quarta-feira, 23 de abril de 2008

Amor e Redenção (Conto)


Era uma vez...
Essa é a história de 16 e 17.
Nossos personagens não têm nome, pois vivem sob tratamento numa instituição especial, onde isso pouco importa. A doença que os aflige também não possui nome, apesar disso ter muita importância em lugares assim. Mas nenhum pesquisador ou cientista até hoje a batizou com aquele emaranhado hermético de termos em latim. Estão confusos sobre a moléstia, jamais se viu um caso similar. Para sua grande surpresa, no mesmo dia surgiram, simultaneamente, dois pacientes apresentando aqueles estranhos e fenomenais sintomas. O último detalhe que se preocupariam, portanto, seria com seus respectivos nomes.
Infelizmente, constataremos adiante que os principais interessados não podem ajudar. São incapazes de dizer como se chamam. Chegaram aqui após uma série de paradas e peregrinações, percorrendo uma longa linha de estabelecimentos do gênero. Onde o caráter excepcional do seu problema passou despercebido, classificado muitíssimo aquém de sua verdadeira extensão. Sem parentes ou amigos que insistissem junto às autoridades médicas, dependeram da eventualidade de um exame feito acidentalmente para surpreender os plantonistas.
Assim, 16, um homem, e 17, uma mulher, apenas carregam num crachá o número de seus quartos adjacentes. O destino demorou décadas em reuni-los, mas enfim cumpriu seu papel. Viveram a maior parte do tempo afastados de tudo e de todos, encerrados em ambientes de solidão e penumbra. Ambos ainda são jovens, em torno dos 30 anos, e o mal que os acomete acompanha-os desde o nascimento. Segundo o boletim de entrada, trata-se de uma variação original do autismo, embora certas peculiaridades impeçam de classificá-los assim. Com a palavra, o diretor da clínica, cujos nomes omitiremos, sendo irrelevantes no curso dessa narrativa:
- O autismo é um distúrbio agudo no qual, desde a mais tenra infância, o indivíduo não consegue desenvolver relações sociais normais com as pessoas e o mundo ao redor, preferindo o silêncio e se comportando de modo repetitivo na sua alienação, através de certos atos e rituais. Sua causa continua um mistério. É uma patologia diferente do retardo mental, pois não existe uma lesão.
- E no que afinal os sintomas de 16 e 17 os impedem de serem considerados autistas?
- Apesar da sintomática deles conter todas estas características existem outras que nunca lidamos... É complicado de explicar aos leigos... No ponto de partida da moléstia podemos considerá-los autistas típicos. À medida que pesquisamos seu córtex e o encéfalo somos obrigados a retroceder no conceito, pois descobrimos que, de algum modo, existe uma atividade subconsciente excêntrica, de metodologia normal, auferida por modernos e sofisticados equipamentos de mapeamento cerebral.
- Como assim? O que significa isso?
- Que no seu subconsciente percebem a vida em volta, igual a qualquer um de nós. Raciocinam razoavelmente, desejam coisas materiais, tiram conclusões, têm vontades naturais. Apenas não conseguem a partir daí comunicá-las ou concretizá-las como eu e você. A limitação da doença é uma barreira que os torna prisioneiros do próprio corpo físico. Nossos esforços, até hoje infrutíferos, concorrem no sentido de procurar um modo de driblar ou saltar este obstáculo. Seja através da ministração de drogas químicas ou terapias de estimulação dos sentidos. Tudo é muito tênue e sutil, os resultados obtidos se revelaram nulos, sem qualquer avanço mínimo ou perspectiva de superação...
Agora conhecem algo mais sobre 16 e 17. O que não significa tanto, pois ninguém sabe o que se passa no seu interior, quais as expectativas e os sonhos que regem o seu íntimo. A batalha entre seus anjos e demônios permanece oculta, soterrada sob forças inexplicáveis, nunca combatidas anteriormente. A equipe responsável pelo delicado tratamento, por razões próprias, sempre providenciou para que jamais se encontrassem ou dividissem uma sala de atendimento. Estavam instalados em quartos vizinhos, todavia a divisão de horários tornava impossível um encontro ou simples cruzamento casual nos corredores. Aos olhares individuais, eles ignoravam a existência mútua.
Certo dia, entretanto, alguém cometeu um grave erro. Se foi o enfermeiro responsável por ele ou a ajudante encarregada dela, persiste ainda a discussão. O fato é que, numa manhã distante, eles foram sentados lado a lado na seção de fisioterapia motora. Recentemente, 16 apresentava notáveis progressos na utilização das mãos e das pernas. Porém, sem controle algum das reações ou vestígio de vontade lógica, além do ritual obsessivo de apertar uma bolinha de espuma, deixá-la cair e em seguida juntá-la, somente para repetir o processo horas a fio. E se lhe tomassem o objeto quando estava no chão, cessava a atividade como sequer a houvesse iniciado. Sem esboçar as menores interjeições de desagrado ou expressões de súplica.
Embora bastante próximos naquele recinto, as reações de 16 e 17 eram de absoluta falta de interesse um pelo outro, numa total passividade ao ambiente. Conservando uma postura rígida ao extremo, desprovida de qualquer sinal de vivacidade, parecia que os camisolões hospitalares trajados os tornavam invisíveis. Quem os visse julgaria que dois belos manequins de vitrine haviam sido despachados noutro endereço, pois sua aparência atraente e asseada se configurava a rigor asséptica e neutra. Ele começou o seu habitual esquema de aperta, larga e apanha bolinha de espuma. Os olhos opacos e vidrados, mexidos de cima para baixo, e vice-e-versa, numa atitude mecânica, não despertavam qualquer reação nela, assim como não provocaria nele se os papéis ficassem invertidos.
Num dado momento, em uma das quedas, a bolinha rolou mansamente na direção do pé direito de 17. Ele se inclinou automaticamente na sua direção para apanhá-la. Ao erguer o corpo de volta à posição estática que mantinha, roçou levemente na sua coxa e no seu braço.
- O que foi isso, esse tremor? – indagou o subconsciente dele.
- Que arrepio estranho e gostoso! – constatou o subconsciente dela.
- Quero fazer de novo... Tocar nela outra vez...
- Por que ele não repete aquele gesto?
Aquilo não estava ao alcance do desejo dele ou da vontade dela, por maiores tais que fossem, retomar a maravilhosa experiência. Exceto se a bolinha realizasse por acaso o mesmo trajeto, obrigando-o a encostar-se nela, involuntariamente, quando se abaixasse para recolhê-la. Suas mentes agora fervilhavam com o inusitado calor captado pelo contato de seus corpos, mas não havia caminho para expressar a sensação.
Após uma drástica reprimenda do comando do setor nos funcionários desatentos, 16 e 17 foram prontamente reconduzidos aos seus quartos, recuperando assim o tempo perdido no equívoco matinal, com a imediata antecipação da terapia áudio-visual.
- Quero ficar perto dela!
- Não me afastem dele!
- Nunca a vi antes!
- Desejo vê-lo sempre!
A única ocorrência que os mantinha próximos naquele instante, apesar de isolados nos seus aposentos, além da doce lembrança daquela impressão deliciosa, era um aparelho de televisão exibindo o mesmo vídeo. O diretor da clínica acreditava na estimulação sensorial indireta e na prescrição medicamentosa como fonte de uma reação neurológica que os libertasse da disfunção. O monitor exibia um filme obviamente romântico, em seu ponto culminante: ao crepúsculo, à beira de um lago, um casal, reclinado lado a lado, abraçava-se de forma intensa, a seguir se beijando apaixonadamente, fisionomias extasiadas.
- Deve ser isso que ele me causou!
- Aquele delicioso roçar nela...
A música crescia no encerramento e podia ser escutada nos corredores, onde num canto reservado, o enfermeiro e a encarregada causadores do indesejável encontro de 16 e 17 discutiam acaloradamente.
- Jamais me apoiou, querido. E nas horas de crise, invariavelmente, culpa a mim. Às quartas-feiras, o horário da manhã é sempre dela. Há um mês nós estabelecemos de comum acordo o cronograma. Você errou e nem comigo admite isso.
- Tudo bem, não nego... Mas se assumir o engano estou perto do olho da rua, Noelle. A melhor solução está em não mencionarmos uma divisão prévia. A desculpa da falha de comunicação na véspera livrará nossas caras. Não despedirão dois de uma mesma tacada. Existe uma carência de profissionais especializados.
- O problema é outro, já concordei com a justificativa... Não há mais diálogo algum entre nós. Nem consideração. Falamos línguas diferentes. Se alguém precisasse pagar pelo engano, seu egoísmo me sacrificaria sem pestanejar...
Culpas ou incongruências deixadas à parte, o exame de atividade cerebral realizado depois do almoço em 16 e 17 resultou alarmante. Os níveis atingiram subitamente índices acima do normal, numa freqüência inédita nos anais médicos. A quantidade de calor medida indicava um processo de cozimento mental, na ausência de melhor classificação. Os organismos do casal também registraram um preocupante aumento de temperatura, obrigando a imersão em banheira gelada.
- Qual a explicação, doutor? A probabilidade de ambos sofrerem juntos os mesmos revezes seria praticamente nula...
- Respostas... Se as tivéssemos disponíveis como imagina a Psiquiatria Clínica viraria uma ciência exata. Talvez algo maior influencie a situação. Esse caso sempre me perturbou. Como se a humanidade saltasse um passo à frente na sua evolução.
- Sua resposta soa mais mística do que científica... Em que dois indivíduos tão limitados representariam um novo e revolucionário estágio no desenvolvimento humano?
- Sua pergunta soa mais acadêmica do que jornalística. Uma manchete cheia de sensacionalismo seria mais adequada do que seu descrédito. E a exclusividade da história sempre lhe pertenceu. Conto que seja bem generoso conosco na matéria.
- Fique tranqüilo. Vou saber aproveitá-la e serei grato a vocês... O que decidiram afinal?
- Vamos separar o estranho casal e encaminhá-los ainda hoje para instituições distantes. Não posso desconsiderar o fato concreto que, na única oportunidade que estiveram perto, desencadearam dentro de si uma reação poderosa. A primeira medida para entender o significado disso constitui em mantê-los afastados, puxando-os aos níveis clínicos padrões. Desconhecemos aquilo com o que lidamos. As perspectivas podem ser anárquicas ou catastróficas. Ao entardecer já terão partido daqui e tudo se aquietará para as partes envolvidas.
- O senhor não exagera? A resposta não é menos complexa? Além disso, abriu mão de realizar um estudo único na sua área?
- Exagero é ficar encerrado dias num laboratório de testes sem retornar para casa. O meu casamento está desmoronando. Minha esposa e eu não nos falamos mais sequer nas poucas vezes que sentamos à mesa. Parece que temos uma mordaça na boca e no coração. Nos amamos e somos incapazes de externar esse afeto. Abro mão desse estudo único, como afirmou, mas não da única mulher que desejei viver.
A ordem fora energicamente transmitida nos alto falantes: os pacientes 16 e 17 deveriam ser logo preparados para uma viagem que os levaria ao distanciamento eterno e seguro. Seguiriam em ambulâncias diferentes, às 18 horas, rumo ao seu próximo destino. Aguardariam na sala de espera especial da clínica, sentados cada qual frente uma mesa. Um par de cubículos divididos por uma grade que possibilitava a visão mútua, mas não o contato físico. Os enfermeiros ainda providenciaram uma jarra e um copo feitos de metal, para evitar acidentes quando sentissem sede. Um par de canetas hidrocor e blocos de desenhar para passatempo eram de praxe, apesar de inúteis aos doentes daquela categoria.
O estado geral deles estabilizara graças a uma dose química cavalar que forçara a queda da temperatura e cujos fortes efeitos colaterais também reduziam a atividade acelerada do cérebro. Uma medida emergencial e perigosa, mas que viabilizava seu deslocamento, porque o diretor e a cúpula do estabelecimento não cogitavam o risco de perdê-los enquanto responsáveis.
No corredor, contudo, ao se cruzarem rumo à sala de espera, 16 e 17 tiveram uma reação deveras extraordinária. Arregalando os olhos em total desespero, pareceram se devorar e implorar pelo outro, grunhindo palavras que ninguém compreendera. Chegaram até a balançar os corpos trôpegos, como aspirassem se libertar, inutilmente. A própria catatonia provocada pela sedação e a inércia natural da doença minaram suas pretensões aparentes, embora fosse impensável aos internos considerar isso um desejo consciente. Eles eram incapazes de atos e iniciativas deste porte, um ponto indiscutível.
- Quero ficar com você, querida...
- Sua presença me deixa viva!
- Será que você pensa igual?
- Você entende o que sinto?
- Tem idéia desse sentimento, 17?
- Eu te adoro, 16!
Superando as adversidades do sonífero e da moléstia, 16 se lembrou, na ânsia de declarar seus sentimentos para ela, da cena do filme romântico exibido mais cedo. Num gesto assombroso, que paralisou a todos que ali circulavam, demonstrou o sucesso da terapia motora diária. Apressado pela luz baixa do crepúsculo, que indicava a vinda da hora do adeus, agarrou o copo de metal e bateu-o fortemente na madeira da mesa, deformando-a. Encheu a depressão com a água da jarra e desenhou no dedo indicador direito, com a caneta pilot, dois olhos, um nariz e uma boca, encimados por um cabelo curto. Fez o mesmo na esquerda, com exceção do adorno de uma cabeleira feminina. Encarando 17 ternamente, inclinou um dedo pintado na direção do outro, encostando-os, fazendo a simulação do longo e ardoroso beijo, às margens do lago. O largo sorriso que preencheu sua face abatida e serena enfeitou também a dela, como reflexos no espelho ao entardecer.
Aqui vamos encerrando nossa história. Poderíamos ter contado a de Romeu e Julieta, Tristão e Isolda ou Abelardo e Heloísa. No entanto, preferimos narrar a de 16 e 17, torcendo que tenham compartilhado deste prazer. Quanto aos nossos apaixonados, no cair daquela tarde, após a explosão da emoção e exaustão da mente, prosseguiram separadamente sua trajetória, afastados pela intolerância humana. E, amplamente convictos na paz de seu universo interior, sabiam que se reencontrariam inevitavelmente, fundindo-se num mundo inacessível aos que não sonham ou proíbem sonhar, numa região cuja chave de acesso é o amor assumido e a redenção obtida.
Há muito tempo eles vivem lá.
Era uma vez...

