quarta-feira, 9 de abril de 2008

O Último Adeus (Conto)


Seria a última vez que veria Nicholas Serpinsky.
Seu melhor, e único, amigo.
A melancolia pela certeza dessa despedida era mesmo inevitável. Um sentimento agudo de tristeza que o dominava até a medula. Similar às gotas que escorriam desencontradas pela vidraça de sua janela, impossíveis de aglutinar numa só, esparramando-se invisíveis enquanto buscavam sua trilha. Uma frustração indecifrável nas conseqüências, embora justificável nas causas. O gigante russo de olhar penetrante, feições rudes e hábitos simples contribuíra, em muito, naquilo de essencial que possuía atualmente. Desse modo, como consolo, revolvia as inúmeras lembranças, saboreando cada ensinamento transmitido pelo grande companheiro nos seus anos de convivência. Nada fora inútil para sua formação, tudo auxiliando ao homem que estava preste a se tornar. Uma passagem dolorosa, visceral. Orientada por um herói que se tornara seu reflexo no espelho, a voz potente acima da nevasca, a bússola que o guiara incólume em jornadas cruciais e sombrias.
E hoje iria encontrá-lo pela última vez.
Ele o avisara disso bem antes, em várias oportunidades, preparando o seu espírito aos poucos para o afastamento. Eliminando o fator surpresa do evento, como costumava dizer. Tal qual no dia que perseguiram lobos na taiga, por exemplo. O crepúsculo sem sol manifestava-se no entardecer de chumbo, transfigurando a pradaria em berço de um firmamento soturno, pesado, hostil. Os rigores do inverno aproximavam-se gradativamente, limitados então ao orvalho congelado e ao granizo saliente que espocava surdo sob seus pés trôpegos. Em contrapartida, a vegetação rala e rasteira, típica do norte da Sibéria, facilitava a investida, poupando esforços. Na ausência de esconderijos naturais, caçador e caça travavam uma disputa limpa, justa. Porém, o vento gélido e cortante os obrigara a suspender as golas ao máximo. As abas do boné baixadas inteiras sobre as orelhas; as grossas luvas de couro cru aparentando garras; os casacos maciços, surrados e sebentos de cor parda confeccionados de camurça, mais os faziam parecidos com ursos, realçando-os no panorama alvo da planície desnuda, desequilibrando assim as chances da contenda.
Paciência. O frio intenso, independente da estação do ano, exigia que não deixassem um milímetro do corpo a descoberto, exceção apenas aos olhos. Senão corriam o risco de suas carcaças descansarem ali eternamente. A precaução fora assim extremamente eficiente. Apesar de dificultar os movimentos e revelar a presença, o bem-estar do calor redobrou seus ânimos permitindo, desta feita, que dois ursos capturassem quatro lobos. Um belo resultado para uma jornada de trabalho inóspita, árdua, a princípio sem maiores perspectivas de sucesso.
Enquanto, horas depois, sob a proteção de uma lareira e uma cabana, Nicholas esfolava os animais, pensou, como ao retomar estas reminiscências, no que ele lhe ensinara. Achar nascentes, seguir rastros, interpretar vestígios, perceber tempestades, distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis... Uma série de coisas. As situações boas se apresentam enganosamente duradouras, a despeito do temor que o destino, de repente, as surrupie. Talvez por isso ressurgem na memória com freqüência, desviando a concentração das questões momentâneas. Dessa maneira, alheio, ao mesmo tempo em que iniciava o método de curtição da primeira pele separada, viera o aviso ao qual não prestara a devida atenção na ocasião.
- Escute... – o urro vigoroso, enérgico, mas compreensivo, ecoara no interior da choupana de pinho sem interromper o trabalho de destaque da segunda pele. – Não poderei acompanhá-lo para sempre. Outros aprendizes necessitarão da minha ajuda e experiência. Chegará o tempo em que você terá de caminhar sobre suas pernas. E não deve ter medo de enfrentar o horizonte. Conhece os ventos, os rios, os ursos e os lobos. Tanto quando afoitos quanto tranquilos. Sabe o que fazer numa ou noutra circunstância. A diferença é que estará sozinho.
