quinta-feira, 27 de março de 2008

O Anel Que Tu Me Destes (3a. Parte)


Assim que se acomodou entre Cris e Leo, Peter, muito irritado, disparou:
- Afinal, por que não desenterraram este bendito anel ainda?
- Não começa com as tuas recriminações! – reagiu Cris. – Estamos seguindo todos os procedimentos básicos de busca. Os homens estão dando duro nesse calor infernal. Pedi até a ajuda de um grupo de garis que removem o lixo revirado, tornando limpa a área. Mesmo esse material passa por uma segunda e terceira triagens, eliminando qualquer risco de perdemos a porcaria da peça. O que mais se pode fazer, sua santidade?
- Desde que foi promovido à Chefe de Investigações, Cris, tornou-se um mero burocrata. E pensar que ajudei nessa sua escalada.
- Você é um imbecil, Peter! Vai lá, grita “apareça” e leve a jóia de volta...
- Agora tenho de fazer o trabalho alheio? Só faltava essa...
Leo nem se preocupou em apaziguar a discussão. Volta e meia os dois travavam aqueles diálogos ríspidos e contundentes porém nunca se desentenderam seriamente. No entanto a busca começava a ficar maçante e se configurava inútil. Estavam no meio da tarde e a esperança de solução arrastava-se sob o sol a pino do horário de verão.
- O que me exaspera – retomou Peter, mais calmo – é que não existe descrição do ladrão. A caixa da jóia foi jogada nesse terreno e não se consegue encontrá-la. O caso está todo amarrado por circunstâncias banais, laços que escondem as pontas.
- As digitais também nada produziram – concordou Cris. – O excesso de suor nas mãos do larápio as destruíram, tornaram a identificação impossível. A única saída é o pessoal reverter a maré da sorte e topar logo com a jóia.
- Para piorar, temos de esperar na Birosca do Lucas...
Cris e Leo não conteram o riso.
- Quer uma bebida quente? – provocou o primeiro.
- Ou uma porção de pesticos fria? – atiçou o segundo.
- Espero apenas não estar ocupando a cadeira do padreco mala ou do velho gagá...
Enquanto gargalhavam voltaram os olhos para o grupo de policiais e garis que sofriam vasculhando o terreno baldio. Os muros laterais eram compartilhados nas construções contíguas. O do fundo tinha uma altura considerável. Ninguém teria chance de vencê-la sem ajuda ou escada. O que não impediria de ser facilmente surpreendido pelos policiais da perseguição, que permaneceram virados para o interior do terreno até a chegada dos reforços. O muro frontal, por onde o ladrão atirara os objetos, era baixo, não ultrapassava um metro e meio. A conclusão se mostrava forçosa: o anel de pérola South Sea estava ali em algum lugar. Nenhum deles externou tais pensamentos, porém estava óbvio pelas suas fisionomias que os três refletiam de forma similar.
- Uma coisa me intriga, pessoal. E não consigo tirá-la da cabeça...
- Do que se trata, Peter?
- Desse enigmático e audacioso ladrão, cuja captura não interessa aos ilustres envolvidos no caso.
- Ele podia ter ficado em casa dormindo – comentou Leo. – Domingo é dia sagrado, de descanso. Pouparia tamanha confusão.
- Nem me fale em dormir... Que noite, meu Deus. Que madrugada...
- Você teima, nem insisto mais. Leo também deve ter dito milhares de vezes. Não procura ajuda médica. Um dia vai deitar e não acorda. Um triste epílogo na sua clássica biografia.
A disposição de discutir aquilo era nenhuma em Peter. Seus traços fisionômicos conservavam um autocontrole admirável. No entanto, sua irritabilidade no timbre da voz sinalizava a verdadeira condição, sendo um indício familiar aos que desfrutavam da intimidade. Os amigos observaram a estafa e respeitaram sua frágil condição. Até porque sabiam que seus extraordinários mecanismos de detecção funcionavam mesmo à baixa velocidade, podendo eclodir a qualquer instante, não cabendo atrapalhá-la com altercações inadequadas, que o exaurissem mais no momento.
- Mas o que tem o ladrão? – indagou Cris.
- O cara é profissional. Dos bons. Gente assim não circula a esmo. Apareceu aqui quando tudo normalmente não funciona. Estava no lugar certo na hora certa. E deu um bote preciso.
- Desconfia que recebeu uma dica?
