segunda-feira, 31 de dezembro de 2007

Desatinos do Destino

Gosto de brincar com as palavras.
De misturar as suas letras, como se todas fossem um anagrama, procurando formar novas. Ou de suprimir ou acrescentar uma qualquer, mudando-lhes inteiramente o sentido.
Há pouco tempo me sugeriram que escrevesse alguma coisa sobre o tema DESTINO. Antes de pensar no significado, reparei que um “A” estrategicamente colocado transforma essa palavra em DESATINO.
Quantos desatinos já foram justificados como coisa do destino? Sorte ou azar, premeditação ou casualidade, o destino é como um camaleão que assume várias formas, de acordo com nossa conveniência. Tive um colega de faculdade que era a própria irresponsabilidade em pessoa, embora nunca se considerasse como tal. Ao explicar as bobagens que cometia, após explorar ao máximo o ditado “errar é humano”, voltou-se ao destino como explicação de seus desatinos. Isso mais do que um consolo mostrou-se um cartão de crédito ou cheque em branco para continuar fazendo das suas.
Fico pensando que, muitas vezes, o destino se esconde quando mais precisamos dele. Ao mesmo tempo, surge a percepção de que talvez essa idéia não passe de uma ilusão de ótica. Seu mimetismo se exarceba ou o olhar que lançamos ao redor é míope? Pode estar bem na nossa frente, dando um close em nosso rosto, e nada de o percebermos. Afinal, necessitamos mesmo dele para detectarmos o mal que determinado sentimento nos causa? Ou quanto uma pessoa devia merecer toda a indiferença do mundo? O saldo bancário no vermelho, a pilha de contas a pagar, as decisões cruciais adiadas, as informações sonegadas, as mentiras de ocasião, uma paixão na hora errada... Desatino ou destino? Quando acrescentamos ou retiramos o “A”?
O destino mágico que fez com que Ana conhecesse Bruno, que conhecia Carla, que conheceu Douglas, que conhecia Estela, que conheceu Fernando, cujo desatino temerário não lhe permitiu conhecer um dia alguém...
Um ano velho se encerra. Seria um ótimo momento para sepultar o DESTINO e o DESATINO, deixando a letra “A” encarregada de iniciar o amor, a amizade e o afeto. E nós cuidando enfim do livre arbítrio, sem tolas expectativas ou frágeis justificativas.

FELIZ 2008 PARA TODOS.

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Cristo no Monte das Oliveiras


Foi no Monte das Oliveiras, ou Getsenami, que Cristo iniciou sua suprema agonia. Após a última ceia, acompanhado de seus discípulos, para lá foi orar, como de hábito. Era chegada a hora de atravessar uma longa noite de sofrimento e dúvida, que culminaria com o beijo da traição, sua imediata prisão, e a preparação para enfrentar os três dias de flagelação vindouros.
Não existe provavelmente página de fé mais bela. A aproximação do sacrifício, da morte na cruz, confere uma tragicidade aos olhos humanos além do componente dramático. O Filho do Homem, o ente divino, aquele que tomou da carne e bebeu do sangue para estar entre nós, irá se comportar como um ser humano. O que apenas realçará a grandeza de sua missão, os ecos de sua mensagem.
Nunca achei necessária a ênfase na divinização de Cristo. Existem milhares de teorias sobre o assunto, alguns dizendo que essa visão foi decidida em concílios, que Jesus não seria “o” Filho de Deus, mas “um” Filho de Deus, como eu e você. A sua mensagem é imortal em si mesma, ultrapassa os tênues limites da religião. O humanismo que carregamos dentro de nós sabe que “não devemos fazer aos outros o que não queremos que nos façam”. Nessa lição elementar, embora esquecida freqüentemente, temos o resumo de 10, 20 ou 30 mandamentos, de quaisquer evangelhos ou livros sagrados. O cristianismo puro, aquele que não necessita camuflar-se em dogmas, rituais ou paramentos, em imagens ou basílicas, é simples, sintético.
Ao constatar na vigília do Monte das Oliveiras que “a vontade humana pode ser forte mas a carne é fraca”, Cristo percebia a fragilidade da mortalidade, os receios que fazem dos indivíduos objetos do medo, colocando-os num duelo cotidiano entre a emoção e razão, atos generosos e apaixonados. Sua trajetória divina de fato ou de direito é um dos maiores exemplos de humildade já legados. Continuou se surpreendendo e perdoando suas amadas criaturas terrenas, demonstrando que a verdadeira onisciência residia na concepção do amor incondicional.
A consciência que seria vendido por 30 moedas de prata ou renegado três vezes antes do amanhecer, se opunha às constatações práticas da fraqueza ante o sono daqueles que juraram que o guardariam até a aurora. Jesus Cristo, no zênite de suas aflições, demonstrava que também aprendia com seres imperfeitos, tornando próximos como nunca Criador e criatura. Essa demonstração de devoção suprema nos faz vislumbrar o paraíso na terra.
Quando no momento da redenção, na aproximação da morte crucificado, invoca o Pai em dois momentos opostos, perguntando primeiro “por que foi abandonado” e depois pedindo indulto “aos que não sabem o que fazem”, Cristo reafirma o pacto, a aliança eterna entre Deus e os seres humanos, pois ambos se tornaram unos. Toda uma tradição ganha vida e se eterniza na chama que brilha no interior de cada homem ou mulher. Enquanto existe vida, ela deve ser vivida na sua plenitude.
Assim, nas feridas espirituais do Getsenami ou nas chagas carnais do Gólgota, Cristo sempre renasce a cada Natal, confirmando que na amplitude de seu coração existem mesmo muitas moradas. Seja através do Pai, do Filho ou do Espírito Santo.

FELIZ NATAL PARA TODOS.

segunda-feira, 10 de dezembro de 2007

Read Marx, Read Engels And Fuck Themselves

Uma cópia de O Capital na mesa de cabeceira. Aberta no capítulo da mais-valia.

No Player tocando Plush, do Stone Temple Pilots. Bem alto.

A TV reproduzindo o DVD de um filme qualquer de Bergman. Sem volume.

Acenda um incenso, purifique o ambiente. Há deuses no recinto. O aroma de mirra é incrível, não?

Read... Listen... Watch... Learn... And smell, of course!

Formamos nosso moderno Oráculo de Delfos. Aquele que nunca respondia nada com nada, o ponto alto da ambigüidade.

Tem gente que é assim também, não diz nada com nada. Alguns podem estar achando que esse texto é um exemplo disso...

Se o vizinho reclamar do volume não saberei mesmo. Ainda mais vai sentir o cheio da mirra e achar que é outra coisa. O filme está sem legendas. Tento fazer leitura labial em sueco.

O rock continua mandando ver e na função Repeat.

Me aproximo de Marx em silêncio. Não é difícil, sou quem menos faz barulho. Ah, aumentei o volume da televisão. Agora o som do filme e da música estão misturados. Os dois abraçados com o odor do incenso.