domingo, 20 de abril de 2008

O Bom Vizinho (Conto)


Todas as manhãs, exatamente às seis horas, o velho Lars descia com o saco de lixo rumo à calçada. Era uma tarefa cansativa para aquele corpo surrado. Entretanto, segundo fontes confiáveis, nunca deixou de fazê-lo durante os últimos quinze anos. Apesar da idade avançada possuía uma saúde de ferro. Desconhecia gripes ou males súbitos. Ignorava a friagem, o calor excessivo ou mesmo a atmosfera úmida. Qualquer um que tivesse o sono mais leve, ou o hábito de madrugar, ouvia diariamente aquele arrastar monótono pelo corredor e seguindo pela escada abaixo. Com o passar do tempo alguns se indagavam como aquele ancião solitário podia produzir tantas sobras, acumular tantos restos. Não que se importassem muito em descobrir hábitos do inofensivo vizinho. Apenas uma curiosidade momentânea do espírito. Igual à solução de uma charada ou o arremate em um diagrama de palavras cruzadas. Talvez para saciar inutilidades ele tivesse vivido por tantos anos.
Naquela manhã não houve sinal do pacato Lars arrastando seu fardo. Nem todos perceberam a ausência. Era domingo. A grande maioria aproveitava para se levantar bem tarde, quase na hora do almoço. Eu estava acordado porque mal conseguira pegar no sono. A noite em claro fizera-me agarrar a qualquer indício de vida ao meu redor. Sons de buzina, murmúrios distantes, discussão de amantes, lamúrias de bêbados, roedores famintos, bater de asas noturnas. As redondezas eram pródigas em oferecer ao anoitecer seu leque de variedades: movimento de trânsito, inferninhos, encontros, desencontros, bares, ratos e morcegos. O suficiente para que uma aventura terminasse em tragédia ou levasse os participantes para a cama mais próxima. Típica zona de caça, abatedouro de corpos ansiosos pelo prazer físico. Em locais assim, o sexo podia ser apenas uma isca, com o caçador levando a pior. O final da madrugada testemunhava gente enroscada terminando uma trepada num canto escuro. Ou cadáveres torcidos que jamais iriam transar novamente, aliviados das suas posses ao invés das roupas. Tudo assistido por uma fauna noturna inusitada. Bicho homem e animais nojentos de toda espécie. Um zoológico aberto em todas as direções. Cada predador lutando pela presa desejada.
Lugar perfeito para a cabeça de porco onde me enfurnara. Devem ter ouvido falar de histórias inacreditáveis sobre as manias de ricos excêntricos. Garanto-lhes que às relativas aos pobres excêntricos são incomparavelmente mais bizarras. O proprietário da construção, que ocupava o quinto andar, vivia envolvido em práticas místicas e crenças esotéricas. Estas lhe trouxeram confusão de idéias e caos financeiro, pois empregava o que auferia dos aluguéis em figas, búzios, baralhos de tarô, incensos, velas, cristais, materiais de magia em geral e livros de ocultismo. Apresentava-se como um iniciado em doutrinas secretas, percebendo cruciais indícios divinos nos fatos corriqueiros do cotidiano. Pretendia interpretar fielmente sinais e nos perseguia inquirindo sobre aquilo que tínhamos sonhado na véspera. Outros residentes completavam o leque, cada qual com sua peculiaridade. Havia a soprano do terceiro andar, incapaz de partir um cálice com seus agudos, porém uma diva absoluta na destruição dos tímpanos alheios. No mesmo pavimento, um completo fanático por educação física procurava modelar o corpo incessantemente, maltratando o piso com suas piruetas. Acima, na unidade contígua ao do velhinho, um casal de homossexuais que ganhava a vida como drag-queens numa boate fajuta do bairro, berravam repetidamente que nunca mais aceitariam dividir o palco fazendo juntas o mesmo número. E assim por diante. O curioso é que todas essas figuras tornavam-se identificáveis pelo som que produziam, pelo vestígio sonoro ou barulho que transmitiam regularmente a despeito da distância, ultrapassando paredes, portas e andares.
Não pareciam mesmo gente de verdade. Lembravam personagens de antigos e batidos programas humorísticos. Aqueles tipos clichês, tradicionais, que arrancam gargalhadas fáceis repetindo anedotas similares. Talvez não devesse ser tão rigoroso ao julgá-los, pois não sabia se me enxergavam igualmente. O nascer do sol vinha se tornando bastante constrangedor, um incômodo que tirava qualquer capacidade de bom raciocínio ou julgamento. Os bons vizinhos de cada dia não tinham culpa da dor que a aurora proporcionava. Seus ruídos, surrados ou originais, vinham assim me mantendo vivo, alimentavam de algum modo meu espírito.
Existiam ainda tipos mais assustadores: aqueles sem particularidade alguma, desprovidos de loucura ou desequilíbrio. Não conseguia distinguir um do outro, só produziam silêncio e mesmice. Desfilavam suas fisionomias anêmicas e despojadas de vivacidade sob absoluta inexpressividade. Deviam ser gente boa num certo nível. Mas não para mim. Eram incapazes de aguçar meus sentidos. Intercalavam-se aos quartos vazios em igual quantidade. No início da noite já estavam recolhidos nos seus, escondendo-se da própria sombra. Apagavam a luz, como já haviam desligado a si mesmos. O clique do interruptor valia como uma despedida surda, um estalido solitário. Felizmente, outros ali colaboravam para a minha vigília.
Assim, aguardando o curso natural dos ruídos esperei a contribuição de Lars. Um minuto depois das seis, já sabia que ela não viria. O velhote tinha uma pontualidade britânica e assombrosa. Conservava uma disciplina espartana. Não se deixava ver a troco de nada, era reservado em excesso. Sumia a maior parte do dia fazendo sabe-se lá o que. O quarto permanecia em silêncio absoluto. Portanto saía de casa, embora ninguém o visse partir. À noite, quando vez ou outra se cruzava com ele no corredor ou no saguão, esboçava um sorriso simpático e dirigia algumas poucas palavras de cortesia. Muito comedido e tímido. Todavia confiável, afável. Seus gestos estudados denunciavam a tentativa de autocontrole acima de tudo. Um recurso de camuflagem. De resultado infrutífero. Transmitia uma mágoa íntima, um perceptível desconforto, sob a proteção de uma barreira invisível que repelia qualquer um além do estágio das amenidades. No mais, nada que chamasse atenção. Trajes simples, leveza no andar, uma absoluta falta de pressa no semblante. Uma criatura de porte médio e idade avançada, o que tornava seu esforço cotidiano de puxar a sacola de lixo pelo longo corredor e descê-la três lances até a portaria, algo digno de menção.
Meu jeito era completamente diferente. Displicente, deixava o lixo se acumulando para poupar viagens. Amontoava a pia de latas usadas e garrafas descartáveis. A pequena lixeira jogada ao lado do fogareiro abarrotava-se de caixas de papelão, restos de alimentos e plásticos amarrotados. Pura preguiça. Minha energia se encontrava crítica ao final do dia. E de manhã a última coisa que me preocupava a cabeça seria a limpeza do ambiente. Assim, empurrava aquilo sempre com a barriga. Tocava como podia até o momento de tomar vergonha. Reservava a rigor os domingos para desempenhar a tarefa. Como dormira mal certamente adiaria essa obrigação. Talvez deixasse para amanhã. Ou depois. Ou no domingo seguinte. Entretanto, não se tratava realmente de uma prioridade. Quando fosse possível acabaria acontecendo e tudo então recomeçaria.
A coisa estaria ainda muito pior se me alimentasse com regularidade. Porém meu relógio biológico andava todo desarranjado. Não por viver como um solteirão convicto ou um homem solitário. O cheiro e o gosto da comida vinham me deixando enjoado, indiferente. Sentia a boca pastosa, pegajosa, sem mencionar que trocava a noite pelo dia seguidamente. Meus dentes andavam sensíveis, as gengivas latejavam e a penúria me impedia de procurar tratamento. Nas horas avançadas ficava alerta, sentia-me cheio de vitalidade, embora uma estranha compulsão de procurar algo se fizesse sempre presente. Assim, naturalmente, detectava os ruídos de qualquer categoria ao redor.
As batidas na porta forçaram-me a levantar. Estava vestido igual na véspera. Não havia roupa a trocar mesmo. As roupas usadas, suadas e amassadas acumulavam-se em volta da cama, também ansiando por sua vez de receber minha atenção. Além do mais, deitara do jeito que chegara da rua. Não me passou pela cabeça que fosse estranho alguém chamar tão cedo. O fato dissolvia a monotonia.
- Ah, que bom que não o acordei! Já está até vestido. Não sei se você percebeu. O velhinho não desceu com o lixo hoje. Será que adoeceu? Tadinho!
Ela nunca cogitou que eu podia estar dormindo ou descansando com a intenção de espantar uma tremenda enxaqueca. Violar a vida alheia era a atitude mais normal do mundo. Sua gordura enchia os olhos. Balançava o corpanzil como uma sanfona. Não parava quieta. Ia da esquerda para a direita, voltava, deixava qualquer sujeito enjoado. Costumava ser precavida na sua gula. Ao menos, não filava comida alheia. Trazia consigo um volumoso pedaço de sanduíche, que felizmente nem pensou em oferecer. O bolso do roupão escondia o que parecia um grande pacote de biscoitos. Acabou de mastigar outro naco e recomeçou logo suas considerações.
- Ele anda tão pálido. Na certa não se alimenta direito. Já ofereci duas ou três vezes de lhe fazer um lanche e sempre recusou. Um homem solitário, na idade dele, às vezes se atrapalha com as necessidades. Vira uma criança indefesa. Os parentes, normalmente, pouco ligam. Restam os bons vizinhos, os de coração.
Entrou sem qualquer cerimônia. Abriu toda afoita o invólucro das bolachas já bem instalada na única cadeira livre. Devorou três sem respirar e só aí me estendeu o pacote. Considerava que o biscoito era o passaporte para me invadir sem exibir o mínimo constrangimento. Recusei a oferta com um gesto brusco e sentei numa cadeira onde repousavam jornais e revistas antigos. Se ela pedisse algo líquido para acompanhar a comilança perderia seu valiosíssimo tempo. A geladeira andava tão vazia quanto à embalagem dela ia se tornando.
- Minha filha, por exemplo... A morena alta que despenca aqui de dois em dois meses. Sim, porque aquilo não é visita. É um acidente de percurso. Acha que ela se preocupa como eu vivo entre uma vinda e outra?
- Sua filha parece ser uma boa moça, senhora. Atualmente é difícil dispor de uma brecha nos compromissos. Todos ajeitam as coisas como podem.
- Não estou me queixando da vida, rapaz. Pelo menos alguém ainda me procura ou bate na minha porta. Ao contrário do que ocorre com o velho Lars. Vocês jovens acham isso bobagem, claro. Utilizam a solidão como parte do charme.
Contribuiu para a urgência de uma faxina sacudindo os farelos da roupa e deixando-os ir ao chão. Nem se preocupou em recolher a sujeira antes ou depois. A quitinete era uma bagunça total e seria ridículo pretender protestar. Revirei os olhos para o teto, disparado a parte mais limpa do cômodo. Minha visão dorminhoca de raios-X esforçou-se por penetrar nas vigas e no concreto localizando Lars em seu pequeno mundo, sem sucesso. Ela aguçara minha curiosidade, porém a sonolência se aproximava rapidamente e a disposição estava comprometida. Não chegava a enxergar urgência alguma na novidade surpreendente. Aquele ancião tinha o direito e o dever de uma única vez evitar se repetir, mormente em tamanha banalidade.
- Ora, é apenas um velhinho inofensivo. A gente se acostuma com eles. Fazem parte do cenário. Nas poucas oportunidades que esbarrei nele aqui no prédio o achei muito legal. Nunca deixou de sorrir. No início achei que era afetado. Mas na verdade revelava uma certa complacência. Como se entendesse a gente e os nossos problemas imediatamente. Resultado da experiência. Deve ter vivido e visto um bocado de coisa. A senhora age com humanidade ao demonstrar sua preocupação. Não creio ter acontecido nada demais. Encheu-se da rotina e decidiu jogá-la para o alto. Tem até esse dever, como todo mortal. Se pudesse faria como ele.
A gorducha suspirou. Satisfeita por devorar a guloseima encarava a realidade cheia de expectativa e compreensão. Deixara de balançar o corpo, aquietara-se. Olhou-me docemente, buscando pelas palavras certas.
- Vive aqui somente há dois anos, Zack. Eu estou ao lado deve ter uma década. Só perco para o senhorio e o velho Lars. Ele chegou aqui faz quinze anos. O doutor me contou a estranheza que sentiu ao vê-lo a primeira vez. De como uma nuvem de melancolia parecia cercá-lo. Tristeza nos gestos, na atitude, como alguém fadado a um destino ingrato. Pouquíssima bagagem, uns apetrechos muito dos esquisitos e mistério de sobra. Tipo calado, apesar de educado e cortês. Nunca se soube do passado dele. Onde cresceu ou viveu. Se foi casado ou teve filhos. Não recebe visitas jamais. Ninguém pergunta sobre ele ou o procura. Como se houvesse caído sobre nós, remetido de um lugar longínquo ou de uma época distante. Pena...
