quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Prá Não Dizer Que Não Falei de Flores

Falar de aspectos sombrios da natureza humana cansa.

Os dois lados do eixo são sobrecarregados: quem escreve e aqueles que lêem. Já me disseram isso com todas as letras. Renderia um longo texto discorrer sobre o que é oculto ou cruel, pesado ou violento. Tantas vezes a agressividade vem seguida de um sorriso, de um sentido de amadurecimento. De uma expressão de vontade ou de um agradecimento polido. A gente esbarra nas atitudes mais surpreendentes. Como bradou um infiel fugindo das boas intenções de um cavaleiro cristão que libertava a Terra Santa: “Senhor, livrai-me dos que vieram me salvar”.

Aos que se pretendem malvados, ou acreditam na amplitude de seu lado negro, sobra a ingenuidade dessa pretensão. Assim como a bondade humana não é absoluta, muito menos a maldade. Uma pertence a Deus, outra ao Diabo. A capacidade de praticar atos escusos ou dignos nada tem de especial: são meras opções mundanas. O orgulho de uma postura ou de outra é inútil. Ser lembrado por grandes realizações ou por gestos simples nada significa na roleta cósmica. Os pólos convergem involuntariamente, tanto na extrema arrogância quanto na máxima humildade. Quem consegue manter isso ao menos próximo do equilíbrio sequer tocará no assunto, pois se tornou uma faceta natural da personalidade e do caráter.

O meio termo dos antigos místicos. A transcendência da razão e do instinto, o casamento espiritual do Dr. Jekyll e de Mr. Hyde. Como a tarde de hoje: nem clara, nem nublada. Sem sol e sem chuva. Acolhendo os que não gostam de sair com a garoa e ainda todos que evitam o sol excessivo. Dias virão em que isso não ocorrerá, a balança penderá numa direção, contudo este será um processo da natureza. Não pertencerá à alçada dos discursos repetidos ou do charme planejado.

As flores, sedentas de chuva e necessitadas de luz solar, agradecem.