O vizinho está reclamando... Serei eu o maior problema do seu mundo? Tomara que sim, pois gosto dele, nada contra, embora nem saiba seu nome.

A sessão não termina tão cedo. Vai tudo se repetir à exaustão. O segundo incenso já está ardendo, ganhei uma caixa inteira.

“Cadê o pó?”, berra alguém ao longe... Tem gente que cai mesmo em qualquer encenação. Mas esse não mora no prédio. A mais-valia está exportando a revolução bolchevique!

“Cara, pára com esse barulho! Pula fora pela janela!”

Você primeiro, irmão. Salta e me serve de colchão, otário. Se foi o meu vizinho que gritou essa asneira não gosto mais dele. Não admito que interfiram no meu barulho. Gente desalmada.

Terceiro incenso! Música pela décima-quinta vez! O filme do Bergman é longo, não chegou a repetir ainda.

Ah, tá ventando! As páginas de O Capital estão virando... Ou será que, ao invés de deuses, temos fantasmas no recinto? Fechar a janela não adianta. Fantasmas atravessam tudo. Depois não quero diminuir o alarido. Nem deixar de fora as bobas reclamações da vizinhança.

Vou fechar O Capital, não tá colaborando com o esquema. Sabia que tinha algo errado no conjunto. Mas ainda defendo a liberdade de expressão lá fora.

So, read Marx, read Engels and fuck themselves!






quarta-feira, 5 de dezembro de 2007

Carta do Leitor

Eu não estou desistindo, entende?

Isso jamais acontecerá. Nunca foi do meu feitio abandonar a perseverança. Mas quem vai avisar quando chegar a hora? Talvez possa me ajudar, dar uma sugestão. Sempre achei que tinha respostas sobre tudo. Mas nesse caso não sei mesmo de nada.

Fico achando que simplesmente não saberei. Que tudo irá como veio. Sem qualquer explicação. Sem ponto de partida ou linha de chegada. As trombetas vão ficar mudas, quietinhas.

Me ajuda, diz qualquer coisa, é tudo tão frágil... Vou reler conversas, olhar as fotos, escutar as músicas? Lembrar que vencia quase todos os jogos, menos aquele para descobrir a verdade? Atravessar as noites sozinho imaginando se já aconteceu? O pior nem mora nisso.

Não quero tomar seu tempo. Dizem que é coisa preciosa. Uns têm tanto, outros tão pouco. Parece final de festa. O tilintar dos copos sendo guardados, a louça sendo empilhada. Murmúrios em lugar de algazarra, sorrisos substituindo os risos.

Ao longe, uma gargalhada. Ainda há felicidade por aí. Talvez o dono dela tenha as respostas. Você parece não saber de nada. Te escrever foi inútil. Acho que não aprendemos a lição, deixamos de fazer o que podíamos.

Quem gargalha tão longe ouvirá nosso choro? Sabe me dizer ao menos isso? Estou exigindo demais de você. Vão tocar o réquiem e estaremos surdos. No fim de tudo acharemos que não passou de um delírio. As conversas em arquivos, as fotos recolhidas, as canções repetidas.

E você aí, assim como eu, enganado pelo tempo, driblado pela ilusão, sem idéia do que ocorreu...

Um abraço e até o futuro.

quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores

Falar de aspectos sombrios da natureza humana cansa.

Os dois lados do eixo são sobrecarregados: quem escreve e aqueles que lêem. Já me disseram isso com todas as letras. Renderia um longo texto discorrer sobre o que é oculto ou cruel, pesado ou violento. Tantas vezes a agressividade vem seguida de um sorriso, de um sentido de amadurecimento. De uma expressão de vontade ou de um agradecimento polido. A gente esbarra nas atitudes mais surpreendentes. Como bradou um infiel fugindo das boas intenções de um cavaleiro cristão que libertava a Terra Santa: “Senhor, livrai-me dos que vieram me salvar”.

Aos que se pretendem malvados, ou acreditam na amplitude de seu lado negro, sobra a ingenuidade dessa pretensão. Assim como a bondade humana não é absoluta, muito menos a maldade. Uma pertence a Deus, outra ao Diabo. A capacidade de praticar atos escusos ou dignos nada tem de especial: são meras opções mundanas. O orgulho de uma postura ou de outra é inútil. Ser lembrado por grandes realizações ou por gestos simples nada significa na roleta cósmica. Os pólos convergem involuntariamente, tanto na extrema arrogância quanto na máxima humildade. Quem consegue manter isso ao menos próximo do equilíbrio sequer tocará no assunto, pois se tornou uma faceta natural da personalidade e do caráter.

O meio termo dos antigos místicos. A transcendência da razão e do instinto, o casamento espiritual do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde. Como a tarde de hoje: nem clara, nem nublada. Sem sol e sem chuva. Acolhendo os que não gostam de sair com a garoa e ainda todos que evitam o sol excessivo. Dias virão em que isso não ocorrerá, a balança penderá numa direção, contudo este será um processo da natureza. Não pertencerá à alçada dos discursos repetidos ou do charme planejado.

As flores, sedentas de chuva e necessitadas de luz solar, agradecem.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Polegares no Fogo