A descrição captara minha atenção. Ela falava com genuíno interesse e uma pontinha de paixão sutil. Ou vice-e-versa. Acima de tudo, aquela robusta e insaciável senhora mastigava também pormenores da vida alheia e conseguira abrir meu apetite. Imaginei rapidamente possíveis aspectos da biografia do velhote. Um ricaço arruinado que conservara a educação de berço e procurava escondê-la para não revelar sua trágica e definitiva derrocada... Um cirurgião habilidoso que vacilara fatalmente numa mesa de operação e acabara expulso da profissão, cujas finas luvas ocultando as suas mãos eram uma amarga reminiscência... Um criminoso, um antigo condenado da justiça que quitara sua longa pena e padecia agora do contato perdido com o mundo... Ora, o terreno era fértil às especulações. Estava diante de um perdigueiro de respeito, que me iniciara na arte de farejar as coisas dos outros.
- O que se pode fazer, dona?
- Pelo que passou, nada. Hoje nos resta certificar se ele precisa de ajuda. Um comportamento de anos e anos não é interrompido sem um bom motivo. O silêncio ao amanhecer foi estarrecedor. Contava com aquele ruído e ele não veio.
Menos mal, eu não era o único maníaco no prédio.
- Sugere batermos na porta dele? Na cara e na coragem?
- O máximo que pode acontecer, menino, é sermos escorraçados. Pelo menos saberemos que ele está vivo. Teremos cumprido nossa parte. Agido como vizinhos de verdade, em solidariedade. Daqueles que não se transformaram em números numa porta.
- Simpatizo com o velhote. Só acho delicado invadir sua privacidade.
- Invasão é uma palavra um pouco forte, Zack. Não iremos forçar a entrada. Tentaremos estabelecer contato. Obter um sinal de vida dele. Checar se está bem ou precisa de auxílio. Ele não é nenhum bicho-papão. Compreenderá a boa intenção. Ficará lisonjeado, até mesmo aliviado, ao constatar que alguém pensa nele. Demonstrar preocupação e atenção é outra maneira de transmitir amor.
Concordei logo com a cabeça. Não havia o que retrucar. A senhora Marino passava o dia se empanturrando de guloseimas. Todo aquele açúcar cristalizara em seu organismo induzindo uma viúva de meia-idade às boas ações. Ela era uma pessoa carente, desajeitada e sem desconfiômetro. Batia na porta nos horários impróprios, arquitetava missões de resgate a velhinhos solitários, zelava pela conservação do lugar nas reuniões de condomínio. Acumulara um vasto catálogo de informações sobre os moradores, fazendo sabe-se lá que uso prático de tanta baboseira e insignificância.
No corredor, tropeçamos de imediato no terceiro heróico morador do nosso andar, o jovem Ericsson. Vinha de uma óbvia noitada de farra, encharcado do aroma de perfume barato. Trôpego, aproveitou para apoiar-se em mim na tentativa de recompor-se. A fisionomia grave da senhora Marino fulminava-o com uma censura muda. Mas o rapaz era gente boa. Esperto e inofensivo. Trabalhava como técnico em um laboratório de análises químicas no Centro. Um tipo bastante observador, arguto, em função da profissão. Já o vira especular sobre indícios que passariam em branco à maioria. Sabia juntar peças e costurar fios soltos. Naquele ambiente sórdido, desprovido de charme, contribuía com uma nota de sofisticação através do raciocínio e da lógica. Já resolvera os mais prosaicos enigmas do cotidiano com uma clarividência capaz de tirar nosso senhorio de seu ponto de equilíbrio. Certa vez encontrara, sem se deslocar, a chave perdida do painel de força, reconstituindo apenas os passos do proprietário desde a hora do café da manhã. Vira seus dedos gordos, lambuzados de margarina, fartamente impregnados com uma espécie de farelo escuro. Ao saber que este detestava pão preto, concluiu ser aquilo na verdade limalha de ferro e que havia guardado por acidente a chave no pote de manteiga. Por essas e outras, antes que ela abrisse a boca para denunciar os malefícios da boêmia desregrada, calou-a com um comentário típico de sua percepção sobrenatural.
- O saco de lixo do velhote não estava na calçada. Adoeceu?
- É o que nós pretendemos verificar, mocinho – retrucou friamente a dona. – Saiba que existem inúmeras maneiras de se adoecer. Uma vida pouco regrada, devassidão constante e tendências notívagas são fórmulas para comprometer a saúde e destruir o corpo. Muito me admira que desconheça que não só de badalações vive um homem.
- Assino embaixo, senhora. Meus pais sempre diziam isso.
- Pelo jeito tapou os ouvidos sempre que falavam.
- Não! As orelhas estavam desimpedidas. A música é que tocava no volume máximo e não dava a menor chance.
- Não gosto de deboches, rapaz. Posso passar sem eles. O senhor continua com o mau hábito de tocar sua música bem alta, aliás. Nos horários mais impróprios. Dificulta que seus vizinhos descansem espalhando aqueles grunhidos típicos de roqueiros alcoolizados e drogados. Ninguém faz questão de compartilhar dos seus gostos duvidosos. Use um fone de ouvido ou toque seu som mais baixo.
- Prometo. Se a madame garantir também que agora assistirá às suas fitinhas pornográficas sem fazer tanto estardalhaço. Minha sobrinha adolescente me visitou na semana passada e foi constrangedor. Os gemidos foram de ensurdecer. Ninguém se excita com tal sinfonia. Use uma mordaça ou escolha vídeos infantis.
O cara pegou pesado. Fiquei surpreso com a aspereza. Ele trouxera à tona um fato verídico: a mulher costumava mesmo se divertir fazendo aquilo. Nos horários que lhe apetecesse, com freqüência e intensidade. Curioso como tudo hoje continuava se referindo aos sons peculiares: agora acrescentávamos as melodias estrondosas e os rugidos eróticos na lista. Qual seria o meu, afinal? Ou me enquadraria na asséptica categoria dos seres silenciosos, livre de classificação? Ora, nada me tornava tão especial no pardieiro. Cabia aos demais identificar meu ruído.
A senhora Marino encarou-o com uma expressão de raiva contida. Não pretendeu negar a verdade, pois sabia que não havia como escondê-la. Talvez incrementasse a intensidade de suas fantasias sexuais que os vizinhos machos participassem do seu pequeno show. O que ocorria na verdade. Impossível não tomar conhecimento de tanta animação solitária. Duas vezes me masturbara acompanhando a sessão à distância. Ericsson certamente já entrara nessa também. Porém era uma particularidade da dona e ela pretendia que permanecesse assim. O silêncio prosseguiu constrangedor num amanhecer tomado de barulhos e seus significados. Fiquei recolhido, aguardando um som salvador.
- Reunião matinal de condomínio?
O guru soara o gongo. Nosso senhorio tinha a notável capacidade de materializar-se num passe de mágica, como que vindo do nada. Esta qualidade sim constituía um real prodígio esotérico, ao contrário das baboseiras que manipulava ou pretendia controlar. Chegara trajando sua longa túnica branca de dormir. Dizia ser um paramento para iniciados em alta magia, um complemento de seu espírito liberto ao percorrer as esferas superiores do sono. Ele sesteava um bocado. O estrondo de seu ronco nas primeiras horas da noite invadia todos os cantos do pulgueiro. Sua trajetória pelo nirvana custava à sanidade dos que ansiavam por silêncio e paz.
Era irônica a referência ao encontro de moradores. Não havia mais algum ali. Pagava-se barato por nada. Ou caro por tudo. Dependia da postura otimista ou pessimista de cada um. As paredes mulambentas viviam carecas e há muito não recebiam um tônico revigorante. A umidade nas estruturas solitárias exalava o cheiro do mofo e se casava feliz com a poeira dos corredores abandonados à própria sorte. A grana que entrava era totalmente destinada às práticas cretinas do proprietário e bancava sua folga de cochilar horas a fio. Corrigindo, para não melindrá-lo: a sua crescente percepção dos registros cósmicos e o desenvolvimento dos seus poderes latentes.
- Se existisse ainda tal tipo de coisa por aqui, senhor...
- Kalhani, senhora Marino. Simplesmente Kalhani. Nem senhor, nem doutor. Apenas meu nome de humilde postulante na congregação do Crepúsculo Reluzente. A sagrada e milenar ordem dos Cavaleiros da Luminosidade Oriental. A seu serviço.
- Tudo bem... Esse troço aí, que seja... Mas o prédio está um horror. Imundo dentro, caquético fora. Vai ver é a razão pela qual minha filha nem aparece mais. Trata-se de uma moça fina, bem casada, desacostumada da falta de limpeza. Além de habitado por tipos que ignoram a palavra respeito. Que ofendem sem cerimônia.
- Ora, senhora – interrompeu Ericsson. – Pode ser que sua filha não a visite pela imundície da moradia. Ou pelo refinamento que a posse de um marido rico trouxe para a vida tediosa dela. No entanto, a minha sobrinha foi afugentada por outro tipo de sujeira. Da que sai da boca e da garganta de madames incontroláveis.
- Calma, calma – apaziguou Kalhani, enquanto os dois remetiam-se mutuamente para os quintos dos infernos. – Saudaram o sol apenas para serem agressivos um com o outro? Absorvam a luz, irmãos, e purifiquem suas intenções.
- A questão não é a velocidade da luz, Kalhani – quebrei meu voto de silêncio, finalmente. – O problema é a velocidade do som, o modo como os ruídos fazem parte de nosso cotidiano. E o incômodo que sua ausência provoca.
- Compreendo, Zack. A falta do velho Lars e seu arrastar monótono.
Antes de confirmar, ele me interrompeu com um gesto superior.
- Não se impressionem. Nada de adivinhações. Percebi tudo através da aura coletiva de vocês. Existe uma lamentável carga contínua de desequilíbrio no ar. Uma sistemática que busco aperfeiçoar em todos os momentos, acima das convenções.
- Que cara de pau! – fulminou a gorducha, que parecia ainda maior quando estava enfurecida. – Então todo mundo agora é clarividente! Provavelmente fui a primeira pessoa a dar pelo fato. Depois, o que paira na atmosfera desse seu estabelecimento é o cheiro constante de bolor.
- Por favor, senhora Marino – implorou Kalhani, pedindo clemência com as mãos. – Vamos focar nossa energia naquilo que realmente importa. Suas queixas são mais apropriadas para as reuniões de condomínio. Estamos todos muito preocupados com o senhor Lars. Perdemos tempo discutindo enquanto ele pode precisar de ajuda. Estou com a chave mestra. Por que não me acompanham?
Ninguém se opôs à sugestão do guru e a missão de salvamento de um velhinho indefeso começou após tantas discussões inúteis. O grupo avançou em algazarra, cada qual abordando o assunto que mais lhe interessava. Como nenhum dos heróis de araque abriu mão de suas preferências, todos acabaram resmungando às paredes surdas. A senhora Marino e o jovem Ericsson acabaram por voltar à discussão de minutos antes. Kalhani entoou um mantra como forma de inspirar nossas melhores intenções. O barulho terminou atraindo alguns atrasados recalcitrantes. A passagem sob alarido do bloco dos bons samaritanos pelo terceiro andar adicionou ao bravo grupo Larissa, a soprano, hoje inteiramente afônica, segundo explicou por gestos e grunhidos. Quase de imediato, Norton, o mestre em modelagem física, apareceu capengando e reclamando com seu vozeirão que fora acordado à revelia. Suas explicações adicionais e confusas sobre “seu estiramento agudo do músculo adutor da coxa direita”, devem ter produzido eco suficiente para colocar à espera as esfuziantes She e Female, a dupla de travecas, no alto da escada do quarto andar. Não bastasse, apareceu ainda um dos silenciosos, típico espectro sem eira nem beira, nome ou sobrenome, seguindo-nos como um zumbi. O exemplo perfeito do autômato seguindo sinais vitais que ele próprio não possuía.
- Não precisa também esta tropa toda... – iniciou a senhora Marino no tom mais professoral possível.
- Só faltava mesmo essa! – protestou She, assessorada por Female. – Estamos no nosso andar e o velhinho é nosso vizinho. Você veio lá de baixo se meter em assuntos fora da sua alçada, querida.
A réplica indignada dela foi abafada pelos grunhidos inúteis de Larissa tentando explicar sua rouquidão. Norton, solidário, sem diminuir um mínimo o tom habitual, usava sua contusão como consolo e exemplo “do que sofre um profissional dedicado na tentativa de atingir à perfeição”. Por outro lado, buscando serenar nossos humores, Kalhani recrudescia a intensidade do seu mantra. Ericsson, conformado, me olhou de relance sinalizando o zumbi, que assistia tudo com o olhar vidrado, perdido no meio à palidez do rosto. O contraponto ideal àquela agitação matinal desmedida.
- Porra, colega... Eu passo a noite na gandaia, mas você que parece ter se esbaldado a valer. Já vi que dormir cedo não faz tão bem assim como dizem!
Caímos no riso ajudando a aumentar a confusão. O sujeito limitou-se a concordar timidamente, balançando os ombros arriados de modo conformado, pouco ligando se aquilo era bom ou ruim, engraçado ou de mau gosto. Permaneceu apático, ao mesmo tempo em que o barulho diminuía e a toada mística chegava ao fim.
- Acho que agora devemos tratar do que viemos fazer, amigos. Muito reconfortante saber que existe tamanha generosidade nesta pequena comunidade. Além do mais, acredito que o velho e cortês Lars precisa realmente de ajuda. Fizemos algazarra para acordar um batalhão e nenhum sinal dele. Para quem sempre se levanta cedo, esta manhã dorme como uma pedra. Infelizmente, temo pelo pior. Vamos logo com isso. Nosso bom vizinho conta conosco.
