terça-feira, 27 de novembro de 2007

Polegares no Fogo


Tiros e retiros.
Alguns disparam, outros se recolhem. Massacres são aplaudidos, o estilo refinado pode tornar tudo mais digerível. Em contrapartida, há quem baixe os olhos e acuse, indignado, o golpe no estômago. Somos diferentes sim, perdidos na calmaria e na tempestade. As certezas não são mais débeis, pelo contrário. Enquanto duram se mostram sólidas. Porém seu caráter efêmero, até a próxima novidade, as transforma naqueles vírus ou bactérias que vivem apenas 24 horas. Será mesmo que já pensei dessa maneira? Ou terei realmente vivido aquilo há dois anos? A memória prega peças. A dúvida as destrói, sem clemência. Tão certo quanto alguns alvejam e outros se esquivam.
Na época dos gladiadores, César ou seus prepostos eram saudados como divindades. Um simples polegar para o alto ou invertido reforçava o poder supremo, o legislar sobre a vida e a morte. Enquanto a multidão se amontoava no frenesi da barbárie, os olhos esbugalhados do contendor imobilizado, batido, aprisionado sobre o pé do vitorioso a pressionar-lhe o peito, vasculhava como podia a plebe à procura de uma tendência. Nessa hora ele deixava de ser o centro das atenções, já fizera o que fora possível. Seu desempenho traçaria seu futuro. Ou então, derradeira esperança, repousaria no humor daqueles que poderiam decidir tudo, com um simples gesto. E havia igualmente os que dardejariam com o dedo ou o esconderiam sob as vestes.
Uma arena romana ou uma tela de cinema. Assistir ao espetáculo é uma decisão pessoal. Permanecer até o final, uma demonstração de vontade. Sair na metade apenas concede o benefício da dúvida. Anuência ou rejeição podem não significar nada, pois tudo é passageiro, caracterizando uma banal contagem regressiva às mudanças de estação. Até o César original tombou no Senado, apunhalado aos pés da estátua de Pompeu, antigo aliado e depois inimigo. Não houveram polegares erguidos ou baixados, apenas curvados em torno das várias adagas que lhe ceifaram a existência. A turba primeiro saudou sua morte, eufórica sob os discursos dos conspiradores. Pouco depois exigia suas cabeças, insuflada pela oratória de Marco Antônio. Esta foi a mágica novidade de então, o componente que tornou passivos em ativos, figurantes em protagonistas.
A morte que atingiu o afamado César e o anônimo gladiador não distinguiu o certo e o errado, o justo e o injusto. Mas trouxe uma carga de escolha ou responsabilidade individual aos que delas souberam ou testemunharam. Nem o espetáculo seguinte os as consequências políticas anulariam isso. O efêmero é uma ilusão que ora nos alivia, ora nos espreita, pois jamais deixará de induzir um capítulo inédito, uma nova fase, uma era distinta. Ao vasculhar o firmamento para achar a estrela da sorte e fazer um pedido colocamos os polegares entrelaçados, em súplica, rogando por nós. O boneco de madeira em nosso interior pode se modificar em menino de carne e osso, como pediu Gepeto para seu Pinóquio.
A miraculosa dádiva da vida nos seus diversos compartimentos, estejam fechados, abertos ou escancarados. Quanto mais a conservamos, mais perto de perdê-la estamos. Incontáveis seguiram o caminho de César, Pompeu e do gladiador. Rogaram como Gepeto ou erraram como Pinóquio. Decidiram ou se omitiram do que acontecia num circo antigo. Aplaudiram ou vaiaram muito a mortandade exibida numa sala escura de cinema. Projetar filmes, sonhos e ideais não estabelece o vício e a virtude. É tão natural qual a morte democrática que chega para todos. Se os atos praticados foram edificantes ou deploráveis, se as atitudes decididas constituíram generosidade ou egoísmo, não adiará nunca a sua chegada. Os polegares estão destinados a descansarem eternamente, melhor movê-los no sentido correto, independente da expectativa de inferno ou paraíso.
Os primeiros navegantes relataram assombrados o fenômeno do Fogo de Santelmo. Um barco em alto mar é seguidamente atritado pelo vento e seu casco pela água. A eletricidade estática decorrente se acumula nos mastros, que funcionam como uma antena receptora, formando uma carga positiva. Se numa tempestade, uma nuvem carregada negativamente se aproxima do topo da embarcação, o resultado é uma chama azulada, produto da combinação iônica, visível a olho nu. Os marinheiros, apavorados, mexiam seus polegares em todas as direções, ávidos por proteção, suplicando pela salvação. Eles ansiavam por terra.
Contudo nesta ocorria outro fenômeno inexplicável: o fogo-fátuo.
Este é uma exalação que aparece à noite nos cemitérios e pântanos, proveniente da inflamação espontânea do gás metano decorrente dos corpos orgânicos em decomposição. Ao se acumular e misturar com o oxigênio, assume a forma de uma esfera luminosa, que levita e desloca até consumir-se por inteira, amedrontando passantes e incautos. Estavam ansiando por correntezas.
Imagine uma caravela como um sarcófago flutuante e o oceano igual lama pantanosa. Transporte o fogo-fátuo aos sete mares e traga o Fogo de Santelmo às charnecas inóspitas. Torne-os efêmeros em seus nascedouros. Faça deles a atração seguinte, a novidade a ser explorada. Admire-os de longe, tema-os de perto, esqueça as explicações científicas e os encare mergulhado em total ignorância, cegueira e superstição. Seus polegares, sejam erguidos, abaixados, curvados, entrelaçados ou descansando, irão implorar uma solução. Violenta ou pacífica, radical ou gradual, trágica ou edificante. Se virarmos o rosto e contarmos com o destino, já as conhecemos antes assumindo os rótulos de Inquisição, Fascismo ou Esquadrão da Morte. Se rezamos por um milagre e somos atentidos, compareceram no passado como São Francisco de Assis, Gandhi ou Betinho.
Acima da sorte e do azar, do abençoado e do amaldiçoado, do Éden ou do Apocalipse, podemos respirar fundo, confiar em algo maior, alcançar a serenidade e penetrar o Fogo de Santemo e o fogo-fátuo não somente com os polegares, mas usando todos os nossos dedos. Tentar tocá-los e perceber que não ultrapassam a aparência, são desprovidos de materialidade ou substância, penetrando no vazio sem comprometer a integridade das mãos. Imitando o indivíduo que abandonou as profundezas da gruta no Mito da Caverna, de Platão, descobrindo o caminho genuíno da salvação além dos discursos factuais, das tolas convicções e dos medos primitivos.
Para enfim concluir que nenhum deles nos queima.

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