terça-feira, 27 de novembro de 2007

Polegares no Fogo


Tiros e retiros.
Alguns disparam, outros se recolhem. Massacres são aplaudidos, o estilo refinado pode tornar tudo mais digerível. Em contrapartida, há quem baixe os olhos e acuse, indignado, o golpe no estômago. Somos diferentes sim, perdidos na calmaria e na tempestade. As certezas não são mais débeis, pelo contrário. Enquanto duram se mostram sólidas. Porém seu caráter efêmero, até a próxima novidade, as transforma naqueles vírus ou bactérias que vivem apenas 24 horas. Será mesmo que já pensei dessa maneira? Ou terei realmente vivido aquilo há dois anos? A memória prega peças. A dúvida as destrói, sem clemência. Tão certo quanto alguns alvejam e outros se esquivam.
Na época dos gladiadores, César ou seus prepostos eram saudados como divindades. Um simples polegar para o alto ou invertido reforçava o poder supremo, o legislar sobre a vida e a morte. Enquanto a multidão se amontoava no frenesi da barbárie, os olhos esbugalhados do contendor imobilizado, batido, aprisionado sobre o pé do vitorioso a pressionar-lhe o peito, vasculhava como podia a plebe à procura de uma tendência. Nessa hora ele deixava de ser o centro das atenções, já fizera o que fora possível. Seu desempenho traçaria seu futuro. Ou então, derradeira esperança, repousaria no humor daqueles que poderiam decidir tudo, com um simples gesto. E havia igualmente os que dardejariam com o dedo ou o esconderiam sob as vestes.
Uma arena romana ou uma tela de cinema. Assistir ao espetáculo é uma decisão pessoal. Permanecer até o final, uma demonstração de vontade. Sair na metade apenas concede o benefício da dúvida. Anuência ou rejeição podem não significar nada, pois tudo é passageiro, caracterizando uma banal contagem regressiva às mudanças de estação. Até o César original tombou no Senado, apunhalado aos pés da estátua de Pompeu, antigo aliado e depois inimigo. Não houveram polegares erguidos ou baixados, apenas curvados em torno das várias adagas que lhe ceifaram a existência. A turba primeiro saudou sua morte, eufórica sob os discursos dos conspiradores. Pouco depois exigia suas cabeças, insuflada pela oratória de Marco Antônio. Esta foi a mágica novidade de então, o componente que tornou passivos em ativos, figurantes em protagonistas.
A morte que atingiu o afamado César e o anônimo gladiador não distinguiu o certo e o errado, o justo e o injusto. Mas trouxe uma carga de escolha ou responsabilidade individual aos que delas souberam ou testemunharam. Nem o espetáculo seguinte os as consequências políticas anulariam isso. O efêmero é uma ilusão que ora nos alivia, ora nos espreita, pois jamais deixará de induzir um capítulo inédito, uma nova fase, uma era distinta. Ao vasculhar o firmamento para achar a estrela da sorte e fazer um pedido colocamos os polegares entrelaçados, em súplica, rogando por nós. O boneco de madeira em nosso interior pode se modificar em menino de carne e osso, como pediu Gepeto para seu Pinóquio.
A miraculosa dádiva da vida nos seus diversos compartimentos, estejam fechados, abertos ou escancarados. Quanto mais a conservamos, mais perto de perdê-la estamos. Incontáveis seguiram o caminho de César, Pompeu e do gladiador. Rogaram como Gepeto ou erraram como Pinóquio. Decidiram ou se omitiram do que acontecia num circo antigo. Aplaudiram ou vaiaram muito a mortandade exibida numa sala escura de cinema. Projetar filmes, sonhos e ideais não estabelece o vício e a virtude. É tão natural qual a morte democrática que chega para todos. Se os atos praticados foram edificantes ou deploráveis, se as atitudes decididas constituíram generosidade ou egoísmo, não adiará nunca a sua chegada. Os polegares estão destinados a descansarem eternamente, melhor movê-los no sentido correto, independente da expectativa de inferno ou paraíso.
Os primeiros navegantes relataram assombrados o fenômeno do Fogo de Santelmo. Um barco em alto mar é seguidamente atritado pelo vento e seu casco pela água. A eletricidade estática decorrente se acumula nos mastros, que funcionam como uma antena receptora, formando uma carga positiva. Se numa tempestade, uma nuvem carregada negativamente se aproxima do topo da embarcação, o resultado é uma chama azulada, produto da combinação iônica, visível a olho nu. Os marinheiros, apavorados, mexiam seus polegares em todas as direções, ávidos por proteção, suplicando pela salvação. Eles ansiavam por terra.
Contudo nesta ocorria outro fenômeno inexplicável: o fogo-fátuo.
Este é uma exalação que aparece à noite nos cemitérios e pântanos, proveniente da inflamação espontânea do gás metano decorrente dos corpos orgânicos em decomposição. Ao se acumular e misturar com o oxigênio, assume a forma de uma esfera luminosa, que levita e desloca até consumir-se por inteira, amedrontando passantes e incautos. Estavam ansiando por correntezas.
Imagine uma caravela como um sarcófago flutuante e o oceano igual lama pantanosa. Transporte o fogo-fátuo aos sete mares e traga o Fogo de Santelmo às charnecas inóspitas. Torne-os efêmeros em seus nascedouros. Faça deles a atração seguinte, a novidade a ser explorada. Admire-os de longe, tema-os de perto, esqueça as explicações científicas e os encare mergulhado em total ignorância, cegueira e superstição. Seus polegares, sejam erguidos, abaixados, curvados, entrelaçados ou descansando, irão implorar uma solução. Violenta ou pacífica, radical ou gradual, trágica ou edificante. Se virarmos o rosto e contarmos com o destino, já as conhecemos antes assumindo os rótulos de Inquisição, Fascismo ou Esquadrão da Morte. Se rezamos por um milagre e somos atentidos, compareceram no passado como São Francisco de Assis, Gandhi ou Betinho.
Acima da sorte e do azar, do abençoado e do amaldiçoado, do Éden ou do Apocalipse, podemos respirar fundo, confiar em algo maior, alcançar a serenidade e penetrar o Fogo de Santemo e o fogo-fátuo não somente com os polegares, mas usando todos os nossos dedos. Tentar tocá-los e perceber que não ultrapassam a aparência, são desprovidos de materialidade ou substância, penetrando no vazio sem comprometer a integridade das mãos. Imitando o indivíduo que abandonou as profundezas da gruta no Mito da Caverna, de Platão, descobrindo o caminho genuíno da salvação além dos discursos factuais, das tolas convicções e dos medos primitivos.
Para enfim concluir que nenhum deles nos queima.