O grupo se aproximou da porta em completo silêncio, procurando demonstrar uma seriedade que não possuía. Havia uma preocupação comum que, no entanto, era incapaz de superar a insegurança e a expectativa. Eu havia dito no início que o sentimento dominante era de desconforto, a partir do qual a curiosidade surgia com toda sua morbidez. Estivesse bem ou mal, o destino do velhinho não mudaria a existência de ninguém, apenas exercitaria um sentido efêmero e ligeiro de compaixão, mesmo que todos simulassem sentir sua perda profundamente. Um bando de ratinhos procurava seu pedaço de queijo. Puta merda, pensei, me deixei arrastar na correnteza da banalidade. Engrossei o coro da emoção vazia. Somente o Zumbi apresentava coerência naquele exército perdido. Arrastava-se por instinto.
Kalhani retirou a chave mestra do bolso interno da túnica. Antes de girá-la na fechadura, bateu de leve uma, duas, três vezes. Colou o ouvido à porta e aguardou alguns segundos. Nenhuma resposta ou sinal de movimento lá dentro. Repetiu o gesto colocando mais força e rapidez, chamando-o pelo nome. Nada. Escutávamos apenas nossa respiração, misturada com uma ou outra palavra sussurrada. A matilha agrupada fingia estudar o próximo passo, exibindo um bom senso ou conhecimento que não dispunha. Sob o signo inatacável da benevolência e do amor ao próximo, éramos um bando de cruzados esperando pelas decisões de um líder anacrônico.
A senhora Marino aproveitou o impasse para roçar ao máximo o corpo musculoso e rijo de Norton. O jovem Ericsson fez igual com Larissa, aproveitando o pouco espaço do corredor e o ajuntamento. She e Female se agarraram contritas, acariciando-se mutuamente, exibindo em público o que normalmente reservavam para sua intimidade. O Zumbi vibrava o corpo a cada pancada inútil do senhorio na porta, parecendo prestes a se desintegrar. Era um camarada mesmo estranho. Não recordava tê-lo visto muitas vezes, se é que o vi alguma. Começava a detestar tudo aquilo, podia estar enfim dormindo após a noite em claro. Não adiantava qualquer arrependimento neste momento. Também tinha meu lado mórbido e estava curioso.
Desistindo de chamar a atenção de quem não sabia ao certo morto ou vivo, Kalhani, decidido, girou a gazua na fechadura e nos descortinou os domínios pessoais do velho Lars. A turma entrou afoita, meio que tropeçando uns sobre os outros, cessando abruptamente a bolinação desenfreada, todos indóceis na intenção de descobrir o que ocorria.
O aposento nada apresentava de excepcional. As cortinas grossas, cerradas com precisão, filtravam praticamente toda a luz, reforçadas por um forro de plástico negro. Um lustre rachado e empoeirado, pendendo inclinado do teto por uma corrente retorcida, iluminava com limitações o minúsculo espaço. O ambiente era desagradável e soturno, nada condizente com a impressão simpática que o velhinho transmitia. O ar pesado indicava a necessidade rápida de renovação. Havia uma tênue camada de poeira no chão e fomos imprimindo involuntariamente nossas pegadas no assoalho. Lembrávamos aqueles antigos exploradores, tateando com cuidado em terreno desconhecido.
As dimensões eram iguais ao do meu quarto, dois pavimentos abaixo. À esquerda, havia uma geladeira entreaberta, desligada e, segundo percebi, vazia. Na pequena pia em frente, restos do que pareciam ser montes de terra úmida ou argila. Vários sacos plásticos para retirar lixo, do tipo que todos se acostumaram a vê-lo carregar até a véspera, amontoavam-se largados ou amassados. Na metade do caminho para a cama, uma mesa riscada, colorida pelos restos da mesma argila, amparava bandejas de plástico, pequenas pás e instrumentos de metal diversos. Nunca vira aquele tipo de coisa, sequer tinha idéia de sua utilidade. No canto, à direita, mais sacolas, estas inteiramente abarrotadas, estufadas, fechadas com um nó duplo e cuidadoso, guardando sabe-se lá o que. Ao lado, estirado, repousava em meio aos lençóis rotos o velho Lars, exibindo o branco dos olhos, boca entreaberta exalando mau hálito, pele sem viço, amarelecida, cabelos desgrenhados e oleosos.
- Meu Deus, meu Deus – começou a soluçar a senhora Marino. – Chegamos tarde, o pobre homem está morto. Esperamos muito tempo para vir...
Esquecendo a recente altercação do corredor, as drags procuraram consolá-la, amparando-a lado a lado. Female retirou da pequena bolsa a tiracolo, da qual nunca se separava, um lenço rendado que ofereceu gentilmente a senhora Marino. O restante cercou o leito cautelosamente, procurando certificar-se da sorte de Lars.
Kalhani reclinou-se sobre ele e procurou o pulso. Puxou um braço esquálido e cheio de feridas, enterrado na roupa de cama sebosa e embaralhada, tentando distinguir algum vestígio de atividade vital naquele organismo enfraquecido. A sensação, enquanto ele variava a posição do toque, era que qualquer pressão demasiada iria esfarelar o corpo depauperado dele. Parecia preste a rachar, decompor-se em mil pedaços, um arremedo humano flagelado por vicissitudes que lhe arrasavam sem piedade. O cheiro de morte e doença o envolvia num abraço apertado, apaixonado.
- A pulsação está bem fraca, mas ainda vive! – anunciou exultante.
Felizmente todos tiveram o bom senso de evitar palmas ou gritos de comemoração. Ficava óbvio que seu estado de saúde era gravíssimo. Mais do que inspirar cuidados ele talvez precisasse de um autêntico milagre para sobreviver. Uma série de tremores sacudia-lhe o corpo periodicamente, enquanto balbuciava palavras incompreensíveis. Uma espuma esbranquiçada brotava viscosa do canto dos lábios anêmicos, escorrendo vagarosamente pela face rachada, reforçando a sensação de abandono. As pernas se cruzavam lânguidas numa atitude defensiva, como que protegendo num reflexo desesperado os últimos sinais vitais ainda disponíveis. Sim, estava vivo, entretanto tudo seria uma questão de tempo. Ou mesmo sequer disso.
- Temos de chamar o pronto-socorro – sentenciou Kalhani.
- Que esperança! – replicou Ericsson. – Aqui, nesta parte da cidade? E logo num domingo? Até eles chegarem, isso se vierem, o velhinho já embatucou.
- Nós precisamos fazer alguma coisa por ele...
- Vamos com isso, pessoal! – recuperou-se a senhora Marino. – Um de nós vai ligando para a emergência do hospital. Os outros ficam aqui, ajudando da forma que puderem. O importante é agirmos e não largarmos o velho de mão.
O senhorio se prontificou a descer e fazer a chamada telefônica, disposto a exigir um urgente atendimento. Ericsson começou a fuçar em volta atentamente, soltando diversas interjeições de surpresa. Larissa providenciou um pano umedecido para refrescar a testa de Lars, enquanto as drags se esmeravam em arrumar-lhe a cama, ajeitando o travesseiro sob sua cabeleira grisalha. Aproximei-me de Norton e da senhora Marino, que cochichavam.
- Nunca pensei que ele vivesse nessas condições – murmurou ela. – Ele parecia tão distinto, organizado. O quarto é sujo, mal cuidado, não tem nada...
- Ora, ele pode estar na dureza – ponderou Norton.
- Falta de dinheiro não serve como desculpa, querido - sentenciou, colocando o braço parrudo em torno dos seus ombros largos. - Nenhum de nós é abonado, porém sempre se procura fazer o melhor. Minha aposentadoria é uma piada, o que não impede que o lugar onde moro seja decente. Por estas e outras vivo me aborrecendo nas reuniões de condomínio. Um mínimo de arrumação e de limpeza nunca foi artigo de luxo. Pelo visto sou a única que pensa assim aqui.
Era engraçado escutá-la dizer tanto, e com tanta propriedade, após o exército de farelos que havia espalhado no meu quarto, uma hora antes. Evitei a temeridade de apontar a contradição entre teoria e prática. Porque ela observara certas incongruências acertadamente. A imagem que todos faziam de Lars era bem outra. Seu porte nobre e maneiras dignas desabavam ante a visão do estado das coisas ali. O resultado evidente do desleixo não podia ser produto de um único dia de mal estar ou enfermidade. Tudo fora largado havia tempo, manifestando falta de esmero.
Aliás, isso tornava o quadro ainda mais esquisito, alçando Lars como pivô de uma polêmica dominical. Se o velhinho descia sempre com seu lixo, numa rotina diária, meticulosa e inalterável, o que carregava dentro dos sacolões afinal? A poeira se acumulava por todos os cantos, misturada com a estranha terra avermelhada. A geladeira, conforme informava o atento Ericsson, também estava imunda, mas não com vestígios de comida ou mantimentos. Muito menos encontrara pratos, copos ou talheres nos armários abaixo da pia, com exceção dos vários suportes plásticos e apetrechos similares aos que repousavam sobre a mesa encardida. Em suma, nada indicava que se alimentasse, nem que fizesse uma faxina regular em seu cubículo. Contestando tais deduções óbvias, opunha-se o tradicional desfile matinal com o qual todos se habituaram desde que vieram morar no lugar. Ele parecera até hoje asseado, cuidadoso e metódico. No dia que provavelmente seria seu derradeiro neste mundo, a imagem desmoronava de forma trágica e definitiva.
- Meu Deus... Fico imaginando se vou ter um fim igual. Um velho esquecido, sem ninguém, deixado no meio da sujeira, amparado por desconhecidos...
Ericsson abandonara suas conjecturas, exprimindo um pensamento que acometera todos perante o panorama que assistíamos. Coloquei a mão sobre seu ombro procurando animá-lo. Talvez não passasse de um clima de ressaca, embora a própria senhora Marino, seu desafeto, se emocionasse com o tom condoído das suas palavras. Antes que ela pudesse consolá-lo, Larissa se aproximou ansiosa, puxando Norton pelo braço, disparando uma saraivada de grunhidos inteiramente absurdos.
- Baixa o timbre, menina! – implorou o atleta esmagado pelo nível insuportável dos grasnados. – Te acalma, tenta explicar por gestos, sei lá, cacete...
Ela respirou conformada e, lembrando que uma imagem vale mais do que mil palavras, desenrolou um papel grosso, encorpado, um pouco amarelado, antes sinalizando tê-lo encontrado largado ao lado da cama, enquanto se ajoelhara aplicando outra compressa molhada na fronte do velho. Ericsson de imediato despertou do seu torpor de misericórdia, revelando um brilho febril no olhar ao lançar-se sobre o curioso achado. Não foi o único enfeitiçado, pois todos ao redor estavam envolvidos no clima de mistério.
Para mim aquilo pouco significava. Tratava-se de um mero desenho, um tipo de esboço, feito toscamente a lápis preto ou carvão. Não era extraordinário, mas não chegava a ser ruim. As linhas traçadas com certa firmeza e orientação revelavam um jovem rosto de mulher, de origem nitidamente européia. Um tipo de qualquer forma estranho e exótico, uma espécie de beleza antiga, perdida no tempo. Os olhos grandes e arredondados saltavam em magnetismo, dominando o nariz minúsculo, a boca delgada e bem definida, o queixo ovalado e delicado, emoldurados por um cabelo negro preso na altura da nuca. O único enfeite era um diadema cingindo-lhe o alto da testa estreita e um discreto colar de contas em torno do pescoço esbelto e elegante. Tudo exercia grande fascínio e sedução, apesar de parecer datado e fora de época.
Agarrando o desenho enquanto o esticava totalmente sobre a mesa, Ericsson passou levemente o polegar e o indicador sobre o papel. Percorreu-o de canto a canto, sentindo sua textura, procurando eliminar alguns vincos, examinando tudo com a máxima atenção. Parava em determinados pontos realizando seguidos movimentos circulares, sorrindo maroto de satisfação sabe-se lá o porquê. De vez em quando erguia a mão, cheirando e verificando a ponta dos dedos. A esta altura, o poder hipnótico da figura e dos gestos ritmados dele capturara o grupo, exceto She e Female que prosseguiam remexendo na roupa de cama sem jamais encontrarem a disposição ideal. Até o Zumbi, que desde nossa chegada se mantivera à parte, guardando em reverência o leito à distância, aproximou-se e ganhou vida na presença da magnética imagem. As duas mulheres tentaram não dar o braço a torcer, escondendo infrutiferamente uma inveja íntima e profunda. Os homens tiveram a respiração alterada, escravizados pelo par de olhos elétricos e linhas sensuais que pulavam da figura, sublimando seu desejo como fosse possível.
Ericsson, que jamais negligenciaria sua condição de detetive amador, fugiu do encantamento e se aproximou resoluto do velho, erguendo seu braço fino e anêmico, embora não com intenções de verificar-lhe a pulsação. Examinou a mão descarnada e sardenta de alto a baixo, trazendo os dedos para bem perto da vista.