Tiros e retiros.
Alguns disparam, outros se recolhem. Massacres são aplaudidos, o estilo refinado pode tornar tudo mais digerível. Em contrapartida, há quem baixe os olhos e acuse, indignado, o golpe no estômago. Somos diferentes sim, perdidos na calmaria e na tempestade. As certezas não são mais débeis, pelo contrário. Enquanto duram se mostram sólidas. Porém seu caráter efêmero, até a próxima novidade, as transforma naqueles vírus ou bactérias que vivem apenas 24 horas. Será mesmo que já pensei dessa maneira? Ou terei realmente vivido aquilo há dois anos? A memória prega peças. A dúvida as destrói, sem clemência. Tão certo quanto alguns alvejam e outros se esquivam.
Na época dos gladiadores, César ou seus prepostos eram saudados como divindades. Um simples polegar para o alto ou invertido reforçava o poder supremo, o legislar sobre a vida e a morte. Enquanto a multidão se amontoava no frenesi da barbárie, os olhos esbugalhados do contendor imobilizado, batido, aprisionado sobre o pé do vitorioso a pressionar-lhe o peito, vasculhava como podia a plebe à procura de uma tendência. Nessa hora ele deixava de ser o centro das atenções, já fizera o que fora possível. Seu desempenho traçaria seu futuro. Ou então, derradeira esperança, repousaria no humor daqueles que poderiam decidir tudo, com um simples gesto. E havia igualmente os que dardejariam com o dedo ou o esconderiam sob as vestes.
Uma arena romana ou uma tela de cinema. Assistir ao espetáculo é uma decisão pessoal. Permanecer até o final, uma demonstração de vontade. Sair na metade apenas concede o benefício da dúvida. Anuência ou rejeição podem não significar nada, pois tudo é passageiro, caracterizando uma banal contagem regressiva às mudanças de estação. Até o César original tombou no Senado, apunhalado aos pés da estátua de Pompeu, antigo aliado e depois inimigo. Não houveram polegares erguidos ou baixados, apenas curvados em torno das várias adagas que lhe ceifaram a existência. A turba primeiro saudou sua morte, eufórica sob os discursos dos conspiradores. Pouco depois exigia suas cabeças, insuflada pela oratória de Marco Antônio. Esta foi a mágica novidade de então, o componente que tornou passivos em ativos, figurantes em protagonistas.
A morte que atingiu o afamado César e o anônimo gladiador não distinguiu o certo e o errado, o justo e o injusto. Mas trouxe uma carga de escolha ou responsabilidade individual aos que delas souberam ou testemunharam. Nem o espetáculo seguinte os as consequências políticas anulariam isso. O efêmero é uma ilusão que ora nos alivia, ora nos espreita, pois jamais deixará de induzir um capítulo inédito, uma nova fase, uma era distinta. Ao vasculhar o firmamento para achar a estrela da sorte e fazer um pedido colocamos os polegares entrelaçados, em súplica, rogando por nós. O boneco de madeira em nosso interior pode se modificar em menino de carne e osso, como pediu Gepeto para seu Pinóquio.
A miraculosa dádiva da vida nos seus diversos compartimentos, estejam fechados, abertos ou escancarados. Quanto mais a conservamos, mais perto de perdê-la estamos. Incontáveis seguiram o caminho de César, Pompeu e do gladiador. Rogaram como Gepeto ou erraram como Pinóquio. Decidiram ou se omitiram do que acontecia num circo antigo. Aplaudiram ou vaiaram muito a mortandade exibida numa sala escura de cinema. Projetar filmes, sonhos e ideais não estabelece o vício e a virtude. É tão natural qual a morte democrática que chega para todos. Se os atos praticados foram edificantes ou deploráveis, se as atitudes decididas constituíram generosidade ou egoísmo, não adiará nunca a sua chegada. Os polegares estão destinados a descansarem eternamente, melhor movê-los no sentido correto, independente da expectativa de inferno ou paraíso.
Os primeiros navegantes relataram assombrados o fenômeno do Fogo de Santelmo. Um barco em alto mar é seguidamente atritado pelo vento e seu casco pela água. A eletricidade estática decorrente se acumula nos mastros, que funcionam como uma antena receptora, formando uma carga positiva. Se numa tempestade, uma nuvem carregada negativamente se aproxima do topo da embarcação, o resultado é uma chama azulada, produto da combinação iônica, visível a olho nu. Os marinheiros, apavorados, mexiam seus polegares em todas as direções, ávidos por proteção, suplicando pela salvação. Eles ansiavam por terra.
Contudo nesta ocorria outro fenômeno inexplicável: o fogo-fátuo.
Este é uma exalação que aparece à noite nos cemitérios e pântanos, proveniente da inflamação espontânea do gás metano decorrente dos corpos orgânicos em decomposição. Ao se acumular e misturar com o oxigênio, assume a forma de uma esfera luminosa, que levita e desloca até consumir-se por inteira, amedrontando passantes e incautos. Estavam ansiando por correntezas.
Imagine uma caravela como um sarcófago flutuante e o oceano igual lama pantanosa. Transporte o fogo-fátuo aos sete mares e traga o Fogo de Santelmo às charnecas inóspitas. Torne-os efêmeros em seus nascedouros. Faça deles a atração seguinte, a novidade a ser explorada. Admire-os de longe, tema-os de perto, esqueça as explicações científicas e os encare mergulhado em total ignorância, cegueira e superstição. Seus polegares, sejam erguidos, abaixados, curvados, entrelaçados ou descansando, irão implorar uma solução. Violenta ou pacífica, radical ou gradual, trágica ou edificante. Se virarmos o rosto e contarmos com o destino, já as conhecemos antes assumindo os rótulos de Inquisição, Fascismo ou Esquadrão da Morte. Se rezamos por um milagre e somos atentidos, compareceram no passado como São Francisco de Assis, Gandhi ou Betinho.
Acima da sorte e do azar, do abençoado e do amaldiçoado, do Éden ou do Apocalipse, podemos respirar fundo, confiar em algo maior, alcançar a serenidade e penetrar o Fogo de Santemo e o fogo-fátuo não somente com os polegares, mas usando todos os nossos dedos. Tentar tocá-los e perceber que não ultrapassam a aparência, são desprovidos de materialidade ou substância, penetrando no vazio sem comprometer a integridade das mãos. Imitando o indivíduo que abandonou as profundezas da gruta no Mito da Caverna, de Platão, descobrindo o caminho genuíno da salvação além dos discursos factuais, das tolas convicções e dos medos primitivos.
Para enfim concluir que nenhum deles nos queima.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Como, Onde e Quando?

Para que essa incessante impressão de perseguir a própria sombra?
Ou de descobrir um amanhecer mais bonito, um ideal superior aos outros, uma crença que responda todas as perguntas?
Por que acompanhar as tendências da moda, o interesse pelas últimas novidades cirúrgicas, a análise do software inovador?
Pode ser que exista muita vida lá fora. Mas tem mais ainda dentro de nós. Uma alma radiante, um coração pulsante, uma mente inquieta. A usina dos sonhos de todos nós. Devia haver uma lei que respeitasse tudo isso. Pois a lei natural parece estar sendo esmagada, esquecida.
O Pai nosso de cada dia, a Ave Maria, o Salve Rainha.
Confessar abertamente os medos, comungar os vacilos, penitenciar compartilhando o segredo. O ônibus e suas paradas, a orla marítima e as gaivotas, os golfinhos e seu canto. O riso que afugentou tudo, o sorriso que descortinou tanto, as mãos que enfim se reconheceram. Nada será como antes, amanhã ou depois de amanhã... Será?
O nó na garganta, o choro aprisionado no peito, o cansaço no olhar. O organismo violentamente invadido, os tecidos mais depauperados, o sangue se agüando. A vontade de falar e não conseguir, o desejo de esconder e apenas fracassar.
Não existem memórias que superem as experiências. São meros retratos pálidos, ansiando por cores. Quadros implorando por uma moldura. Representações aflitas atrás de um espaço livre onde serem penduradas. E tanta existência aí dentro, dialogando com o tempo que, como a justiça, é cego.
Não o tornemos também surdo e mudo.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Luar Sob o Sol