- Uma possibilidade, claro. O estranho é que costumo captar isso no ar. Não detectei traços disso no gerente, no seu assistente ou no segurança. Goldstein não passa de um tipo afetado e bajulador. O sem nome apresenta uma insipidez ímpar. O fardado tem percepção, fica na dele e cuida das suas responsabilidades. Porém não descanso desde ontem. As minhas pobres faculdades podem estar bastante comprometidas, não seria inédito em circunstâncias desfavoráveis. Se ao menos tivesse repousado, a função transcorreria melhor...
O atento parceiro Leo sacudiu o desânimo adicionando um novo ingrediente ao caldeirão de poções Schmoll.
- Peter, não pergunte como consegui... Olhe bem essas cópias de movimentação bancária... Não acha interessante? Comentei sobre isso nas mensagens de texto. Agora as tem discriminadas... Lembre que se precisar dispor dessas informações não cite números, apenas encaixe indiretamente o fato.
- Quanto a mim, não sei de nada, não vi nada... – comentou Cris. – Os métodos que burlam a legalidade fogem à minha alçada.
- É curioso mesmo, Leo. Mas a princípio isso não prova nada. Podem haver outras contas. Estou propenso a classificar este caso como transcendendo quaisquer valores e referências materiais. Quase algo sobrenatural. O marginal parece invisível, ao menos sem rosto. O anel desaparece por encanto ou se esconde de nós. Tudo conspira contra a realidade, como se fosse obra de um habilidoso mágico e...
Peter estancou no meio do seu raciocínio. Ergueu-se ligeiramente, trespassou o infinito com os olhos arregalados e brilhantes, e quando voltou à posição normal um sorriso maroto lhe iluminava o rosto. Alguns conheciam aquilo como bom augúrio aos inocentes e motivo de preocupação aos culpados. A luz começava a se fazer.
- Amigos... O que necessita um mágico para realizar seus truques?
- Ah, Peter... Adora esses enigmas... Sei lá, precisa de agilidade nas mãos?
- Exato, Cris. Merece a promoção à Chefe de Investigações...
- Obrigado, amigo. A justiça tarda mas não falha. E no que a bendita velocidade de um mágico nos esclarece afinal?
- Calma... Antes de perguntar isso, responda no que a velocidade de um mágico ajuda o truque?
- Ora – interrompeu Leo. – Em tudo. Ele conta com o fenômeno da ilusão de ótica. O famoso bordão “as mãos são mais rápidas do que os olhos”.
- Ponto também, Leo! Merece um aumento.
Os dois o encaravam sem pescar o xis definitivo da questão.
- Se vocês levantam cedo, abrem a janela e o asfalto está molhado, deduzem que choveu. Um exercício absoluto de lógica. Se abrem a gaveta onde guardam sempre a chave do carro e não a encontram, revirando-a várias vezes inutilmente, mesmo que lá fosse seu lugar, o que concluem?
A despeito da inteligência indiscutível que possuíam, Leo e Cris não alcançavam a perspectiva proposta por Peter.
- Está na cara, companheiros. As chaves não estão na gaveta! O anel não está naquele terreno baldio!
- Como não, Peter? – fizeram coro ambos.
O detetive balançou a cabeça vagarosamente, firmando ainda mais sua dedução.
- Enlouqueceu? Quer complicar mais o caso? Testemunhas viram ele sendo atirado sobre o muro. De dois ângulos diversos. Os policiais que o perseguiam do outro lado da calçada e a dupla de fregueses aqui da birosca.
- E o que aliás viram as quatro grandes testemunhas, Cris? Nada de concreto! Apenas que o fugitivo jogou fora aquilo que carregava. Não puderam discernir o conteúdo à distância, pela velocidade do movimento e do arremesso. Foram vítimas de uma ilusão de ótica, quase de uma miragem, à mercê dessa temperatura. Vislumbraram apenas uma forma qualquer, um volume deixando as mãos do ladrão. Duvido que algum deles sequer soubesse dizer de que objeto se tratava. Todos partimos do princípio que eram a carteira e a caixa da jóia pelos depoimentos na Maison Léclair.
- Faz sentido... Então a coisa na verdade piorou! – admitiu Cris, desanimado. – Isso significa que a jóia continua na posse de um ladrão misterioso, desprovido de uma descrição mínima ou da identificação pelas digitais.
Peter teve de concordar com a conclusão pessimista do colega.