segunda-feira, 19 de novembro de 2007

Como, Onde e Quando?

Para que essa incessante impressão de perseguir a própria sombra?
Ou de descobrir um amanhecer mais bonito, um ideal superior aos outros, uma crença que responda todas as perguntas?
Por que acompanhar as tendências da moda, o interesse pelas últimas novidades cirúrgicas, a análise do software inovador?
Pode ser que exista muita vida lá fora. Mas tem mais ainda dentro de nós. Uma alma radiante, um coração pulsante, uma mente inquieta. A usina dos sonhos de todos nós. Devia haver uma lei que respeitasse tudo isso. Pois a lei natural parece estar sendo esmagada, esquecida.
O Pai nosso de cada dia, a Ave Maria, o Salve Rainha.
Confessar abertamente os medos, comungar os vacilos, penitenciar compartilhando o segredo. O ônibus e suas paradas, a orla marítima e as gaivotas, os golfinhos e seu canto. O riso que afugentou tudo, o sorriso que descortinou tanto, as mãos que enfim se reconheceram. Nada será como antes, amanhã ou depois de amanhã... Será?
O nó na garganta, o choro aprisionado no peito, o cansaço no olhar. O organismo violentamente invadido, os tecidos mais depauperados, o sangue se agüando. A vontade de falar e não conseguir, o desejo de esconder e apenas fracassar.
Não existem memórias que superem as experiências. São meros retratos pálidos, ansiando por cores. Quadros implorando por uma moldura. Representações aflitas atrás de um espaço livre onde serem penduradas. E tanta existência aí dentro, dialogando com o tempo que, como a justiça, é cego.
Não o tornemos também surdo e mudo.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Luar Sob o Sol

A noite parece ter a capacidade de tornar o silêncio redundante.
“Noite”, no caso, é aquilo que sucede ao dia. Não se trata de “noitadas” ou da efervescência que muitos buscam para se sentirem vivos. Falo da escuridão, da paz, da serenidade que nos é roubada sob o sol. Da antevisão do que parece ser o último período livre na face do planeta, onde a respiração é tão natural que prescinde do oxigênio.
Que homem diz para sua mulher, ou que namorado sussurra à namorada, “quer passar o dia comigo?”. Se fizer isso estará convidando para um passeio de mãos dadas, um almoço depois e, quem sabe, um cinema arrematando tudo. E se ele, ao invés disso, propor: “quer passar a noite comigo?”. Aí esqueçam a volta pelo shopping, o jantar e a sessão de meia-noite. A cama já está mesmo feita, aconchegante, pronta para ser desmanchada com volúpia, doçura ou das duas maneiras.
Romance à luz do sol contra sexo abençoado pelo luar. Precisa mesmo ser tão banal assim? Será que a variação que muitos desejam para sacudir suas vidas, não pode residir em trocar a noite pelo dia? Não no sentido de inverter a hora de dormir. Mas sim deixar a noite ainda mais silenciosa, sem os gemidos dos amantes ou orgasmos que se propagam através das paredes. Dissolver os ruídos da paixão na cacofonia do trânsito, dos aparelhos de som, da vizinhança inconveniente.
Deixar o silêncio noturno ainda mais redundante. A liberdade triunfando como nunca na face da Terra. Além disso, não existe mesmo horário para amar. Seja celebrando o Sol ou reverenciando a Lua.
Porque o dia parece ter a capacidade de tornar o barulho redundante...