A noite parece ter a capacidade de tornar o silêncio redundante.
“Noite”, no caso, é aquilo que sucede ao dia. Não se trata de “noitadas” ou da efervescência que muitos buscam para se sentirem vivos. Falo da escuridão, da paz, da serenidade que nos é roubada sob o sol. Da antevisão do que parece ser o último período livre na face do planeta, onde a respiração é tão natural que prescinde do oxigênio.
Que homem diz para sua mulher, ou que namorado sussurra à namorada, “quer passar o dia comigo?”. Se fizer isso estará convidando para um passeio de mãos dadas, um almoço depois e, quem sabe, um cinema arrematando tudo. E se ele, ao invés disso, propor: “quer passar a noite comigo?”. Aí esqueçam a volta pelo shopping, o jantar e a sessão de meia-noite. A cama já está mesmo feita, aconchegante, pronta para ser desmanchada com volúpia, doçura ou das duas maneiras.
Romance à luz do sol contra sexo abençoado pelo luar. Precisa mesmo ser tão banal assim? Será que a variação que muitos desejam para sacudir suas vidas, não pode residir em trocar a noite pelo dia? Não no sentido de inverter a hora de dormir. Mas sim deixar a noite ainda mais silenciosa, sem os gemidos dos amantes ou orgasmos que se propagam através das paredes. Dissolver os ruídos da paixão na cacofonia do trânsito, dos aparelhos de som, da vizinhança inconveniente.
Deixar o silêncio noturno ainda mais redundante. A liberdade triunfando como nunca na face da Terra. Além disso, não existe mesmo horário para amar. Seja celebrando o Sol ou reverenciando a Lua.
Porque o dia parece ter a capacidade de tornar o barulho redundante...

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Atalhos e Encruzilhadas

Dizem que o maldade surgiu na Terra quando foi aberta a Caixa de Pandora, libertando toda a gama de violência, ambição, rancor e inveja latentes na humanidade.
Mais uma lição da mitologia grega, a nos ensinar com poesia os fatos da vida e da morte, do amor e do ódio, do céu e do inferno. Ilustrações assim não faltam nas mais diversas culturas e tradições. Igual Adão e Eva, ao morderem a maçã da árvore proibida, perdendo o direito ao Paraíso terreno.
Explicações sempre sobraram ao ser humano, sob a forma de fábulas ou dogmas. A imagem da Caixa de Pandora, porém, me fascinou desde quando li sobre ela a primeira vez. Fiquei imaginando um espírito maligno esgueirando-se lentamente, similar uma insinuante fumaça negra, densa e pegajosa se espalhando aos quatro cantos.
Na mesma época a Física me ensinou que não existia frio. O que ocorria era falta de calor. Como ciência e espiritualidade nunca se chocaram na minha visão, muito menos arte e filosofia, imaginei que, na verdade, o Mal provavelmente também não existia: havia era a ausência do Bem. Quase uma certeza científica, sem significar frieza ou cartesianismo.
Assim, tudo seria regido pela vontade de fazer o Bem, proporcionar coisas boas a si próprio e ao semelhante. Uma maneira de recriar o paraíso perdido, sem rogar por milagres ou culpar o destino inexorável. A libertação definitiva do fatalismo grego ou do conformismo católico. Porém, em sequência, li a obra de Friedrich Nietzche, Além do Bem e do Mal. Nela, eram destrinchadas a tentação do poder e a moralidade, aforismos que regulariam a sexualidade e o senso estético, maniqueísmos que, em última instância, elaboraram os conceitos de certo e de errado, do vício e da virtude, "assim na terra como no céu".
Então, a filosofia agora se sobrepunha à ciência exata, que substituíra o dogma, que sucedera ao mito. Mas, como disse, a intuição sempre me indicou múltiplas saídas, ou melhor, soluções conjuntas. Nunca percebi a necessidade de uma explicação anular outra, de uma nova visão obliterar a anterior. Essa consciência não seria o mecanismo que nos diferencia de seres irracionais, o princípio divino que carregamos?
Voltando a falar no divino, para explicar um fato científico, corre-se o risco de recorrer ao mítico e ao dogmático. Se fosse um indivíduo de temperamento rebelde a fazê-lo, elegeria o primeiro. Se optou pelo conformismo, aceitará sem contestação ao segundo. A filosofia de vida se molda então às próprias escolhas, sejam conscientes ou absorvidas. Mas, então, a vontade de praticar boas ações deixará de ser natural, abrindo mais uma vez, nas omissões nossas de cada dia, a Caixa de Pandora, os males de todos nós.
São nas separações do conhecimento que se arquiteta a perdição pessoal ou coletiva. Num sentido amplo, pelas exclusões sociais e políticas, pela elevação da idealização que aceita apenas uma coisa ou outra, nunca busca o meio termo. Sob um ângulo íntimo, no universo interior, por crermos na impossibilidade de estimular as mais diferentes buscas, de caráter simultâneo, isolando-nos das várias soluções e das diversas saídas.
Na confusão que nos faz abordá-las como atalhos que resultam em encruzilhadas.
Nada impede que uma busca espiritual conviva com o prazer carnal. Ou que a ânsia de explorar a solidão interna, o auto conhecimento, exista na presença de um parceiro. O êxtase religioso não contradiz o orgasmo, assim como a devoção a algo maior não proibe que o coração seja entregue amorosamente a alguém. Beijos na boca também são tão superiores quanto orações que brotam na alma.
Além do bem e do mal, da ciência e da filosofia, do mito e do dogma, existe a felicidade para ser alcançada pela combinação destes caminhos, achando-se aí sim o autêntico atalho às encruzilhadas da angústia e do medo.

terça-feira, 30 de outubro de 2007

Equívocos Terrenos

Entre tantos equívocos possíveis, talvez o maior deles seja conferir aos seres uma missão na vida. A linha tênue que separa o messianismo do fanatismo se torna ainda pior quando pretensas fórmulas surgem para regular tais projetos. A condição humana torna-se previsível no pior sentido da palavra, pois desloca focos de acontecimentos e decisões para o inexpugnável terreno de forças invisíveis ou não palpáveis, de acordo com as crenças individuais.
Em arte, então, tudo fica pior. Considerar que um autor ou poeta têm obrigações com esta ou aquela forma de pensar, com uma linha de pensamento essencialmente otimista, é uma negação do próprio processo criativo. Não existem estes limites, nem à direita ou esquerda, nem no topo ou no fundo do poço. Um texto não é um libelo de conduta ou uma tábua de salvação. Se quem o criar tiver sorte será, bom ou mau, uma maneira de reconhecer dores, de perceber que não somos os únicos que sofremos por algo.
Assim, missão de artista, se existe, é produzir com consciência, livremente. Ele não se caracteriza por ser emissário de esperança ou propagador de inseguranças. Se o seu íntimo passa por amarguras ou vive dominado por pessimismo, talvez seja bom perceber os motivos disso, antes de apontar um errôneo "desvio de conduta divina". Delegar erros aos outros fica bem mais fácil que assumir nossas responsabilidades com os semelhantes.
Se existe uma missão na vida talvez seja não fazer dos demais joguetes de nossos caprichos mais imediatistas. Nem todos recorrem às orações, comodamente, para aliviar ao final do dia os próprios vacilos, contradições e incongruências.

domingo, 28 de outubro de 2007

A Canção do Carrasco (Poesia)


Encontros agora desperdiçados,
Desejos versus contextos,
O laço tão apertado do carrasco,
Um amor indo ao desterro.