Pareceu bastante interessado nas unhas. Mesmo à distância, não havia como deixar de reparar que eram mal cuidadas. Estavam roídas e manchadas, tomadas por uma espécie de nódoa escura. Tentando enxergar seu interior, Ericsson puxou o quanto pôde a pele no topo, procurando expor ao máximo a fresta natural das cutículas. Uma expressão de triunfo iluminou seu rosto, enquanto se dirigia ansioso aos grandes sacos de lixo atados com nós reforçados perto da cama. Desamarrou o laço duplo e foi enfiando a mão em seu interior, como se já soubesse exatamente que tipo de coisa descobriria ali. Continuou a fuçar sem hesitar, até que demonstrou achar aquilo que esperava. Sem perder a pose, ergueu lentamente um nariz cor de barro em tamanho normal e algo que lembrava uma orelha humana, igualmente modelada. O conteúdo bizarro, se não fosse em argila, indicaria os despojos da atividade escusa de um sádico serial killer escondendo as provas de sua crueldade insana. Contudo a solução não seria assim tão simples. Os poucos pedaços mal eram tocados se esfarelavam, retornando ao pó de onde vieram. Pela primeira vez o silêncio dominava a situação.
Estávamos tão absortos, ora no desenho, ora no mágico desempenho do nosso investigador oficial, que sequer percebemos Kalhani vindo discretamente por trás, numa leveza digna dos seres etéreos e superiores. Sua surpresa foi instântanea com o repentino estado das coisas reveladas em sua ausência no refúgio do estranho Lars.
- O que é tudo isso? – balbuciou, indicando o desenho e os despojos.
- As respostas de todas as perguntas – disparou eufórico Ericsson, assumindo em definitivo o controle da brilhante performance que vinha oferecendo.
- Antes de se empertigar todo, seu convencido, existem coisas mais importantes a tratar do que sua vaidade – recriminou a senhora Marino. – E então, senhor Kalhani? Conseguiu falar com o hospital? Este socorro vem quando, afinal?
- Assim que seja possível. Sem previsão. Foi somente o que obtive deles – respondeu, baixando a cabeça, desanimado.
- O velho não agüenta tanto! – exasperou-se Norton.
- Pobrezinho... – lamentou She, logo acompanhada Female. – Ele vai morrer e não vamos poder fazer nada!
- Bom Deus, como tudo chegou a esse ponto? – sussurrou condoída a senhora Marino. – Até ontem ele estava normal, do jeito reservado dele. E hoje...
- Não percebem que se alguém deseja a morte, não existe remédio ou tratamento que salve? Nem mesmo sua preocupação e esforços? – observou Ericsson, conformado.
Antes de imaginar um argumento contrário percebi, assim como os demais, que nosso investigador lançara um clarão nas trevas. Não compreendíamos ainda, em nossa ignorância, qual seria o motivo, portanto todos permaneceram calados. Todavia, tornava-se inegável que aquela inusitada e esdrúxula situação apenas poderia mesmo ser explicada convincentemente pelas palavras dele, por mais dolorosas que fossem: o velho Lars decretara sua hora de partir.
- A resposta sobrevive ao redor de vocês, meus amigos – prosseguiu Ericsson. – O passado do ancião o assombrou noite após noite. Suas lembranças o traíram e desertaram. Lutou contra elas bravamente. A noção da perda era insuportável. Depois tentou desesperadamente resgatá-las, empenhou-se nisso e finalmente, vencido, entregou os pontos.
Ele apontou o desenho, os restos de argila, os apetrechos espalhados e bateu na ponta dos próprios dedos.
- Um rosto de mulher foi tudo que sobrou. Aquela que amou um dia e provavelmente por toda a sua vida. Mas o tempo prega peças na memória. A velhice cobra um preço bastante caro. Lars percebeu que a imagem dela se desvanecia e escapava. Procurou primeiro desenhá-la. Muito pouco para quem amou tanto. Então tentou moldá-la em barro ou argila. Esculpir um busto que lhe fizesse companhia e alimentasse a alma saudosa. Notem que é uma figura de outra época, um vulto distante da juventude. Talvez uma paixão única e jamais consumada. Como saber? Infelizmente, faltou-lhe capacidade para criar a forma tão desejada. E diariamente o fruto do fracasso era colocado em sacos de lixo que empurrava até à calçada. Achou mais fácil trabalhar na calmaria da noite e dormir durante o dia. A rigor, com exceção disso, ao contrário do que especulávamos, não saía mais para absolutamente nada.
Ericsson enrolou cuidadosamente a gravura que abrira na mesa.
- O velho Lars trabalhava nesse móvel. Observem que os arranhões das espátulas, plainas e pás marcaram a superfície, acabando por serem vedados pelos restos do material avermelhado que raspava ou misturava com água nas bandejas. Utilizava a geladeira como local de secagem rápida da mistura, produzindo uma massa consistente. O interior de suas unhas está impregnado, tal como o desenho que manuseava, recorrendo como modelo. No entanto, ele desistiu de lutar contra o esquecimento e a impossibilidade de reviver a jovem que tanto amou. Aos poucos se largou, deixou de comer e cuidar de si. Aquele saco junto da cama, de onde retirei o nariz e a orelha, são os tributos derradeiros ao crepúsculo dessa paixão avassaladora. O momento em que decretou o final das tentativas e decidiu morrer na esperança de reencontrá-la noutro lugar...
Ele fora bastante racional e lógico, porém num tom solene carregado de emoção. Não havia quem escapasse à compaixão oriunda de tais revelações, imaginando aquele homem anos a fio na sua luta inútil de concretizar a fisionomia que conquistara seu coração e povoara seus sonhos. Não consegui perceber meus olhos úmidos, a despeito do meu desejo nesse sentido, mas os de todos os presentes estavam. As idéias espocavam soltas na minha mente, se iniciando de um jeito e desenvolvendo de outro, sem encontrar um final coerente.
Houve quem sugerisse que não deveriam continuar ali, respeitando a privacidade e o estado de Lars. Claro que ninguém cogitou deixá-lo abandonado até que o atendimento médico comparecesse. Assim, aos poucos, aquele exército da salvação começou enfim a debandar. Kalhani, como responsável e proprietário, de imediato se prontificou a permanecer. O Zumbi, debilmente, apenas escorou-se num canto próximo à cama, mantendo sua passividade inabalável. Também resolvi ficar, embora não compreendesse o porquê dessa decisão. Algo me dizia que aquilo não terminara, que minhas lágrimas talvez ainda escorressem. Ericsson, assim como os outros, veio então se despedir. Considerava a missão encerrada e ansiava pelo aconchego do próprio quarto. Pelo jeito que Larissa se dependurava nele, seu esperado descanso seria adiado e ela, mesmo afônica, manteria a boca ocupada toda manhã. Aliás, todos pareciam ter formado pares, inspirados pelo sentimento que consumira as últimas energias do velho moribundo: Norton saiu puxando carinhosamente a senhora Marino pela mão, insinuando que ela poderia dispensar os vídeos eróticos pelo resto do domingo, enquanto as escandalosas She e Female, grudadinhas, apenas reafirmaram o afeto que nutriam uma pela outra.
Antes dos travestis partirem, consegui emprestado o espelhinho de maquiagem que carregavam na bolsa abarrotada. Era bastante complicado distinguir a respiração do velho Lars. O corpo parecia mergulhado em irrestrita imobilidade, sem reações perceptíveis. Enquanto Kalhani sentara-se à mesa e fechara os olhos para entoar um “cântico de cura”, me aproximei resoluto do rosto de Lars, silenciosamente.
Posicionei o espelho abaixo de suas narinas e ligeiramente inclinado sobre a boca de lábios delgados e sem coloração, aguardando que o embaçamento revelasse um vestígio de vida naquele organismo alquebrado. Entretanto, acima das mais loucas expectativas, o susto me fez levantar, derrubar o objeto que se estilhaçou no piso e recuar na direção do Zumbi. Não havia capturado um reflexo do velho, como se ele fosse um fantasma ou sequer estivesse presente.
Kalhani, imerso na sua cantilena monótona, não despertou com meu sobressalto. O Zumbi mantinha-se impassível como antes. Uma outra surpresa foi observar o esforço hercúleo do velho Lars em abrir os olhos vazios, esboçar um sorriso doloroso e chamar-me para perto de si com o indicador descarnado. Ele procurou ser prosaico e adicionar vivacidade ao convite. Porém a espuma saindo pela boca denunciava o limite da sua condição. Sua inofensividade era tão patente que automaticamente caminhei na sua direção, aceitando aquela convocação. Sentei na beira da cama, baixando o ouvido o mais perto possível de sua face. A voz quase inaudível, trêmula, soou como um gongo que despertasse minha alma.
- Seu amigo estava certo, meu irmão de fileiras... Eu a perdi há tantos séculos... Não sei mais quantos... Nem minha memória conseguiu conservá-la... A imortalidade perdeu o encanto. A eternidade virou um fardo insuportável... A hora chegou, já posso e quero partir. Assuma meu lugar, faz parte do seu destino... Devemos cuidar dos humanos, como tomei conta daquele que chamam Zumbi... Suguei boa parte do sangue dele, como faço somente com os que não amam ou respeitam a vida, seja própria ou alheia. Isso se percebe ao vasculharmos seus espíritos e consciências. Reparou como eles são facilmente influenciáveis pela nossa vontade ou ânimo? Não somos os monstros retratados pela tradição. Ao contrário, constituímos os maiores justiceiros da raça. A condição de vampiro exige entrega e dedicação. Sinto que será um dos melhores, Zack...
- Acho que a falta de sono me deixou sonhando acordado - balbuciei.
- Não consegue dormir ao à noite, pois é uma criatura noturna. Seu organismo irá regularizar quando começar a beber sangue. Não será vítima de doenças mortais, seus dentes cessarão de doer e crescerão no instante necessário. Termine com o Zumbi, sem pressa. Eles se tornam letárgicos quando gradualmente os drenamos... Percebo que não acredita no que digo... Pense bem, Zack... A comida não lhe provoca repulsa? Não costuma sentir-se destinado a algo maior que o mero sucesso mundano ou organizar seus pertences? Não escuta através da madrugada sons que ninguém detecta? Seus ouvidos aflorados não ouvem ao longe asas batendo, roedores devorando sua presa e a baixeza dos indivíduos nocivos que arrancam a alma dos semelhantes? E, finalmente, não acha todos eles banais, repetitivos, previsíveis ou insípidos? Soa familiar? Representa uma outra estirpe de seres... Você acostumará agora que possui essa consciência... Sua transformação se iniciará em seguida...
Foram estas suas últimas palavras. Apagou-se como uma vela que consome o pavio. Sem alarde ou aviso, a conseqüência direta da decisão de abrir mão da vida eterna, da necessidade de tomar o sangue dos que não merecem a dádiva superior de existir. Nunca saberei porque aquele amor imenso não frutificou, que mecanismos os afastaram de compartilhar a felicidade. De qualquer forma, aquilo perdera a importância. O velho Lars não precisaria mais arrastar em monotonia os restos de uma lembrança esmaecida pelo tempo. Agora repousava ao lado da mulher amada, saboreando o genuíno estágio da evolução.
Tratei de me afastar discretamente. Meus movimentos doravante eram de uma criatura sutil, que não deixa vestígios materiais por onde transita. Minhas pegadas de volta sequer ficaram marcadas no assoalho imundo. Puxei o Zumbi pelo braço e desci com ele até seu andar. Estava sob minha exclusiva responsabilidade e, ao anoitecer, cuidaria dele, seguindo as indicações do velho Lars, meu nobre irmão de fileiras. Dirigindo-me ao meu quarto discerni claramente, como se nada existisse impedindo, os ardentes ruídos de Ericsson e da senhora Marino fazendo amor. E também os de Norton e Larissa, mesmo ele machucado para se contorcer ou ela afônica para gemer. Os de She e Female pareciam situados dentro dos meus aposentos, assim como o cântico enjoado de Kalhani vários andares acima. Os sons ganhavam uma dimensão extra. Não meramente os identificava, mas os dimensionava ante minha percepção e julgamento.
Estava exausto. A manhã avançava e precisava dormir para minha primeira vigília noturna. A existência caótica ganhara um significado palpável. O instinto bloqueava provisoriamente meus novos e aguçados sentidos, proporcionando as condições ideais de descanso. Enquanto a letargia vampiresca se espalhava, refleti sobre quantos amores poderia conhecer e perder nos séculos vindouros. Ou quanto tempo transcorreria até a solidão me esgotar e fazer desejar seguir o rastro do velho Lars, imitar aquele êxtase supremo de desencanto que agora trazia um nó à garganta e sufocava o peito. As lágrimas finalmente escorreram dos olhos e aqueceram minha face, rolando livres ao infinito como meu espírito inquieto.
Uma tarefa árdua acenava à frente, cobrando o melhor da essência imortal que dispunha. Refleti poucos segundos antes de adormecer se algum daqueles pitorescos companheiros de moradia exigiria meus caninos cravados em seu pescoço, me provocando um sorriso compreensivo que dava boa vinda aos sonhos. Intimamente, com exceção do Zumbi, os sabia dignos de indulgência. Apesar dos erros, defeitos, malícias e vícios nenhum deles, a rigor, comprometia o equilíbrio vigente.
Afinal, apenas algumas horas atrás, cada um havia demonstrado ser um bom vizinho.