Continuara o curtimento mergulhado dentro de si, tratando a couraça no molho de tanino e baganha. A mistura líquida das cascas e sementes de linho exibia um aspecto nada atraente, decorrente do mosto de linhaça fermentado em salmoura. Apoiando a grande bacia no rés-do-chão, mantinha a pele estendida com firmeza, embebendo os pelos de ponta à raiz no óleo grosso e escuro. A seguir, com os dedos em forma de concha, alisava-a com movimentos uniformes impedindo seu enrugamento, emergindo-a no intervalo exato, garantindo a sua flexibilidade depois de completamente curada. Uma tarefa que exercia com habilidade impecável, não havendo até necessidade de fixar a vista na função.
O fogo crepitava alto estalando a madeira úmida, expelindo rolos de fumaça branca e delgada pela chaminé de alvenaria. O rubor das chamas marcava um contraste com os tons cinza e prateado da pelugem dos lobos, atraindo o olhar do aprendiz com seus desenhos coloridos, seus movimentos desconexos, sua dança bizarra. O poder hipnótico daquelas labaredas insinuantes o conduziu, então, das recordações pessoais para as de seu mestre.
Nicholas fora um cossaco. Conforme a tradição eslava jamais deixaria de sê-lo. Contava histórias de suas façanhas anos a serviço do Czar, contudo sem vangloriar-se delas. Pelo menos, não de um jeito tolo. O seu orgulho provinha de nunca ter humilhado ninguém com sua coragem ou força. A bravura, dizia, não é derrotar o inimigo e sim domar a própria prepotência. Porque pisar no vencido denotava esmagar a condição humana, já que os homens não se dividem em vitoriosos ou até derrotados, generosos ou mesmo maus, menos ainda em heróis ou covardes. Vira acontecer de tudo um pouco, explicara com riqueza de detalhes, no entanto todos consistiam, fundamentalmente, gente de carne e osso. Terminado o embate o que ficava era um semelhante. Alguém que tinha o direito de viver segundo certas responsabilidades. E assumi-las sob o risco de pagar um preço adiante. Talvez nisso se resumisse a mais valiosa das lições que ministrava, pois serviria em qualquer época, lugar ou situação: o respeito pela vida e a consideração pela liberdade de escolha.
Entretanto poucos pensavam como Nickie. Os camaradas de fileira, em especial, nunca. Consideravam-no um anacronismo vivo, uma contradição elaborada sobre sangue e suor, sorriso e compaixão. Admiravam-no somente por sua capacidade de combate, pela destreza manuseando o sabre e, principalmente, pelo sucesso na sedução de damas ou camponesas. A campanha do Cáucaso o indispôs com seus superiores, levando-o a abandonar o convívio das tropas e das batalhas. Seu bom senso indicou-lhe que seu conceito de glória e honra era muito particular, não havendo eco para tais no turbilhão dos conflitos, na frieza do extermínio em massa.

Assim voltou a habitar nas margens do Don inferior, nos rincões gélidos da Ásia Central, local onde nascera e crescera. Pôde novamente assistir ao degelo do rio na primavera. Observar aqueles sólidos blocos que suportavam a passagem de uma tropa partirem-se por inteiro ao serem afagados pelo calor emergente, sem perder a grandiosidade. Desde então fez das florestas e das estepes seu campo de ação, buscando paz, almas e o próprio sustento com a imponência de quem se reconhece parte integrante de um todo. Abandonara o rancor pela compreensão, a frustração pela esperança. E fora numa destas cavalgadas com a liberdade que Nickie lhe encontrara e o adotara, em sua característica intuição da hora exata para intervir.
Ele se encontrava em perigo mortal, cercado por lobos famintos e sem caminho para a fuga. Às suas costas apenas um rio revolto sulcado pelas forças do descongelamento, oferecendo riscos tão grandes quanto às bocas sequiosas dos animais. Enquanto tentava com um tosco pedaço de pau manter tantas mandíbulas afastadas de sua carne, o pensamento voava à procura de um milagre de última hora. Já havia recuado até o limite da margem, confundindo seus gritos de socorro e pavor com o estrondo da correnteza que engolia os derradeiros blocos flutuantes da superfície antes gelada. O suor em seu rosto se confundia com lágrimas que não conseguia evitar. A consciência do fim precoce em região tão longínqua e solitária, a certeza de que seus sonhos não se concretizariam, legaram ao seu olhar a sombra do desencanto perante a fatalidade. Podia sentir o hálito das feras cada vez mais próximo, assim como o rugir caudaloso e nada convidativo na retaguarda...