Foi quebrado tanto encanto,
O espelho torpe estilhaçado,
As fissuras arranhando a imagem,
Mentiras que autorizam ao pranto.

Cada dor, cada desmando,
Nós firmes na garganta enlaçados,
A fria mão de um verdugo,
Apanhando corações decapitados.

Nunca mais te ver,
Seu sorriso borrar,
Sua pele esquecer,
Duas bocas fechar.

O machado já se aproxima,
O cadafalso jaz todo aberto,
Amor cortado e pendurado,
Sentimento nobre abortado.

Por que acenam vãs ilusões,
Com suas faces denegridas,
Se no vendaval das paixões,
Morrem meninos e meninas.

Espectros enlutecem o dia,
Demônios alongam a noite,
Se enfim toda sina termina,
Que seja então a data hoje.

Ao nos indicarem o paraíso,
Que reine tênue a claridade,
Pois um assobio desafinado,
Entoa a canção do carrasco.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Um Texto Sem Nome

Sonho com um texto sem nome, desprovido de assunto.
Uma ausência absoluta de ponto de vista, de figuras de linguagem, de convicções espalhadas por algumas linhas. Ele talvez garantisse seu lugar na eternidade, pois nunca envelheceria. Seus conceitos vazios permaneceriam eternamente. Não iria sofrer com modismos ou dissolver-se sob a inexorável mudança dos costumes. Ninguém seria capaz de estabelecer a data da sua morte porque a rigor jamais teria nascido. Um produto da mais completa atemporalidade, do nada absoluto.
O coração precisa aprender tais lições. Despir suas emoções por inteiro, ignorar a infância, a adolescência, a maturidade e a velhice. Beber esse elixir da vida eterna e viver na ilusão da imortalidade. Principalmente, desconhecer o amar, o sofrer, o recordar e o querer. Aquilo que nos envelhece e dissolve as esperanças. Muitas pessoas conseguem isso bem facilmente, não precisam de poção redentora alguma.
Tais escolhidos se apoiam simplesmente na certeza de que as coisas são como devem ser. Quem acompanhou, ótimo, os que não conseguiram, paciência. Só vai lhes restar aprender lições que jamais pediram, descobrir sentidos ocultos para sua percepção. E aplaudir o ar de confiança, superioridade ou fatalismo de seus mestres, sem a desculpa de desconhecerem que participavam de algo maior, de um requintado processo de vida.
Até lá, só lhes resta mesmo é idealizar textos anônimos, carentes de substância, inutilmente.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007

Ecos do Silêncio

Dizem que o silêncio grita, a ponto de doer.
O que se deve entender dele quando ensurdece nossa percepção? Na verdade, pouco me importa essa compreensão. Ele fere e magoa. Nos traz dúvidas e incertezas. Diferente do silêncio interior. Neste existe uma opção pela serenidade. Uma busca de equilíbrio, a redenção pela introspecção voluntária. Não necessitamos estar mudos para alcançá-lo. Nem nos isolarmos dos outros.
O exemplo de santos, filosófos ou iluminados de qualquer tipo não se encaixa na maioria dos seres humanos. Sentar sob uma árvore até reavaliar o mundo ou escalar a montanha mais alta são artifícios aquém do cotidiano. Sempre foram belas alegorias, ilustrações simplificadas de uma mandala de intenções e angústias. Às pessoas Deus concedeu os semelhantes, em diversos níveis. Familiares, amigos, conhecidos, colegas e, principalmente, aqueles com quem exercemos o sentimento do amor, seja romântico, sensual ou carnal. Melhor ainda quando encontramos os três num só, qual uma Santíssima Trindade terrena.
Normalmente o ego nos afasta dessa conscientização. Mais ainda quando acompanhado do medo. O sentido messiânico de nos acharmos em provação, a concepção de sofrimento como um teste de superação, anula tudo aquilo que de divino foi insuflado em nosso espírito. O temor, em complemento, camufla toda expressão exterior, cancela tragicamente os sonhos latentes. Deus não duvida da nossa devoção, sequer necessita de provas ou sacrifícios. Ele lê o âmago das almas, varre toda a extensão dos corações. Quer que sejamos felizes exercendo aquilo que tinha em mente quando nos criou: a capacidade de amar. Como pais, irmãos, parentes, vizinhos e também parceiros de alguém.
Religiões tradicionais, institucionais, jamais tiveram as respostas. Quando muito elas fabricam explicações. No entanto, induzem más avaliações ou equívocos. Assim, o silêncio, seguido do afastamento, pode ser a negação da verdadeira tarefa que nos foi delegada.
E ele pode ecoar de modo tão intenso que é capaz de abafar os autênticos chamados da nossa essência original.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

Olhar no Infinito (Poesia)


Lindos e recorrentes olhos negros,
Emoldurados sob um luar dourado,
A vontade de logo estar ao seu lado,
No aroma que nos domina inteiros.

Uma evocação ao ritual dos desejos,
Os sussurros de carícias e segredos,
Os elementos diversos combinados,
A fusão consagrada destes solfejos.

Os anseios aflorados na madrugada,
São o desfile dos gestos acalentados,
A vibração dos toques orquestrados,
Faz de corpos cavaleiro e cavalgada.

Ao receber toda a minha poção,
Gememos os nossos encantos,
Nos entregamos à esta emoção,
Que nos aquece como mantos.

Belos e doces olhos transparentes,
Revelados na aurora avermelhada,
A vontade de torná-la bem amada,
Resgatando sonhos então ausentes.

terça-feira, 2 de outubro de 2007

Descobertas Divinas (Poesia)


Acordes dispostos em imagens,
Flagrantes impressos na pauta,
Violinos flutuando nas aragens,
Poentes entoados numa flauta.

Segredos repartidos em dois,
Num ritual que nos fascina,
Não existe mais um depois,
Quando o presente aproxima.

Entre ventos e inventos,
Ao puro som de adágios,
Há retratos desvirginados,
No som de oboés mágicos.

A liberdade de bem escolher,
Como fotografias do coração,
Nos permite então perceber,
A persistência dessa emoção.

Enquanto as matizes celebram,
O colorido etéreo da harmonia,
Os reflexos supremos ampliam,
A vida que se renova a cada dia.




segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Mariana e Marina (Trova)


Tiro um simples “A” de Mariana,
E assim obtenho Marina,
Separo Mari e tenho Ana,
E o mundo ganha outra menina.

São os dois mais belos anjos,
Que enfeitam esse conto,
Não somente simples versos,
Terminados nesse ponto.

Mas se da meiga Mariana,
Formei a adorável Marina,
Aprendo logo que na vida,
O que é lindo não termina.

Paridades (Poesia)


Saudade,
Na palavra que não veio,
No rosto que não surgiu,
No temor, no receio,
Em março, em abril,
Realidade.