quinta-feira, 17 de abril de 2008

Arraiais de Amor, Cabos da Paixão (Poesia)



Se percebo no teu rosto a beleza,
Igual é com a expressão do coração,
Nas linhas de toda tua natureza,
Na voz doce que entoa uma canção.

No emaranhado dos nossos corpos,
O desejo ávido nos mostra o caminho,
A excitação contínua dos destroços,
Que neste ardor revela nosso carinho.

Os medos enfim foram calados,
A alegria libertada em sussurro,
E os olhares risonhos aflorados,
Da linguagem íntima no escuro.

Se no prazer somos um do outro,
Na vida também nos pertencemos,
O amor, mais do que um tesouro,
É a fortuna que compartilharemos.


domingo, 13 de abril de 2008

Tempo de Drachmar (Conto)


Acontecia quando duas estações se confundiam, pareciam com uma terceira e ainda lembravam uma quarta, sem se misturarem ou desaparecerem. Você já presenciou algo assim, esteja certo. Caso duvide, foi apenas por não ter registrado corretamente na ocasião. Hoje, céptico e amadurecido, concluirá resoluto que nada disso existiu e estará redondamente enganado em seu julgamento. Errar é normal, não desista, principalmente ao vasculhar o passado. Tente de novo. A experiência encontra-se num canto abandonado das suas memórias, aguardando ser resgatada. O que mudou mesmo foram as certezas, o bom senso, o ponto de vista. Talvez se recorde um pouco agora. Uma repentina fagulha de intuição. Antes, entretanto, sem quaisquer compromissos, com muito chão à frente para sonhar, a receptividade em alerta e o olhar liberto de maiores expectativas, o fenômeno simplesmente existia e era reconhecido.
Uma vez a cada ano.
A neve derretia naturalmente, livre da presença do sol sufocante. Os pequenos veios de água riscavam tímidos seu percurso por entre as folhas murchas, desaparecendo e renascendo adiante, formando poças ou apenas umedecendo a terra. As flores desabrochavam vívidas mas não expulsavam os brotos das ramas, por sua vez riscando o espaço ao sabor da brisa. Os poros humanos comprimiam-se e dilatavam-se, acompanhando o respirar da sequência vital de segundo a segundo. O coração vencia convicto as fronteiras do organismo se integrando ao pulsar da natureza. E o raciocínio transbordava abundante, jorrava como uma decorrência onírica desta serenidade caótica, efervescente. As idéias eram puros veios poéticos, ao seu modo também riscando corações e mentes com sua textura indelével, profunda.
Assim, o fluxo sanguíneo irrigava a carne com o velho e o novo, o frio e o calor, oxigenando ainda o espírito com os desejos outrora impossíveis. Os opostos podiam conviver como grandes amigos ou parceiros fiéis, em harmonia, daqueles que nunca entrariam em conflito. As impressões constantes se revelavam como uma matéria-prima pronta a ser moldada segundo a vontade ou a sensibilidade dos que percebessem o momento especial. Os sonhos já não se manifestavam somente à noite, deixando generosamente a luz do dia encarregada de despertá-los. Os anos passavam como dias, as horas feito segundos, pois não existia o linear e o definitivo naquilo que todas as coisas se confundiam, pareciam e lembravam umas às outras.
Igual ocorria com tudo agora.
Era tempo de drachmar e a pequena Mirkha sabia disso. E sentia. A fagulha nela já se transformara em chama, prestes a atear o fogo inevitavelmente. O momento é ideal para apresentá-los. Ela é a carta de alforria da sua compreensão. O código através do qual decifrarão o que não entenderam. O botim para salvar dos recônditos do limbo aquelas memórias há muito esquecidas. Observando que em todo tratamento precisamos fazer a nossa parte, pois nada vem de graça, espero que aproveitem a oportunidade única. Agora vou deixá-los na sua companhia, certo de que irão apreciar tudo que irá lhes revelar, recuperando enfim uma dádiva eterna.
“Hoje posso ser uma bruxa”, refletiu. “De verdade mesmo. Mudar tudo não ferindo nada. Comer uma fruta sem morder a casca. Abrir um presente sem precisar rasgar o papel".
No último drachmar constatara extasiada, pela primeira vez, essa possibilidade. O filete vermelho viscoso escorrera do ventre pelas suas pernas, num fluxo contínuo, enquanto tomava banho no riacho. Fora boa a sensação do líquido morno misturado à umidade gelada do corpo. Não sentiu medo algum. Ou dor. Recordava bem do fato de correr nua e excitada até a avó para mostrar-lhe o prodígio: jorrara sangue do próprio corpo sem se cortar ou ferir-se! Ela já estava acamada então. Inerte. Com o olhar totalmente perdido no infinito e a fisionomia estranhamente plácida guarnecida em moldura pela vastíssima cabeleira branca. Porém naquela hora isso pouco importava. Aquilo que um dia lhe contara era verdade e ali, melada em sua pele, estava evidente a prova.
“Existe uma época, querida, em que tudo pode ser realizado. Ao fitar o céu de dia e conseguir ver a Lua, ao mergulhar na transparência da água e também apreciar o fundo arenoso, ao observar que o verão beija o inverno e a primavera abraça o outono, saberá que é drachmar. Os anseios da infância se materializarão nas aspirações do amadurecimento. De menina chegará à mulher em um piscar de olhos, não precisando descartar a pureza ou a inocência. Aí está o maravilhoso de drachmar. Você tornar-se sem perder, fazer sem alterar, transformar sem agredir. No entanto não é simples percebê-lo. Mas ele tem o hábito de revelar-se aos que possuem o dom, na hora propícia, através de sinais. Basta que você o procure muito atentamente, preparada para utilizá-lo corretamente”.
Essa conversa fora há dois anos, numa tarde chuvosa, e nunca mais lhe saíra da cabeça. Ou melhor, dois drachmar atrás. A avó nunca descuidara de sua instrução, mas tinha a capacidade de ensinar além do saber convencional. A casa era abarrotada de livros diversos, de origem ignorada, empilhados sem método ou ordem. Era fascinante vê-la utilizar seu discernimento telúrico para localizar em meio ao caos exatamente o volume desejado. Todos cheios de poeira e informações importantes, principalmente após serem explicados pela anciã. Espanando a sujeira com a palma da mão, seus dedos roliços percorriam as páginas emboloradas velozmente, como que filtrando o primordial. As lições diárias traziam sempre as portas de um novo universo. “Nunca seja escrava desse conhecimento”, insistia ela. “Há um prodígio maior lá fora, trate de encontrá-lo e também esteja pronta para ele”.
Passara as semanas e os meses seguintes de olhos bem abertos, com os ouvidos apurados, pesquisando ao seu redor como nunca o fizera. Precisava achar qualquer indício da chegada anual de drachmar e não perder a chance de operar milagres. De confirmar-se uma digna sucessora na linhagem familiar das bruxas. De assumir uma tradição que começara no instante em que a avó lhe retirara das entranhas da mãe e soprara a vida em sua boca. No mesmo dia em que herdara a condição de neta e de órfã, que se estendia por seus treze anos de vida.
Nesse meio tempo a saúde da velha deteriorara. À inércia juntaram-se primeiro o alheamento mental e depois o sofrimento físico. Uma mancha arroxeada, circular, tomava forma na altura do estômago, logo dominando toda essa área e se espalhando cada vez mais. O hálito contaminado bafejava a podridão do intestino, denunciando a doença desconhecida. As órbitas, comprimidas contra as pálpebras, lutavam incessantemente pela paz. O espírito, invisível e lúcido, testemunhava a batalha aos poucos perdida clamando por rendição ou no mínimo uma ligeira trégua.
A miúda, indiferente ao destino, gastava quase todo o tempo entre a cabana e o bosque catando raízes, trazendo água, fazendo a higiene, enxugando o suor, aplicando inúmeras compressas. Ao ferver a sopa que lhe dava todas as noites, escutava-a balbuciar frases desconexas, palavras ininteligíveis, raciocínios perdidos. Aflorava os sentidos tentando apreender um segredo que fosse no falar confuso. Sua feiticeira adorada conhecia drachmar e, ao abraçar-lhe o corpanzil na hora de dormir, rogava baixinho que o mistério se transmitisse no calor do contato.
A preocupação a tornava mais madura a cada dia. Também bastante cansada, embora sentisse uma estranha euforia tomar-lhe o corpo. Fazia tempo que, em face das inúmeras tarefas domésticas, largara os brinquedos de pano, convivendo com as calosidades que surgiam nos pés, nas mãos e nos joelhos. Descobrira no toque um conforto para a fadiga, apalpando áreas que lhe traziam agora uma sensação inusitada. Era bem gostoso massagear-se no banho e deixar aquele arrepio percorrê-la de alto a baixo, opondo tal alívio ao desconforto físico.
Além de tudo, ansiava apenas pela sua emancipação encantada, pelo momento que se tornasse apta a realizar os grandes feitos de qualquer bruxa na plenitude. Não mais visando concretizar seus inofensivos devaneios infantis de transmutar folhas mortas em flores perfumadas ou manipular o barro avermelhado em areia límpida. Mas somente esperando conseguir curar sua avó, libertá-la de quaisquer males, trazer-lhe o alento merecido. Afinal, se até mesmo ele proporcionava alguma melhora, sem nenhum talento mágico, que dizer dela, uma autêntica druida aguardando a eclosão de seus poderes? Não havia sequer termo de comparação entre ambos e a vinda de drachmar comprovaria isso.
