preparavam-se para entrar no táxi quando tudo aconteceu?
- Sim. Ele surgiu do nada, vindo por trás, enfiando a mão no meu bolso. Quando dei por mim e gritei, já estava quase na esquina. Felizmente vimos dois policiais no seu encalço. Soubemos que para não ser agarrado atirou tudo num terreno baldio. Menos mal... Logo a polícia deverá encontrar o anel. Esta é a razão fundamental de permanecermos aqui. Quer dizer, minha esposa repousa também na sala ao lado. O susto elevou sua pressão, convém aguardar.
- Sinto pela sua senhora. Enfrentar todo esse constrangimento nessa data festiva.
- Graças a Deus ela é uma mulher forte. Mais um pouco e ficará bem. Coloquei uma compressa fria em torno de sua cabeça para aliviar a enxaqueca. Ela reage bem aos tratamentos simples.
- Fico feliz em saber disso... Sr. Bartholomée, se importaria em ficar de pé?
O advogado sequer preocupou-se em perguntar o porquê. Obedeceu ao pedido de Peter, embora demonstrasse certa curiosidade.
- O anel e a carteira estavam no bolso direito do seu casaco?
Enquanto Bartholomée assentia com a cabeça, Peter esgueirou-se agilmente por trás dele, simulando o ladrão. Colocou naturalmente a mão no bolso do sobretudo e constatou que era bem fundo mas estreito, daqueles que acolhem em segurança qualquer pequeno objeto. Repetiu o gesto de introduzir e retirar a mão, buscando especificar seu grau de dificuldade, apesar de conseguir fazê-lo com facilidade.
- Uma coisa podemos ter certeza... – diagnosticou.
- O que? - perguntou o gerente, impressionado com a reconstituição.
- Nosso homem é um profissional. Não é simples colocar a mão num bolso fundo assim com tamanha presteza e eficiência. Um amador se atrapalharia todo, enrolaria os dedos na borda, seria agarrado no meio da tentativa.
- Mas ele deu foi muita sorte! – enfureceu-se o gerente. – Atirou no escuro e achou mais do que a carteira do senhor Bartholomée. Encontrou coincidentemente a caixa do anel. Não tinha como saber e conseguiu um bilhete premiado.
- Minha experiência, senhor Goldstein, ensina que a chamada sorte acompanha os competentes, mesmo quando a causa não é nobre. Lidamos com um experiente surrupiador, não apenas com um reles punguista. Deve ser fichado, fácil de identificar.
- Sejamos francos, senhor Schmoll. Nem eu, o senhor Bartholomée, o proprietário ou a seguradora – o gerente enfatizou esta última palavra, como que insinuando que Peter se encontrava ali a serviço dela – estamos interessados no tal sujeito. A polícia que trate disso e faça sua caçada. Queremos recuperar o anel e evitar atribulações futuras. Ao que parece isso deve ocorrer a qualquer instante, pois este se encontra num terreno baldio próximo. Quando trouxerem a boa notícia iremos todos embora para nossas casas e o assunto, por nós, estará encerrado.
Davi Goldstein suava frio naquele ambiente climatizado. A espada estava sobre seu pescoço, apesar de, a rigor, ser uma vítima indireta dos fatos. No entanto seu patrão sempre buscava uma cabeça para decepar e a dele estava à beira da guilhotina.
- Então nem vou perguntar se conseguem descrevê-lo... Seu interesse na ordem das coisas é comovente.
Os três entreolharam-se bastante surpresos. Começavam a lidar com o verdadeiro Peter Schmoll, o do nome completo, sendo difícil perceber se estava sendo irônico ou conclusivo. Se tivessem chance de conhecê-lo melhor descobririam que ambas as facetas não se dissociavam nele.
Ignorando o assistente de Goldstein no seu interrogatório, Peter pediu licença ao trio e se dirigiu ao segurança postado na ante-sala, deixando-os agora aliviados por sua ausência. Não era incomum causar essa sensação, que passava do fascínio ao desconforto num intervalo curto.
- Tanta confusão num domingo abafado, hein?
- Foi inesperado, senhor Schmoll. Nunca passamos por isso antes.
- Apenas Peter... Trabalha há muitos anos aqui?
- Sim, sou o Chefe da Segurança. Quase doze anos de casa. Certas horas o posto é uma desvantagem. Por isso fui designado para vir acompanhar a visita. Quando abrimos excepcionalmente, sempre sobra para mim.
- Entendo. Conhece então o senhor Bartholomée há tempos, certo?
- É nosso velho freguês. Cliente bom e fiel. Um cavaleiro educado e distinto. Comprou muito aqui, em especial nas épocas natalinas. Andou afastado ultimamente mas eles acabam retornando com seu dinheiro. Quando a data procede, não há estabelecimento que supere a Maison Léclair.
- Por que não os escoltou ao carro?
- Ninguém achou que fosse necessário. Bastava descer e entrar no táxi, que aguardava de porta aberta. Olhei antes pela janela da frente e não havia viva alma na avenida. O gatuno estava de tocaia, agora sabemos. Talvez encoberto com a ajuda involuntária do veículo, atrás do poste de iluminação. Além disso, o senhor Bartholomée, ou sua esposa, tinha pressa. E eu precisava fechar tudo, guardar certos estojos valiosíssimos no cofre forte, norma número um de segurança interna.
- Ele não costuma se deslocar nos seus carros particulares? Ao que consta, Bartholomée possui uma frota deles, de várias marcas e modelos, com chofer à disposição. Logo hoje veio de táxi?