segunda-feira, 5 de novembro de 2007

Atalhos e Encruzilhadas

Dizem que o maldade surgiu na Terra quando foi aberta a Caixa de Pandora, libertando toda a gama de violência, ambição, rancor e inveja latentes na humanidade.
Mais uma lição da mitologia grega, a nos ensinar com poesia os fatos da vida e da morte, do amor e do ódio, do céu e do inferno. Ilustrações assim não faltam nas mais diversas culturas e tradições. Igual Adão e Eva, ao morderem a maçã da árvore proibida, perdendo o direito ao Paraíso terreno.
Explicações sempre sobraram ao ser humano, sob a forma de fábulas ou dogmas. A imagem da Caixa de Pandora, porém, me fascinou desde quando li sobre ela a primeira vez. Fiquei imaginando um espírito maligno esgueirando-se lentamente, similar uma insinuante fumaça negra, densa e pegajosa se espalhando aos quatro cantos.
Na mesma época a Física me ensinou que não existia frio. O que ocorria era falta de calor. Como ciência e espiritualidade nunca se chocaram na minha visão, muito menos arte e filosofia, imaginei que, na verdade, o Mal provavelmente também não existia: havia era a ausência do Bem. Quase uma certeza científica, sem significar frieza ou cartesianismo.
Assim, tudo seria regido pela vontade de fazer o Bem, proporcionar coisas boas a si próprio e ao semelhante. Uma maneira de recriar o paraíso perdido, sem rogar por milagres ou culpar o destino inexorável. A libertação definitiva do fatalismo grego ou do conformismo católico. Porém, em sequência, li a obra de Friedrich Nietzche, Além do Bem e do Mal. Nela, eram destrinchadas a tentação do poder e a moralidade, aforismos que regulariam a sexualidade e o senso estético, maniqueísmos que, em última instância, elaboraram os conceitos de certo e de errado, do vício e da virtude, "assim na terra como no céu".
Então, a filosofia agora se sobrepunha à ciência exata, que substituíra o dogma, que sucedera ao mito. Mas, como disse, a intuição sempre me indicou múltiplas saídas, ou melhor, soluções conjuntas. Nunca percebi a necessidade de uma explicação anular outra, de uma nova visão obliterar a anterior. Essa consciência não seria o mecanismo que nos diferencia de seres irracionais, o princípio divino que carregamos?
Voltando a falar no divino, para explicar um fato científico, corre-se o risco de recorrer ao mítico e ao dogmático. Se fosse um indivíduo de temperamento rebelde a fazê-lo, elegeria o primeiro. Se optou pelo conformismo, aceitará sem contestação ao segundo. A filosofia de vida se molda então às próprias escolhas, sejam conscientes ou absorvidas. Mas, então, a vontade de praticar boas ações deixará de ser natural, abrindo mais uma vez, nas omissões nossas de cada dia, a Caixa de Pandora, os males de todos nós.
São nas separações do conhecimento que se arquiteta a perdição pessoal ou coletiva. Num sentido amplo, pelas exclusões sociais e políticas, pela elevação da idealização que aceita apenas uma coisa ou outra, nunca busca o meio termo. Sob um ângulo íntimo, no universo interior, por crermos na impossibilidade de estimular as mais diferentes buscas, de caráter simultâneo, isolando-nos das várias soluções e das diversas saídas.
Na confusão que nos faz abordá-las como atalhos que resultam em encruzilhadas.
Nada impede que uma busca espiritual conviva com o prazer carnal. Ou que a ânsia de explorar a solidão interna, o auto conhecimento, exista na presença de um parceiro. O êxtase religioso não contradiz o orgasmo, assim como a devoção a algo maior não proibe que o coração seja entregue amorosamente a alguém. Beijos na boca também são tão superiores quanto orações que brotam na alma.
Além do bem e do mal, da ciência e da filosofia, do mito e do dogma, existe a felicidade para ser alcançada pela combinação destes caminhos, achando-se aí sim o autêntico atalho às encruzilhadas da angústia e do medo.