Vez ou outra aquela enigmática figura de preto passava por ali.
Estacionava em frente à choupana sua carroça, cujo ranger denotava a urgência de óleo, puxada por um cavalo esquálido e exaurido, implorando descanso. Não conseguia proporcionar um mínimo de vitalidade ao próprio animal, no entanto se julgava capacitado a fazê-lo com seres humanos. Trazia uma pequena maleta de couro, gasta e abarrotada de apetrechos de metal. Podia se ouvir facilmente o tilintar enquanto ele caminhava ofegante até o interior do casebre, limpando a transpiração da testa, se escorando no umbral para respirar e sumindo ruidosamente no interior.
“Ele não é um de nós”, deduziu Mirkha, de imediato. “Se fosse não precisaria de objetos, faria tudo com os elementos. E sem nenhum barulho. Aliás, não consegue trazer novas energias nem para si mesmo”.
Espiando de longe ou aproximando-se silenciosamente da janela, vira todo o ritual de lavagem e cataplasmas aplicados na avó. Como tudo aquilo parecia trazer-lhe um relativo conforto, tratou de imitar dentro do possível, no cotidiano. Além disso, evitava cruzar com o estranho personagem. Ele a assustava bastante, embora ignorasse o porquê. Talvez o ar circunspecto, o olhar grave ou sua roupa tão escura.
Aliás, nunca lhe pareceu que a procurasse, muito pelo contrário. Ele sondava o ambiente como se adivinhasse a sua presença ou captasse o seu cheiro. E rezasse para não detectar um e outro perto de si, como quem pressente um fardo.
Porém um dia o encontro ocorrera, inevitavelmente. Ela se refugiara no seu recanto. Estava toda alegre montada no seu tronco junto ao regato, batendo ligeiro os pés no chão. Ultimamente descobrira um delicioso prazer em sentar sobre a madeira e balançar-se com as pernas abertas, num ritmo constante, sentindo o contato rígido esquentar as suas virilhas, pressionando-a de um modo diferente, agradável.
O gozo impediu-a de vê-lo chegando. Quando descerrou os olhos para a claridade, respiração ofegante, face satisfeita, testemunhou a censura estampada na sua frente. Por uma fração de segundo, um tipo de ternura acendeu o rosto dele para em seguida se dissipar. Levantou com a mão pálida seu queixo, obrigando-a a encará-lo quisesse ou não. O som da voz dele... Como esquecer o que disse então?
“Você é o retrato da sua mãe”.
A frase não surtiu o efeito que seria o normal. Mirkha tentou mas não pôde sorrir. Permaneceu imóvel, em transe, sem se desvencilhar do contato forçado.
“Terá de ir daqui, querida... Cedo ou tarde. Goste ou não. Sua avó está no fim das forças. Você não poderá cuidar-se sozinha. Acostume-se com a idéia. Só estou pensando na sua segurança, no seu futuro. Nada mais que isso... O mundo de verdade está lá fora, além desse bosque e da choupana que vive. O seu novo lar...”.
“Sabedoria de curandeiro”, pensou, quando ele se afastou tão rápido quanto surgira. “Eu nunca sairei desse lugar. Drachmar emana dessa terra. E uma bruxa não tem dificuldades de sobreviver. Consegue tudo o que necessita com um gesto. Posso me misturar entre as árvores e ninguém me achará. Me transformar em um animal e esconder-me numa toca. Fazer surgir asas nas minhas costas e voar a distância que convir. Basta que alcance o grau de iniciada, brevemente...”.
E, repentinamente, durante aquele banho no riacho, conforme sua boa mestra sempre previra, ela se tornara merecedora. Penetrara drachmar com naturalidade, só conscientizando o estado quando este já tinha se instalado em definitivo. Extraíra sua seiva de modo indolor, jorrara sangue de seu íntimo sem rasgar a pele, o simples toque do próprio corpo a enchia de grandes esperanças. Modificara drasticamente a sua integridade sem perda da serenidade ou agressão à individualidade. Drachmar!
Agora, meses à frente da conversão, ao iniciar-se um novo ciclo anual de feitiçaria, estava apta a exercê-lo. A fazer pela pobre avó o que esta não podia mais. Postando-se ao lado do leito da anciã, em vigília, retirou de uma cesta, ao invés de raízes, um apanhado de folhas secas; e, do cântaro, no lugar da água, um punhado de barro encarnado. Suspirou. Cuidadosamente cobriu o rosto enrugado e transtornado dela com algumas folhas, espalhando a seguir lama sobre o hematoma que borrava o ventre. Satisfeita com a arrumação dos elementos inclinou-se sobre o leito, sorriu cheia de otimismo e, concentrada, dedicou-se à transmutação desejada.
Contrita, fechou os olhos, apertou as mãos dela nas suas e aguardou a suprema metamorfose de drachmar que mudaria folhas em flores, barro em areia. Mil pensamentos e imagens povoavam sua cabeça em seqüência: cores, símbolos, rostos, bichos, o regato, o tronco, o filete de sangue... Percorria grandes distâncias, atravessava as estações do ano, se elevava até os astros e planetas mesclando-se às estrelas. Era uma visão deslumbrante de um universo inserido em caleidoscópio, sensorial ao extremo, de fronteiras transcendentais. Um mergulho na cachoeira cósmica, um passeio entre nebulosas longínquas e um labirinto repleto de cores, impulsionado pelo total desprendimento de doar-se a um bom objetivo, ao invés dos banais caprichos pessoais.
“É para você, vovó”, meditou, do fundo de seu ser. “Como na hora que me retirou do interior da mamãe e beijou a vida em mim”.
Minutos após, ao despertar da letargia induzida, viu, de maneira que juraria pelo resto de sua existência, a folhagem murcha adquirir viço, ganhar tons variados e desmanchar-se em pétalas aromáticas que expulsaram o cheiro ruim da boca. E, de forma conjunta, a lama rubra perder o rubor, refinar-se, sendo absorvida pela carne, tornando o ventre saudável, alvo, e apagando a nódoa avermelhada. Os ignorantes explicariam tudo como uma coincidência: diriam que a água desmanchou as folhas e criou um ligeiro perfume, lavando o mau hálito da enferma. Ou mesmo que a nova brancura da barriga se devia à coloração obtida na mistura da porção de barro umedecido com a pele ressequida. Entretanto, como explicamos no princípio, a memória nos prega suas peças, esconde a verdade e exibe fatos mal camuflados.
A pequena Mirkha testemunhara todo o processo. Assistia não apenas os traços de flores que emolduravam uma face enfim serena, assim como uma pele branca, desobstruída, similar a uma tênue mortalha que resguardava um corpo que encontrara sossego. Via e respirava, ao contrário da avó, não somente o odor que substituíra o bafo fétido, tal qual o frescor que emanava suavemente de cada poro desintoxicado pelo bálsamo que, ao esfarelar-se, conduziu-a de volta ao pó e ao descanso eterno.
Sim, ela assistira, sem qualquer dúvida ou engano. Melhor ainda, fora a responsável pela deslumbrante cura. Entretanto a maioria não poderia fazê-lo por não conhecerem os segredos de drachmar. Afirmariam que nada consistia além da fértil imaginação de uma menina solitária. Ou do produto casual de fenômenos naturais e de simples reações orgânicas. A rigor, a opinião alheia carecia de importância. Talvez um preço barato cobrado pelo indescritível bem-estar de ajudar e fruir aquela essência. Era delicioso viver em meio à natureza selvagem, sentindo no espírito toda a gama de prazeres agora evidentes, conduzindo seu instinto rumo às experiências inéditas. Os banhos de riacho e as cavalgadas no tronco jamais seriam as mesmas.
Saiu.
O êxtase pela cura da avó tomava conta dela. Sentia-se mais criança do que nunca todavia não extravasava como tal. A embriaguez total de drachmar a contagiava vibrando ininterruptamente. O sangue escorria em jatos pelas suas coxas confirmando o pacto mágico, lembrete que vinha se repetindo mensalmente. Ela era mulher e inocente, adulta e ingênua, uma sem sobrepor ou anular a outra. Tinha a capacidade de se metamorfosear em todo animal e ignorar a dimensão estática das distâncias. Voaria ao topo dos céus ou ainda afundaria nas águas sem dificuldade alguma.
Feliz, abraçou o verão e o inverno, beijou a primavera e o outono.
Acenou para a Lua que passeava acompanhada do Sol, mergulhou na areia e secou-se na água. Dançou com as coisas que se confundiam, pareciam ou lembravam entre si. Aquele era o seu pedaço de chão e permaneceria ali por toda vida. Riu da sisudez do homem sem nome e de suas preocupações relativas à sua sobrevivência. Um simples bater de mãos e teria tudo que necessitasse.
Saltou célere sobre o vento. Agarrou ágil inúmeros raios de luz, sem que se misturassem ou desaparecessem por entre seus dedos. Vestiu o corpo com nuvens, confeccionou um chapéu de fogo, fez anel e colares de sementes e cascas.
Detectou a alma da avó manifestando-se em tudo: saudável, sublime, livre, pairando sobre as estações, flutuando acima das folhas e das flores, do tronco e do riacho, reciclada à areia e ao barro numa fusão solene que acendia o otimismo.
Ela, Mirkha e drachmar estavam unidas para sempre.

quarta-feira, 9 de abril de 2008

O Último Adeus (Conto)