- Ah, o senhor Goldstein também ficou curioso. Eles têm alguma intimidade e indagou sobre isso. Parece que madame Bartholomée vinha exigindo horas extras de seu motorista e o marido não quis sacrificar-lhe o domingo. Havia prometido deixá-lo livre para não perder suas competições esportivas, seja lá quais forem...
Peter riu com o segurança, um tipo simpático e sultimente mordaz no seu jeito contido. Havia captado uma pequena ironia no fundo daquelas pretensas horas suplementares que “madame exigia” e nas desconhecidas “práticas atléticas”, embora tal morresse no mesmo instante.
- Queria trabalhar para alguém assim, não é? Que respeitasse os seus domingos?
Ele concordou sem pestanejar, despedindo-se com um largo sorriso. Peter retornou à sala de estar e perguntou ao ainda lívido senhor Bartholomée:
- Poderia trocar uma palavrinha com sua senhora? Prometo não perturbá-la...
Ela descansava próxima numa espécie de saleta de reposição, cujas paredes cobertas de extensas prateleiras empilhavam uma infinidade de caixas e estojos utilizados na Maison Léclair, na proteção e venda de suas peças. Um convidativo sofá forrado de veludo providenciava o descanso necessário ao restabelecimento da frágil mulher.
Uma década e pouco mais jovem que seu septuagenário marido, a senhora Bartholomée era uma sessentona vistosa, bem cuidada, exibindo uma beleza exótica como a famosa jóia que ganharia. Peter lembrava de haver lido que na época a união provocara um certo escândalo. O advogado em ascensão, de tradicional linhagem, se unindo a uma fulgurante estrela de teatro de variedades não fora bem digerido pelas mentes conservadoras. Nada difícil conjecturar o que atraíra Pierre Bartholomée nela quarenta anos atrás. A verdade é que, apesar dos prognósticos pessimistas, o casamento durara este tempo todo, destilando verdadeiro amor e harmonia, sem que se soubesse de percalços ou tropeços dignos de nota.
- O senhor é Peter Schmoll, o reconheço das fotos nos jornais. Foi contratado por conhecidos meus no passado, falaram maravilhas do seu trabalho.
- Sinto que passe por isso numa data tão importante, senhora.
- Não será suficiente para abalar nossa felicidade, meu jovem. Mas minha pressão é delicada e sucumbiu ao susto. Estou melhorando da enxaqueca. O cataplasma gelado que meu marido carinhosamente preparou opera maravilhas em mim.
- Se me permite, senhora... – Peter inclinou-se respeitosamente sobre o divã onde ela repousava e ajeitou melhor a larga compressa na testa. – Ele aplicou-a bem firme... Não a incomoda? Prefere que afrouxe um pouco?
- Estou acostumada, senhor Schmoll. Não se preocupe. Prefiro assim. A idade nos prega tais peças. Felizmente tenho quem cuide de mim.
Peter não se incomodou que ela o chamasse de senhor Schmoll. Sabia conceder direitos aos que padeciam e ele próprio era vítima de eventuais dores de cabeça.
- Não há descrição física do ladrão, senhora. Mulheres costumam ser mais observadoras, capturar os detalhes. Qualquer coisa me serve: altura, corpulência, cor do cabelo, roupas... Os próprios policiais se concentraram na perseguição e não souberam apontar uma única característica. É como se a figura não existisse. Pode me dizer algo? Para onde olhava no momento do ataque? Viu o sujeito, por acaso?
Ela ficou visivelmente encabulada.
- Sinto decepcioná-lo, senhor Schmoll. Achará ridículo o que eu fazia no momento do golpe. Estava cantarolando, não em voz alta, mas comigo mesma.
- Cantarolando? – Peter cada vez mais absorvia as surpresas da vida.
- Sim. Um velho hábito dos meus tempos de artista teatral. Um vírus que nunca se perde, o dos palcos. Entenda que eu estava muitíssimo feliz. Pela data, pelo presente, por compartilhar tudo com meu marido. Assim, tomada de alegria, cantarolava aquele velho trecho de cantiga: “o anel que tu me destes...”. Lógico que minha versão da adorável “Ciranda, Cirandinha” tem adaptações. O anel não é de vidro, nem o amor se acabou...
Ela cerrou os olhos emocionada e virou-se para o lado soluçando baixo. Peter compreendeu que a entrevista acabara e não havia porque insistir. Havia um lado patético em tudo aquilo, porém acima de qualquer sarcasmo. O tempo urgia, a tarde esvaía rapidamente e nenhum sinal do que todos queriam: o valiosíssimo anel de pérola South Sea.
- Peter – implorou o gerente. – São quase 16 horas. Como não conseguiram ainda achar o anel? Não sabem vasculhar um simples terreno? Quanta incompetência!
- Não sou responsável pela busca, senhor Goldstein. Porém tenho contatos na força policial. Estou indo lá agora acompanhar de perto os trabalhos. Realmente é muito estranha essa demora...
Ao se afastar da Maison Léclair, deixando um bando de lamuriosos atrás de si, Peter verificou seu celular. As mensagens de texto prometidas por Leo se encontravam disponíveis. Constatou que as informações sintetizadas confirmavam tudo que percebera deles, no aspecto comportamental. Nada acima do superficial ou óbvio. Gente famosa era extremamente desinteressante por um lado. Por outro, a situação financeira individual revelara certas surpresas, embora nada que fosse decisivo ao mistério do sumiço da jóia.
Uma última mensagem de Leo dizia que se encontrava no local das buscas, ao lado de Cris, no Bar do Lucas, bem defronte ao terreno baldio, aguardando com informações adicionais.
Peter suspirou fundo. Hora fatídica de cruzar novamente a ponte sobre o canal, passando da Maison à Birosca.


(CONTINUA)

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