- O pior delito – comentou – é o de ocasião. Aquele que não foi premeditado. Nos coloca no duvidoso patamar da casualidade e das pistas fortuitas. O gatuno jogou uma cartada arriscada e venceu a parada. Tudo já indicava se tratar de alguém experiente e habilidoso. Para nosso azar ainda soube agir com extrema frieza num momento de aflição. As circunstâncias o favoreceram em demasia. Entretanto, reconheçamos que soube muito bem se utilizar delas.
Enquanto especulavam sobre possíveis alternativas para descobrir o notável criminoso, um dos policiais saiu do terreno baldio, suando em bicas, com o uniforme totalmente empapado, e se aproximou da mesa.
- O que deseja, sargento?
- Chefe... Tenho um pedido em nome do grupo. Podemos prosseguir a busca sem camisa? O calor está de matar camelo. Fica na moita, como sempre...
- Não se preocupe, sargento. Mande a turma recolher e dispersar. Não há porquê prosseguir. A missão aqui está encerrada.
- Jura, Chefe? Podemos sair desse inferno?
- Se demorarem cinco minutos quem sabe mudo de idéia? - dardejou Cris, com azedume.
A alegria no seu rosto seria contagiante se as circunstâncias fossem outras. Os gritos de júbilo logo ecoaram no terreno baldio, enquanto os policiais arrumavam o material utilizado e se apressavam em partir. Uma por uma, as viaturas deixaram para trás a Birosca do Lucas, de onde os garis já haviam sumido rapidamente com os caminhões de entulho.
- Ao menos a imprensa não farejou esta matéria, pessoal. Aturar jornalistas fuçando e cobrando tornaria tudo pior. Os superiores é que vão cair sobre mim...
- São os encargos da competência, Cris – ironizou Peter. – Se você ficasse na ronda dormiria tranqüilo à noite. Mas se transformou no investigador do ano...
- Culpa sua, gênio! Não foi o que disse antes?
- Ora, Chefe... Eu e Leo lhe daremos o máximo apoio moral. Vamos acompanhá-lo à Maison Léclair, para relatar o tremendo fracasso das investigações e reconhecer que o anel está à deriva no espaço. Os ilustres figurões aguardam notícias suas. Devem estar cansados de esperar naquela mordomia. Aos seus superiores entretanto não teremos acesso. Aí terá de encarar sozinho.
- Muito obrigado! Estão me dando um apoio fenomenal...
- Interessante – murmurou Peter.
- O que?
- O sargento veio pedir em nome de todos para tirarem a camisa. Não aguentaram o calor.
- Puxa, um acontecimento mesmo deveras marcante, Peter. Uma surpresa extraordinária, realmente. Na certa deviam torcer que nevasse. Aguardar por um repentino milagre... Quem sabe alguns flocos não congelassem também nosso foragido e o transformassem num picolé entregue a domicílio?
- Quem sabe? Devia acreditar mais em milagres, Cris. Eles acontecem.
- Hora então de rogar pelo seu, Peter.
- Por que precisaria disso?
- Ora, o gênio infalível, o investigador que ostenta cem por cento de eficiência acaba de fracassar... Qual o gosto inédito do insucesso? Será que enfim o transformará num humilde ser humano?
- Cometeu um equívoco, Cris. Se esqueceu que na verdade não fui contratado por ninguém? Nenhuma das partes? Nem a seguradora? Estive no caso a seu pedido, extra-oficialmente, como de costume. Acabou sendo uma vantagem não ter os malditos jornalistas zanzando e revelando minha presença. Isto sim foi um belo milagre. Logo, não posso registrar no currículo algo do qual não participei. E se amanhã me procurarem dou uma desculpa esfarrapada e declino do caso. Por essas e outras acabou valendo me chamar. Direi meu “não” na hora certa. Desde quando foi segredo que apenas os grandes desafios me seduzem? Capturar um meliante é assunto policial dos mais prosaicos...
- O casal Bartholomée poderá mencionar sua presença na Maison. Assim como o gerente e seu assistente. Ou até o segurança.
- Não creio. O encarregado da segurança é dos meus. Quanto aos nomes ilustres, terão mais com que se preocupar. Você mesmo disse que batalharão no tribunal.
- O que mais me irrita, Peter, é que ao final sua primeira sugestão será implementada: os acalguetes em alerta, na tocaia do ladrão, quando ele ameaçar queimar a mercadoria.
- Ora, Chefe... Não se atinge cem por cento à toa! – gargalhou, dando um tapinha nas costas de Leo, que apenas sacudiu os ombros consolando o abalado Cris.


(CONTINUA)

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