Seria a última vez que veria Nicholas Serpinsky.
Seu melhor, e único, amigo.
A melancolia pela certeza dessa despedida era mesmo inevitável. Um sentimento agudo de tristeza que o dominava até a medula. Similar às gotas que escorriam desencontradas pela vidraça de sua janela, impossíveis de aglutinar numa só, esparramando-se invisíveis enquanto buscavam sua trilha. Uma frustração indecifrável nas conseqüências, embora justificável nas causas. O gigante russo de olhar penetrante, feições rudes e hábitos simples contribuíra, em muito, naquilo de essencial que possuía atualmente. Desse modo, como consolo, revolvia as inúmeras lembranças, saboreando cada ensinamento transmitido pelo grande companheiro nos seus anos de convivência. Nada fora inútil para sua formação, tudo auxiliando ao homem que estava preste a se tornar. Uma passagem dolorosa, visceral. Orientada por um herói que se tornara seu reflexo no espelho, a voz potente acima da nevasca, a bússola que o guiara incólume em jornadas cruciais e sombrias.
E hoje iria encontrá-lo pela última vez.
Ele o avisara disso bem antes, em várias oportunidades, preparando o seu espírito aos poucos para o afastamento. Eliminando o fator surpresa do evento, como costumava dizer. Tal qual no dia que perseguiram lobos na taiga, por exemplo. O crepúsculo sem sol manifestava-se no entardecer de chumbo, transfigurando a pradaria em berço de um firmamento soturno, pesado, hostil. Os rigores do inverno aproximavam-se gradativamente, limitados então ao orvalho congelado e ao granizo saliente que espocava surdo sob seus pés trôpegos. Em contrapartida, a vegetação rala e rasteira, típica do norte da Sibéria, facilitava a investida, poupando esforços. Na ausência de esconderijos naturais, caçador e caça travavam uma disputa limpa, justa. Porém, o vento gélido e cortante os obrigara a suspender as golas ao máximo. As abas do boné baixadas inteiras sobre as orelhas; as grossas luvas de couro cru aparentando garras; os casacos maciços, surrados e sebentos de cor parda confeccionados de camurça, mais os faziam parecidos com ursos, realçando-os no panorama alvo da planície desnuda, desequilibrando assim as chances da contenda.
Paciência. O frio intenso, independente da estação do ano, exigia que não deixassem um milímetro do corpo a descoberto, exceção apenas aos olhos. Senão corriam o risco de suas carcaças descansarem ali eternamente. A precaução fora assim extremamente eficiente. Apesar de dificultar os movimentos e revelar a presença, o bem-estar do calor redobrou seus ânimos permitindo, desta feita, que dois ursos capturassem quatro lobos. Um belo resultado para uma jornada de trabalho inóspita, árdua, a princípio sem maiores perspectivas de sucesso.
Enquanto, horas depois, sob a proteção de uma lareira e uma cabana, Nicholas esfolava os animais, pensou, como ao retomar estas reminiscências, no que ele lhe ensinara. Achar nascentes, seguir rastros, interpretar vestígios, perceber tempestades, distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis... Uma série de coisas. As situações boas se apresentam enganosamente duradouras, a despeito do temor que o destino, de repente, as surrupie. Talvez por isso ressurgem na memória com freqüência, desviando a concentração das questões momentâneas. Dessa maneira, alheio, ao mesmo tempo em que iniciava o método de curtição da primeira pele separada, viera o aviso ao qual não prestara a devida atenção na ocasião.
- Escute... – o urro vigoroso, enérgico, mas compreensivo, ecoara no interior da choupana de pinho sem interromper o trabalho de destaque da segunda pele. – Não poderei acompanhá-lo para sempre. Outros aprendizes necessitarão da minha ajuda e experiência. Chegará o tempo em que você terá de caminhar sobre suas pernas. E não deve ter medo de enfrentar o horizonte. Conhece os ventos, os rios, os ursos e os lobos. Tanto quando afoitos quanto tranquilos. Sabe o que fazer numa ou noutra circunstância. A diferença é que estará sozinho.
Continuara o curtimento mergulhado dentro de si, tratando a couraça no molho de tanino e baganha. A mistura líquida das cascas e sementes de linho exibia um aspecto nada atraente, decorrente do mosto de linhaça fermentado em salmoura. Apoiando a grande bacia no rés-do-chão, mantinha a pele estendida com firmeza, embebendo os pelos de ponta à raiz no óleo grosso e escuro. A seguir, com os dedos em forma de concha, alisava-a com movimentos uniformes impedindo seu enrugamento, emergindo-a no intervalo exato, garantindo a sua flexibilidade depois de completamente curada. Uma tarefa que exercia com habilidade impecável, não havendo até necessidade de fixar a vista na função.
O fogo crepitava alto estalando a madeira úmida, expelindo rolos de fumaça branca e delgada pela chaminé de alvenaria. O rubor das chamas marcava um contraste com os tons cinza e prateado da pelugem dos lobos, atraindo o olhar do aprendiz com seus desenhos coloridos, seus movimentos desconexos, sua dança bizarra. O poder hipnótico daquelas labaredas insinuantes o conduziu, então, das recordações pessoais para as de seu mestre.
Nicholas fora um cossaco. Conforme a tradição eslava jamais deixaria de sê-lo. Contava histórias de suas façanhas anos a serviço do Czar, contudo sem vangloriar-se delas. Pelo menos, não de um jeito tolo. O seu orgulho provinha de nunca ter humilhado ninguém com sua coragem ou força. A bravura, dizia, não é derrotar o inimigo e sim domar a própria prepotência. Porque pisar no vencido denotava esmagar a condição humana, já que os homens não se dividem em vitoriosos ou até derrotados, generosos ou mesmo maus, menos ainda em heróis ou covardes. Vira acontecer de tudo um pouco, explicara com riqueza de detalhes, no entanto todos consistiam, fundamentalmente, gente de carne e osso. Terminado o embate o que ficava era um semelhante. Alguém que tinha o direito de viver segundo certas responsabilidades. E assumi-las sob o risco de pagar um preço adiante. Talvez nisso se resumisse a mais valiosa das lições que ministrava, pois serviria em qualquer época, lugar ou situação: o respeito pela vida e a consideração pela liberdade de escolha.
Entretanto poucos pensavam como Nickie. Os camaradas de fileira, em especial, nunca. Consideravam-no um anacronismo vivo, uma contradição elaborada sobre sangue e suor, sorriso e compaixão. Admiravam-no somente por sua capacidade de combate, pela destreza manuseando o sabre e, principalmente, pelo sucesso na sedução de damas ou camponesas. A campanha do Cáucaso o indispôs com seus superiores, levando-o a abandonar o convívio das tropas e das batalhas. Seu bom senso indicou-lhe que seu conceito de glória e honra era muito particular, não havendo eco para tais no turbilhão dos conflitos, na frieza do extermínio em massa.

Assim voltou a habitar nas margens do Don inferior, nos rincões gélidos da Ásia Central, local onde nascera e crescera. Pôde novamente assistir ao degelo do rio na primavera. Observar aqueles sólidos blocos que suportavam a passagem de uma tropa partirem-se por inteiro ao serem afagados pelo calor emergente, sem perder a grandiosidade. Desde então fez das florestas e das estepes seu campo de ação, buscando paz, almas e o próprio sustento com a imponência de quem se reconhece parte integrante de um todo. Abandonara o rancor pela compreensão, a frustração pela esperança. E fora numa destas cavalgadas com a liberdade que Nickie lhe encontrara e o adotara, em sua característica intuição da hora exata para intervir.
Ele se encontrava em perigo mortal, cercado por lobos famintos e sem caminho para a fuga. Às suas costas apenas um rio revolto sulcado pelas forças do descongelamento, oferecendo riscos tão grandes quanto às bocas sequiosas dos animais. Enquanto tentava com um tosco pedaço de pau manter tantas mandíbulas afastadas de sua carne, o pensamento voava à procura de um milagre de última hora. Já havia recuado até o limite da margem, confundindo seus gritos de socorro e pavor com o estrondo da correnteza que engolia os derradeiros blocos flutuantes da superfície antes gelada. O suor em seu rosto se confundia com lágrimas que não conseguia evitar. A consciência do fim precoce em região tão longínqua e solitária, a certeza de que seus sonhos não se concretizariam, legaram ao seu olhar a sombra do desencanto perante a fatalidade. Podia sentir o hálito das feras cada vez mais próximo, assim como o rugir caudaloso e nada convidativo na retaguarda...
Quando Nicholas, repentinamente, saltou no interior do círculo mortal que os animais desenharam em torno dele, apenas teve tempo de discernir a rapidez pela qual a bicharada era abatida. Os estampidos secos se sucederam em número de seis e não houve desperdício de munição. O cheiro da pólvora alcançou suas narinas e a visão dos corpos amolecidos desabando ao chão tranquilizou sua mente, embora os nervos ainda chacoalhassem frêmitos pela tensão experimentada. O sorriso confiante dele foi o que de primeiro notou em seu semblante. Não apenas euforia pela façanha realizada, mas satisfação pela vida arrematada da morte no instante derradeiro. Nickie o salvara e continuaria fazendo-o pelos anos vindouros. Iria lapidar tudo, do seu temperamento ao modo de encarar o futuro, além de lhe servir de companhia nos anos de solidão e recolhimento no alojamento, até a façanha seguinte. Uma tranqüilidade relativa e eventualmente adiada pela deliciosa presença de uma mulher, pelo ardor de uma alma feminina. Certo dia o guerreiro surpreendeu-o trazendo uma bela jovem de curvas perfeitas, trajando um corpete bem apertado. Ela segurara sua mão com um sorriso travesso e o levara para o interior de um aposento, acendendo uma lareira dentro dele pelo resto da sua vida. O fogo da iniciação sexual permaneceu aceso, sempre alimentado por novas raparigas.
O bruxulear das chamas o trouxe de volta àquela realidade, saudando ainda o término da tarefa de destaque e curtição das peles dos lobos. As quatro se encontravam prontas e seriam excelentes mantas para vários invernos rigorosos. O balançar de cabeça aprovador de Nicholas era fundamental e acabara de recebê-lo. Agora não havia nada entre eles e podiam se fitar demoradamente, conversando do jeito íntimo, mas incisivo, que era a marca registrada dele ao deflagrar um tópico que elegera importante. O silêncio, ansiando ser quebrado, simulava conspirar com tudo.
- No dia que o resgatei dentre as bestas que o acossavam... – incrível como ele parecia ler seus pensamentos, captara suas lembranças no ar. – Você se colocou numa posição de flerte com a morte. Correu um risco desnecessário e nós sabemos o porquê... Queria o caminho mais fácil, menos indolor... Chegar rápido ao fim... Buscou um desvio... Mas na vida não se deve procurar atalhos... Precisamos vivenciar todas as etapas, acrescentar uma a uma na construção da personalidade... Ao se deparar com o limite tênue entre os dois mundos se conscientizou disso, meu filho, e retornou para o seu lugar, para a sua trajetória primitiva...
Meu filho..." Se pudesse ter convivido com os próprios pais talvez não se metesse naquela enrascada. E provavelmente não depararia com Nicholas. A sensação da laje fria do parapeito da janela do alojamento ainda assombrava sua memória. Na frente de si somente um imenso vazio materializando o convite à queda fatal. No fundo do precipício de concreto urbano a imensa serpente negra do asfalto, uma caudal tortuosa percorrida pela fúria ruidosa de automóveis e suas buzinas. Atrás, a ferocidade de seus demônios interiores, de suas fraquezas mal assimiladas, aguardando sequiosos a decisão de escapar dos monstros e mergulhar no caos.
No entanto o russo o salvara... Esmagara os lobos famintos e ignorara a força selvagem da corrente fatal. Trouxera o milagre da esperança e o percurso da existência. Dera-lhe a mão, amor e compreensão. Além dos ensinamentos cruciais para ir adiante, explorar a própria índole e preencher suas expectativas pessoais.
Aproximou-se da mesma laje, do mesmo parapeito. Pela janela imunda de fuligem enxergava as chaminés das fábricas cuspindo o negrume dos detritos pelas tubulações. O dia era escuro como aquele no qual caçaram animais na taiga. A garoa persistia monótona, repetitiva, débil. O engarrafamento de veículos também, enfatizando o ridículo das situações corriqueiras e inúteis, das atribulações triviais. A fumaça, a chuva e o trânsito não impediriam a vinda de Nickie. O cossaco assumira o papel de seus pais. Povoara sua imaginação de aventuras vibrantes e conselhos ponderados. Ele o criara e fora criado por ele, concebido por sua carência de companheirismo e de afeto. Deixaria de existir hoje porque a criança amedrontada que o chamara, o adolescente desesperançado que suplicara urgentemente sua interferência, descortinara a via correta para a idade adulta. O bom senso clamava então que o liberasse para outros órfãos ou novos necessitados.
- Talvez você se pergunte que utilidade terá todas essas coisas que lhe mostrei durante tantos anos, em seu cotidiano... – observou o gigante, enquanto se acomodava pela última vez na cadeira ao lado da cama. – A temperatura das nascentes, a rebeldia da tormenta, o temperamento do urso e o sabor dos melhores cogumelos... Esses pormenores são sua herança, meu filho... Sua autêntica riqueza, meu pai... Use-as da maneira adequada e entenderá o segredo da naturalidade, da percepção, do que é espontâneo. Nenhum problema se manifestará como insolúvel então. Risco algum será gratuito, infinito ou até mesmo assustador. As experiências nunca escreverão um capítulo derradeiro, mas um prólogo para novas narrativas. Existirá sempre uma saída, pois amará a vida e o prazer de viver acima de tudo... E confiará no futuro, no curso dos acontecimentos e, especialmente, na felicidade.
“Adeus, Nicholas”, murmurou, nos segundos que o corpanzil precisou empregar para se erguer resoluto, menear a cabeça, caminhar uns poucos passos e dissolver-se através da parede que o separava do ambiente exterior, do universo infinito. A visão marejada bastou para acompanhar ele se afastando e sumindo em um horizonte que parecia todo encomendado sob medida para a ocasião, gerando uma solenidade particular. Ele era imortal, sobreviveria em qualquer circunstância.
Surpreendeu-se por sua reação não conter tristeza ao vê-lo partir. Ao invés, uma doce resignação em forma de saudade. A mesma de quem lembra de um brinquedo da infância ou um namoro da juventude. Com a diferença que conseguia visualizá-la à perfeição nesse exato momento, medindo seu calor, sua consistência, seu comportamento e seu sabor.
Nascentes, tormentas, ursos e cogumelos... Sim, as lições do camarada Serpinsky, que ganhava mundo diante de seus olhos e ficava gravado em seu coração eternamente. Afinal, era o mesmo Nickie que um dia lhe estendeu a mão, espantou seus temores e despertou sua confiança, fazendo de uma criança algo mais que um homem, um ser humano.
E que hoje lhe dera adeus pela última vez.