Nas capelas repousam as flores,
Ou na intimidade nua sob os arcos,
Na procura correta dessas cores,
Ou em pórticos libertos de marcos.

Saudade,
Da emoção que só permanece,
Aos corpos que em euforia se tocam,
Do sorriso que tudo desvanece,
Aos desejos que de dois seres brotam,
Realidade.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Fotografias do Espelho (Poesia)


Mapear todos teus poros, um por um,
Me aconchegar nas coxas e nos seios,
Sugar tua boca sem obstáculo algum,
Retirar com a língua os tolos receios.

Dentro de você deslizar pelo caminho,
Sentindo crescer ao seu toque certeiro,
Espalhar no teu corpo um doce vinho,
Sorvê-la completa, te secar por inteiro.

Lança esse olhar, afugenta tua razão,
Descansa liberta nesse abraço terno,
Em troca devolvo a minha explosão,
Vigio teu sono, seja verão e inverno.

Na luz ou sombra procuro teu calor,
No sexo desfrutamos nosso alimento,
Lambuzo no teu gozo, amado ardor,
Pois não encontrá-la é meu tormento.

Quero acampar no teu corpo quente,
Grudar nossa pele, nossa respiração,
Ser envolvido hoje, agora ou sempre,
Latejar em você até minha redenção.

Os lábios úmidos que me enlouquecem,
Ávidos chamam, sussurram, espreitam,
Num cantarolar mudo eles estremecem,
Nos desejos sinceros que nos permeiam.


Se encaixe em mim como quiser,
Fecha os olhos, entrega tua mão,
Cruzamos a estrada que convier,
Cultivando cegamente tal paixão.

Somos felizes, banhados de luar,
Sentimos saudades da eternidade,
Do horizonte, abraçamos ao mar,
Num beijo longo de cumplicidade.

Afaga este perigo, seduz esta tentação,
A vida enfim apontou nossos destinos,
No amor eterno cuido do teu coração,
Escute agora o surdo badalar dos sinos.
















quarta-feira, 26 de setembro de 2007

A Apoteose de Nós Dois (Poesia)


No lado sombrio da Lua,
Uma noite de apoteose,
Minha mão sentiu-a nua,
Mas não forçou a posse.

Foram caminhos, atalhos e vales,
Vias de toque, desejos e anseios,
Do cantar que cura nossos males,
Debrucei inteiro nesses canteiros.

Se era bem tarde me esqueci,
Mesmo cedo não te despertei,
Da claridade tola nos escondi,
Quando o seio sublime beijei.

O som distante da melodia,
O suave tom dos sucrilhos,
As bocas unidas nessa alforria,
As línguas livres em estribilhos.

Não havia certo e errado,
Ambos tinham sua razão,
Acordamos tarde lado a lado,
Do sonho repleto de emoção.

Explorar sem medo nosso destino,
Fazer o futuro adiante dar um fruto,
Realizar uma loucura ou desatino,
Um amor genuíno, em estado bruto.

Mas minha mão lapida a sua,
Meu corpo descansa no seu,
E na fé da fascinação mútua,
O coração que guardo é teu.



sábado, 22 de setembro de 2007

Feridas Abertas (Poesia)


Tantas perdas, uma Pedra,
Tanto dito, muita desdita,
Na garganta surge esse nó,
No coração bate outra dor,
Estamos sós, não há amor.

Não deviam ser lembranças,
Nem Chopin ou Morricone,
Adiamos todas as andanças
,
Longe deste arraial ou cabo,
Esperando na noite insone.

A luz do farol logo apagou,
Sumiu nosso porto seguro,
O incenso não ficará aceso,
Ao redor tudo está escuro,
A doce manhã não chegou.

sexta-feira, 21 de setembro de 2007

Fórmulas de Amar (Poesia)


Quero redescobrir o cheiro da esperança,
Deixar para trás temperamentos aguados,
Perceber que um adulto pode ser criança,
Que os corações não ecoam abandonados.

Naquelas palavras dilacerei todo o sentido,
Rompi a casca, a polpa, libertei a semente,
Despachei qualquer ideal hoje corrompido,
Revelei o sentimento que sufocava latente.

À luz de velas, nos andares mais altos,
O vento chama e estremece as chamas,
A lua ensina aos corpos nus e exaustos,
A ausência de verdades quando se ama.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

As Tebas de Todos Nós (Poesia)


Em Tebas tremem os tiranos,

Almas libertadas sem dor,

Corpos cativos sem amor,

Na solidão dos falsos arcanos.


Ao vento o sopro, o ardor,

A espera dos sonhos contidos,

A cegueira dos fatos omitidos,

No tempo o preço, o temor.


Te busco nesse universo falido,

Não importa o passar dos anos,

Pois na terra governam insanos,

A Tebas de um coração partido.



quarta-feira, 12 de setembro de 2007

O Preço do Pecado

Uma das expressões mais interessantes do cotidiano brasileiro é o "fui absolvido". Ela nunca está na boca do Zé das Couves, da Maria Candelária ou do Moleque Tião. Geralmente ela sai de uma garganta adornada por um colarinho branco, empunhando um diploma universitário ou um mandato político.
Nossos dôtores e ôtoridades parecem deter o monopólio dela, entre tantos outros. Acontece que, aqueles que ainda são donos do monopólio pessoal de pensar, e exercem esse direito sagrado, sabem que uma coisa é ser inocentado, outra é ser inocente. O emérito senador Renan Calheiros escapou da culpa, o que não significa que deixe de ser culpado.
Entre sessões e intenções secretas a famigerada ética (aquela ultrapassada invenção dos gregos antigos) vai se transformando numa qualidade em extinção. Ela é caçada, atingida e estripada a cada semana, no bojo de todo escândalo que surge. E que em seguida desaparece. Aquela festa eleitoral majoritária, ao qual nos convocam a cada quatro anos, provoca ressaca por todos os anos seguintes. Apesar disso, o Zé das Couves sai cedo de casa, apanha a Maria Candelária que fez serão no trabalho e carregam o Moleque Tião para testemunhar a festa da democracia.
Às 17 horas, com a cidade imunda de santinhos e panfletos, a festa popular acabou e começa uma mais requintada. Toda regada à champanhe e caviar, cheia de gente elegante e bonita, ao menos nos olhos de quem deseja assim enxergar. Quatro anos estão garantidos para muitos, sem falar nos que, como o notável senador Renan Calheiros, abiscoitaram oito. Esses mesmos que não lhe tomaram hoje. Afinal, sob sete chaves, sem câmeras ou holofotes, ele foi absolvido.
Como não dispomos mais dos gregos de outrora para protestar, precisamos nos ater ao passado mais recente. Me lembro que nossos avós ensinavam que julgar as pessoas era errado. Que isso não se fazia, constituía uma coisa feia aos olhos de Deus, um pecado.
Entretanto, assim como os gregos e sua filosofia foram colocados de lado, hoje vou fazer igual com os ensinamentos familiares. Dessa forma, mesmo absolvido, afirmo que para mim aquele admirável senador Renan Calheiros é culpado, não merece meu respeito como homem público, doutô ou ôtoridade.
Se pensar assim é pecado, deve haver um preço. Verifica na tabela que eu pago por ele.

