domingo, 23 de março de 2008

O Anel Que Tu Me Destes (1a. Parte)


- Por favor, Cris, resuma... Tive uma péssima noite, dormi pouco.
- Muito simples, Peter. Bem aqui na nossa frente, esse terreno baldio tomado de policiais, restos de lixo e objetos abandonados. Cinco quarteirões abaixo, à direita, depois do canal, fica a sofisticada Maison Léclair, a célebre joalheria. Hoje, por volta do meio-dia, o honorável senhor Pierre Bartholomée desceu a escadaria da frente acompanhado da esposa, do gerente e de um ajudante rumo ao táxi que o aguardava. Havia levado em confiança, para quitar amanhã, um anel de pérola. Enquanto tratavam das despedidas, Bartholomée deu um grito. Levou a mão ao casacão, dando por falta da carteira e do pequeno estojo da jóia. Apontou um sujeito que acabara de esbarrar-lhe e partia em desabalada carreira nessa direção. Ninguém conseguiu esboçar reação e o camarada desapareceu da vista.
- Não acredito que me chamou aqui por isso...
Há algum tempo, Peter Schmoll se ressentia do papel atípico que desempenhava no mundo das investigações, embora lhe fosse sempre proveitoso. Como detetive particular ocupava uma posição rara: era adorado pelos guardas e delegados porque jamais interferia nas investigações ou sonegava pistas. Compartilhava tudo que sabia e recebia de volta tratamento igual, em termos extra-oficiais. Além disso, quando estava envolvido profissionalmente, contratado por alguma parte interessada, resolvia os casos mais complicados, aliviando as autoridades de situações vexaminosas. Muitas vezes até abrindo mão dos louros da solução, para alegria daqueles que colhiam o reconhecimento sem o mínimo esforço. Contudo, do cheque polpudo ele não abria mão. Aliás, convém mencionar o fato que somente figurões ou ricaços o contratavam, pois seus serviços eram extremamente caros, baseado nos cem por cento de eficiência que ostentava.
O problema é que recentemente os chapas da lei o solicitavam também em situações onde não tinha interesse direto, utilizando o poder da farda e do tráfico de influências para convencê-lo. Porque sua simples figuração tranquilizava os ânimos e permitia que a engrenagem funcionasse liberta de ingerências, na proporção direta da gravidade do problema. Sem desejar indispor-se nos altos escalões ou alterar um panorama favorável, construído durante anos de trabalho meticuloso, se fazia de completo desentendido e ajudava generosamente. Uma noite mal dormida, no entanto, o tirava do sério, fazendo-o reclamar acintosamente.
- Ah, que troço chato, Cris. Qualquer novato cuida disso. Espalha os alcaguetes e quando o otário queimar a mercadoria se dá mal.
- Peter... Estamos falando do advogado Bartholomée e da Maison Léclair. Não sabe quem é o proprietário da joalheria? Então...
O sonolento detetive concordou com a cabeça. Aqueles argumentos eram irrefutáveis, principalmente no auge da insônia.
- Outra coisa, Peter... Certamente alguma das partes envolvidas vai dispor de seus serviços, cedo ou tarde. Se o anel não for recuperado haverá um desagradável embate nos tribunais. Ninguém vai querer sair perdendo.
- Como assim?
- Bartholomée levou a jóia em total confiança. Deveria saldar a dívida amanhã. Não houve assinatura de compra ou mesmo preenchimento de nota fiscal. Trata-se de um cliente ilustre e de posses, merecedor de regalias. Vão discutir juridicamente se a venda havia sido caracterizada. Ele podia inclusive desistir da compra no dia seguinte, acontece. Ou alegar que o roubo se deu na imediação da Maison, tanto que saiu do local acompanhado pelo gerente e um assistente, transferindo a responsabilidade. O estabelecimento, por sua vez, afirmará que já negociou assim antes, inclusive com o senhor Pierre, formalizando um consensual modus operandi. A própria seguradora acompanhará com interesse, não vai querer arcar com o prejuízo. Vai por mim, amigo, o melhor para todos é recuperar o objeto.
- Tanto barulho por um anel...
- Ah, não é um anel qualquer... Trata-se de uma pérola South Sea.
- Falou grego.
- Um homem tão instruído e requintado... Conhecedor das coisas boas da vida. Pensei não existir assunto que desconhecesse, Peter.
- Gosto de arte, de vinhos e de estudar a História. Enfeites não me interessam – sentenciou, impaciente, consultando o relógio de pulso.
- A South Sea é uma pérola natural rara, encontrada apenas, como o nome indica, nas profundezas dos mares do sul, a sudeste da Indonésia e das Filipinas. Não pode ser cultivada, o que aumenta muito o seu valor. Ela é produto de condições ambientais peculiares, que lhe conferem às vezes um tom dourado, e não se acham nesse matiz além de duas centenas por ano. Valorizando ainda mais o conjunto, o engaste é incrustrado de diamantes, gemas puríssimas cortadas com precisão, acondicionado num pequeno estojo preto e padronizado. Dois e meio centímetros de jóia valendo a bagatela de 500 mil dólares.
- OK. Peguei o espírito da coisa... Casinho insosso.
Peter observou a movimentação dos guardas no terreno baldio. Eles iam revirando tudo, ocupando uma área de cem metros quadrados como animais revirando lixo e entulho à procura de restos. Era nítido o insucesso deles, irritados por colocarem a mão na sujeira e no fedor sob o mormaço forte das duas da tarde.