P.S. Quarenta votos a favor do Senador... Como era o nome daquele conto das Mil e Uma Noites? Ah, sim, Ali Babá e os 4o Ladrões!

Tess, Ross, Vince e Eu (Conto)

Os quinze minutos seguintes seriam os mais intensos e cruciais de toda a minha vida.
Neles, Tess diria o que sentia a meu respeito, Ross me traria um grave problema e Vince acabaria colocando ordem em tudo. Sem mencionar que, com suas peculiaridades, cada um proporcionaria uma enorme surpresa.
Enquanto remexia o gelo no fundo do copo vazio, vendo a maior leva de vagabundos desfilando ao meu redor, Tess surgiu do nada e se sentou como fosse dona da mesa. Os óculos escuros escondiam os olhos geralmente inchados e vermelhos. Os amigos dela diziam que era choro doído por velhos amores. Os que a detestavam apontavam a bebida e o pó como responsáveis. Ambos estavam errados, garanto. Tess era mesmo uma pessoa bem estranha.
-- Meu querido... Preciso confessar uma coisa... Hoje ou nunca!
As confissões de Tess me irritavam. Nunca ganhei nada com elas. Perdi sempre a minha preciosa paz de espírito, na verdade. Tudo bem que nós dois tivemos um namoro na adolescência. Relação firme, com cinema de mãos dadas na sexta e almoço em casa no domingo. No sábado, sempre tentei tirar a roupa dela, sem sucesso. Dei meu primeiro beijo nela, mas não consegui minha primeira transa. Ross foi o felizardo, mas isso é uma outra história.
-- Não está cedo demais para confissões, Tess?
-- Também está cedo para beber... Quantos copos você já esvaziou?
Não devia ter-lhe dado aquele beijo de calouro. Ficou um carinho inútil, que agora me impedia de mandá-la para a puta que a pariu. Suspirei e me enchi de paciência, na esperança de livrar-me dela rapidamente.
-- Pensei muito, querido. Muito mesmo, nos últimos anos.
Em tempo: Tess era uma loura natural. Pensamentos nunca foram feitos para seus cabelos anelados e sua cabeça oca. Sabem que isso não é preconceito, todos conhecem algumas platinadas que dão veracidade à lenda. Escutar que ela havia matutado algo através dos anos era surrealista, no mínimo. E olhem que nem sei o que isso significa, porém soa muito bem.
-- No que pensou, Tess? Na bobagem que foi não se despir todas as vezes que te pedi? Como teria sido bom perder a virgindade comigo?
-- Isso, meu amor. Exatamente isso. Bom ter facilitado para mim agora. Não sabia como achar as palavras adequadas.
Sentia-me tonto e enjoado, deslocado. Meu copo, como recordam, estava vazio. Os poucos trocados haviam acabado e tinha apenas os cubos de gelo para brincar. Assim, pude somente engasgar com o ar gratuito que circulava na minha garganta. Porra, loura ou não essa me pegou desprevenido.
-- Começo a achar que cheira e bebe, Tess. Não posso ser o tal amor antigo por quem dizem que choraminga.
-- Mas é verdade, querido! Você é o meu maior amor, sempre foi! Carreguei o sentimento todos esses anos. Resolvi te dar esse presente. Pelo seu aniversário. Te procurar nesse canto sujo de espelunca e falar o que sinto.
-- Meu aniversário foi há nove meses...
-- Eu sei. No dia não tive coragem. Porém decidi que de hoje não passaria. Eu gosto de você, sempre gostei. Queria ter tirado a roupa para você algum daqueles sábados.
Lembrei que estávamos num sábado e que ela se mostrava óbvia demais, de vários modos. As belas coxas ainda espocavam na bermuda justa e o decote se dava ao luxo, por boas razões, de exibir parte dos seios médios.
Tess era grandona e bem apetitosa, estilo mulherão, muito mais desenvolvida, lógico, do que na juventude, quando eu implorara por sexo. No entanto ela negara fogo. Acabara se guardando para Ross e nunca a perdoei por isso. Tornara-me amigo dele pelo motivo mesquinho de um dia dar o troco.
-- Você é maluca, Tess. Aluga outro, tá? Vai para sua seita...
Ela fez uma cara de pura rejeição, enquanto tirava os óculos e me fulminava com seu par de olhos injetados. Em seguida eles ficaram marejados, carregados de decepção. Podia ser um truque ou mero artifício, embora fosse muito bem feito. Sem dizer uma palavra ergueu-se e ocupou a mesa em frente.
Evitou me encarar, de modo que não havia como saber se aquele choro continuava. A parte de trás da vasta e longa cabeleira desgrenhada ocupava meu campo de visão. Tess podia até estar rindo de mim agora e não faria a menor idéia disso. De onde saíra aquela declaração com tanto tempo de atraso? E por que agora? Nem naqueles anos dourados ela se mostrara tão apaixonada assim. Entregara-se a Ross sem qualquer problema, pouco depois de terminarmos. Comigo nunca fez nada em dois anos. Com ele fez tudo logo no primeiro dia. No entanto, ainda havia uns coringas no bolso dela. Ou então ocultos na cabeleira, que balançava negativamente dois passos adiante.
-- Nunca entendeu meus sentimentos, cara. Não faz idéia do que passei por sua causa. Tudo inútil depois do que me disse. Você é um lixo, um total idiota. Não imagina como me sinto. Não passa de uma pessoa vazia.
Tess levantou-se sem virar o rosto. Partiu como chegou, rápida e silenciosamente. Não tive tempo de refletir sobre tudo aquilo, pois Ross veio por trás e capturou minha atenção. Também se acomodou ignorando qualquer cerimônia, de um jeito que podia ter sido combinado. Ele cultivara uma barba espessa e negra. Eu não o via há um mês, aproximadamente. Seus olhos eram límpidos e aguçados, não deixavam escapar nada. Percebeu meu copo vazio, o gelo derretido e num gesto discreto pediu ao garçom uma rodada para dois.
-- Tenho algo sério para conversar, amigo.
-- O que, Ross? Desde quando precisa de ajuda em sua vida?
Ele coçou a barba devagar, pensativo. Mediu bem suas palavras, com precisão cirúrgica. Seria minha segunda surpresa matinal.
-- Acho que desde que transei com a Tess e ganhei seu ódio.
Tive vontade de jogar a bebida na cara dele. Como não tinha mais grana e a goela estava seca, segurei a raiva. Outra vez conjeturei incrédulo sobre a razão de tudo aquilo. Primeiro Tess, depois Ross. Duas pessoas do meu passado rondando como mensageiros da fortuna. Depois de uma bizarra declaração tardia de afeto, arrematada por agressividade e recriminação, recebia um inusitado pedido de auxílio e clemência de um sujeito imune a isso.
-- Não fode, Ross. Está de sacanagem?
-- Sacanagem foi ter me dedurado para o Vince. Atrapalhou todo meu esquema por uma bobagem. Andou dois meses atrás fuçando minhas coisas, se metendo nos meus planos. Devia ter liquidado você, mas não posso.
Outra novidade, cacete. O traste se declarando incapaz de apagar alguém, troço que fizera inúmeras vezes. Começou a esticar a barba de modo nervoso, como se tivesse um compromisso urgente e o prendesse.
-- Não quero me indispor com você, camarada.
-- Não levou isso em conta antes.
-- Se refere a Tess, claro...
-- Isso te incomoda, Ross?
-- O que você acha? Desconfio que todas as coisas que andaram mal na minha vida tiveram sua participação. Na verdade, você é o incomodado com essa história. Guardou rancor desde a época.
-- E vocês são dois santinhos... Unidos no sexo e nas crenças. As aves do paraíso daquela seita maluca que participam. Uma piranha viciada e um meliante que tirou do caminho vários tipos da mesma laia. Hoje resolvem acertar suas contas comigo. Ela disse que me amava. E você, Ross? Quer o que, porra? Meu perdão? Danem-se os dois, não encham meu saco...
Ele, ao contrário dela, não chorou. Olhou-me seriamente, como quem entende algo profundo que escapa ao outro. Tragou de um gole o resto da bebida, limpando a boca na palma da mão. Ganhou o tempo necessário para ajeitar suas idéias confusas, porque não vi sentido algum na sua cantilena.
-- Ela me procurou para salvá-lo. Deve lembrar das bobagens que fez quando era jovem. Você se meteu com gente perigosa sendo um amador. Tess pediu para acobertá-lo. Cobrei meu preço, exigi o que me interessava. Vantagem de ser profissional. Fiquei na cama dela o suficiente até livrá-lo.
Observei-o incrédulo, lembrando do quanto podia ser cínico.
-- Por que tudo isso agora? Tantas revelações?
-- Não viemos por vontade própria. Nem eu, nem ela. Tem um grande problema adiante, amigo, quisemos aliviar um pouco suas angústias. Talvez seja a seita, como disse. Não prestamos, porém tentamos nos equilibrar.
Por uma fração de segundo, fechei os olhos para conter a raiva. A vontade era trucidá-lo com o que estivesse disponível, mesmo sendo os copos vazios daquela bebida vagabunda e barata, cheirando a formol. Quando procurei por ele, entretanto, havia desaparecido como Tess. Para minha terceira surpresa em seqüência, me deparei com Vince me apontando uma arma no meio da testa.
-- Acabou de rezar, vagabundo? Vai pagar por interferir nos meus assuntos. Aqueles trocados que torrou com biritas e vagabundas sairão caro.
-- O que é isso, Vince? Nem comecei, nunca rezo... Por que me aponta esse trabuco? O que há com todo mundo essa manhã? Dormiram mal?
-- Todos rezam na hora final, imbecil. Pediu quinze minutos para colocar as idéias em ordem antes de partir. Escolheu esse canto de boteco e concedi seu último desejo. Ficou de olhos fechados e murmurando o tempo todo. Não prestei atenção na sua reza, apenas no relógio. Tempo de ir.
-- Vince, não fiz nada... Já sei, foram os desgraçados da Tess e do Ross que me intrigaram contigo. Eles vieram me enrolar agora mesmo e...
-- Enrolar? Tess e Ross? Os dois desapareceram do bairro há meses, maluco. Depois que entraram na tal igreja mudaram de vida e saíram daqui, casados. Parece que morrer não está lhe fazendo bem, cara – gracejou.
Antes que protestasse pela minha vida, o clarão do disparo de Vince me levou de encontro à escuridão. Não senti nada, realmente. Quando meu corpo desabou já não me encontrava ali. Flutuava em meio às inúmeras reminiscências que compuseram minha vida, assistindo ao filme do qual era o astro principal. A história nada tinha de belo, no entanto era toda minha.
Enfim, Vince colocara mesmo ordem em tudo, acalmara minha confusão interior. O fizera por vias tortas, o que não era mais questão minha. Os perdões que não concedera a Tess e Ross teriam de esperar uma segunda chance. O de Vince precisaria aguardar que eu superasse os temas mundanos.
Talvez custasse uma eternidade, no entanto, naqueles últimos e cruciais quinze minutos existiram somente Tess, Ross, Vince e eu. Amém.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