- Se a ocorrência foi lá, cinco quarteirões adiante, defronte a Maison Léclair, por que estamos parados aqui?
- Porque agora talvez eu lhe torne o caso rápido, menos chato e à altura da sua genialidade, senhor Peter Schmoll.
Peter sorriu sinceramente com a ironia. Essa linguagem entendia e o ajudava a despertar os sentidos.
- Quando surrupiou a carteira e a caixa do anel, disparando pela rua, o ladrão cruzou com uma dupla de patrulheiros na primeira esquina depois da Maison Léclair. Infelizmente faziam ronda a pé. Alertados pelos gritos histéricos de Batholomée e companhia, e pela pressa do sujeito, trataram de persegui-lo. O cara tinha asas nos pés mas os nossos tiras também. Quando estavam quase alcançando o vigarista, passando pelo terreno baldio, ele se livrou da mercadoria atirando para o lado tudo que carregava. Curiosamente, ao perceberem isso, ou até pelo cansaço, os policiais preferiram isolar a área e proteger os objetos, aguardando a chegada urgente de reforços. Viram de onde provinha a fonte da riqueza, se é que me entende...
Apontou na direção da imponente Maison Léclair, além do canal, uma construção de opulência detectável mesmo à distância.
- Mas pelo jeito, Cris, ninguém encontrou nada ainda...
- Apenas a carteira do senhor Bartholomée, intacta. Enviamos para a coleta de digitais. No final da tarde podem ter algo e informam de imediato
- Nenhum sinal da jóia, evidentemente...
- Não.
Peter passou a mão na cabeleira e suspirou aliviado. O caso indicava possibilidades, ao menos não o mataria de tédio.
- Há quanto tempo essa turma está vasculhando?
- Quarenta e cinco minutos. Acharam a carteira no princípio, com uns dez minutos de busca. Estava perto de um monte de latarias enferrujadas, na dianteira do terreno. Concentraram os esforços ao redor delas, sem resultado.
- Estranho... O ladrão no seu desespero, ofegante, não conseguiu arremessar muito longe. O anel deveria ser encontrado perto da carteira.
- Sei lá, Peter. Isso é sempre aleatório. Um terreno todo acidentado, cheio de ondulações e desníveis, coalhado de quinquilharias... Uma caixa de jóia pequena e leve pode ter quicado, ido ao acaso noutra direção, entrado numa lata ou caixa... Andando não saiu, certo? Questão de paciência...
- Além da nossa dupla de corredores, alguém mais assistiu a correria e os objetos serem jogados no terreno baldio?
- Sim, na birosca da outra calçada. Um padre e um aposentado molhavam a garganta ali e cuidavam a rua. Relataram a mesma história dos patrulheiros. Ao passar pelo terreno, o tratante se livrou do que segurava. De onde estavam não podem afirmar o que era, mas que atirou suas coisas, não há dúvida.
- Valha-me... Que contraste... De um lado do canal, a Maison Léclair, gente fina e patrulheiros zelosos da propriedade individual. Do outro, a Birosca do Lucas, terreno baldio imundo e dois mamados vigiando a área... Mundos próximos e distintos. Parece a época do Muro de Berlim...
- Peter, como você é afetado, amigo – gargalhou Cris, dando-lhe um tapa amigável nos ombros. – Gostaria de falar com as testemunhas?
- Se quer minha ajuda, faça-me um favor: mantenha o padreco e o velho fora de vista. O pouco que tinham a dizer não é novidade.
- Tudo bem, calma... Por onde vai começar?
- Por você, Cris... Alguns pontos me intrigam...
- Quais?
- O que aconteceu com a famosa segurança da Maison Leclair? Não havia gente deles na calçada, impedindo a usual abordagem de oportunistas ou pedintes? Um estabelecimento desse nível costuma ter inúmeros...
- Sem mistério, Peter. Esqueceu que hoje é domingo? Abriram com o mínimo de funcionários necessário. Apenas um segurança interno, além do gerente e seu auxiliar. Não há quase movimento nessas imediações nos finais de semana. Aqueles patrulheiros, na verdade, são um luxo despropositado. Entretanto além da Maison existem outras lojas de primeira linha, de grife, no lado nobre do canal. A presença da polícia circulando confere um requinte adicional.
Peter voltou a agitar a cabeleira desgrenhada, afugentando o calor.
- Abriram unicamente para atender Pierre Bartholomée?
- Sim, uma venda de urgência, sondei ligeiramente. A transferência bancária seria realizada amanhã, na agência. Parece que o veterano advogado não confia em transações pela Internet, nem carrega talão de cheques ou cartões.
- Uma venda de emergência? Só faltava essa... Tanta deferência aos notáveis... E por que o nosso abonado comprador precisou de um táxi? Não possui uma frota de carros e uma tropa de motoristas para servi-lo?
- Aí não sei dizer, Peter.
- Bom, respondendo sua pergunta anterior, vou dar a partida além do canal. No lado nobre, como diz. Xeretar a gente fina. Me apresentar como contratado de alguém interessado na solução de tudo. Vão desconfiar uns dos outros e ficar à mercê... Ah, um conselho: dá uma pausa ao pessoal se liquidando no terreno. Senão eles derretem e acabam sumindo também...


(CONTINUA)

Um comentário:

Corto Blog Maltese disse...

Parabéns Roberto. Vc escreve muito bem.