Na Mídia, Sem Temor

A hipocrisia virou um programa de TV, mais uma notícia de jornal. Jamais antes se mentiu tão descaradamente, com um ar tão superior ou natural. Para onde foi aquele tempo no qual ao ser desmacarado publicamente, o flagrado recorria até ao suicídio, tamanha sua vergonha?

Tudo bem, não chega a ser necessário radicalizar, mas é preciso dissimular tanto? A impressão é que querem nos tornar os súditos que assistem ao rei desfilar nu, considerando que ele está ricamente trajado.

Me incomoda muito nessas horas os politicamente corretos. aqueles que dizem que não devemos generalizar, culpar a totalidade pelos desatinos de uma minoria. Engraçado isso. Aprendi na escola que a maioria absoluta era a metade mais um. O mesmo cálculo válido para aprovar projetos em Brasília e condenar os indiciados por falta de ética ou decoro parlamentar.

Pelo jeito isso não vale por lá. Que minoria é essa que fecha acordos e absolve corruptos? Ou que subverte os preceitos aritméticos? Nunca tantos sofreram tanto por tão "poucos"...


O Velho e o Novo

Parece que sempre nos cobram um olhar no futuro, um pé no presente e a ruptura com o passado. Uma busca incessante da mutabilidade, da transformação. Nunca entendi essa batalha entre o velho e o novo. O futuro e o passado, a rigor, no momento presente, estão sempre a um segundo de distância, em ambos os sentidos.

Costumam dizer que aquilo que passou cumpriu seu ciclo. Mas nada se comporta exatamente conforme o desejado. Não moldamos o tempo, nem o manipulamos, ele apenas nos escapa. Os românticos já disseram que a vida é um estado de espírito. Acho que na verdade é um estado de tempo.

Tempo de dormir, tempo de acordar. Tempo de beber, tempo de comer. Tempo de viver, tempo de morrer. Essa sucessão de períodos, de atitudes, nos mostra que as certezas duram tanto quanto o instante atual. E que se apoiam em experiências distantes de nós apenas um mísero segundo. Mergulhar no passado ou nadar para o futuro? Talvez o leito do rio esteja seco.

Melhor caminhar então. Isso nos dá o ritmo preciso e a maravilhosa chance de parar, olhar para os lados, vislumbrar a retaguarda e sonhar com a linha do horizonte adiante.