Quando Nicholas, repentinamente, saltou no interior do círculo mortal que os animais desenharam em torno dele, apenas teve tempo de discernir a rapidez pela qual a bicharada era abatida. Os estampidos secos se sucederam em número de seis e não houve desperdício de munição. O cheiro da pólvora alcançou suas narinas e a visão dos corpos amolecidos desabando ao chão tranquilizou sua mente, embora os nervos ainda chacoalhassem frêmitos pela tensão experimentada. O sorriso confiante dele foi o que de primeiro notou em seu semblante. Não apenas euforia pela façanha realizada, mas satisfação pela vida arrematada da morte no instante derradeiro. Nickie o salvara e continuaria fazendo-o pelos anos vindouros. Iria lapidar tudo, do seu temperamento ao modo de encarar o futuro, além de lhe servir de companhia nos anos de solidão e recolhimento no alojamento, até a façanha seguinte. Uma tranqüilidade relativa e eventualmente adiada pela deliciosa presença de uma mulher, pelo ardor de uma alma feminina. Certo dia o guerreiro surpreendeu-o trazendo uma bela jovem de curvas perfeitas, trajando um corpete bem apertado. Ela segurara sua mão com um sorriso travesso e o levara para o interior de um aposento, acendendo uma lareira dentro dele pelo resto da sua vida. O fogo da iniciação sexual permaneceu aceso, sempre alimentado por novas raparigas.
O bruxulear das chamas o trouxe de volta àquela realidade, saudando ainda o término da tarefa de destaque e curtição das peles dos lobos. As quatro se encontravam prontas e seriam excelentes mantas para vários invernos rigorosos. O balançar de cabeça aprovador de Nicholas era fundamental e acabara de recebê-lo. Agora não havia nada entre eles e podiam se fitar demoradamente, conversando do jeito íntimo, mas incisivo, que era a marca registrada dele ao deflagrar um tópico que elegera importante. O silêncio, ansiando ser quebrado, simulava conspirar com tudo.
- No dia que o resgatei dentre as bestas que o acossavam... – incrível como ele parecia ler seus pensamentos, captara suas lembranças no ar. – Você se colocou numa posição de flerte com a morte. Correu um risco desnecessário e nós sabemos o porquê... Queria o caminho mais fácil, menos indolor... Chegar rápido ao fim... Buscou um desvio... Mas na vida não se deve procurar atalhos... Precisamos vivenciar todas as etapas, acrescentar uma a uma na construção da personalidade... Ao se deparar com o limite tênue entre os dois mundos se conscientizou disso, meu filho, e retornou para o seu lugar, para a sua trajetória primitiva...
Meu filho..." Se pudesse ter convivido com os próprios pais talvez não se metesse naquela enrascada. E provavelmente não depararia com Nicholas. A sensação da laje fria do parapeito da janela do alojamento ainda assombrava sua memória. Na frente de si somente um imenso vazio materializando o convite à queda fatal. No fundo do precipício de concreto urbano a imensa serpente negra do asfalto, uma caudal tortuosa percorrida pela fúria ruidosa de automóveis e suas buzinas. Atrás, a ferocidade de seus demônios interiores, de suas fraquezas mal assimiladas, aguardando sequiosos a decisão de escapar dos monstros e mergulhar no caos.
No entanto o russo o salvara... Esmagara os lobos famintos e ignorara a força selvagem da corrente fatal. Trouxera o milagre da esperança e o percurso da existência. Dera-lhe a mão, amor e compreensão. Além dos ensinamentos cruciais para ir adiante, explorar a própria índole e preencher suas expectativas pessoais.
Aproximou-se da mesma laje, do mesmo parapeito. Pela janela imunda de fuligem enxergava as chaminés das fábricas cuspindo o negrume dos detritos pelas tubulações. O dia era escuro como aquele no qual caçaram animais na taiga. A garoa persistia monótona, repetitiva, débil. O engarrafamento de veículos também, enfatizando o ridículo das situações corriqueiras e inúteis, das atribulações triviais. A fumaça, a chuva e o trânsito não impediriam a vinda de Nickie. O cossaco assumira o papel de seus pais. Povoara sua imaginação de aventuras vibrantes e conselhos ponderados. Ele o criara e fora criado por ele, concebido por sua carência de companheirismo e de afeto. Deixaria de existir hoje porque a criança amedrontada que o chamara, o adolescente desesperançado que suplicara urgentemente sua interferência, descortinara a via correta para a idade adulta. O bom senso clamava então que o liberasse para outros órfãos ou novos necessitados.
- Talvez você se pergunte que utilidade terá todas essas coisas que lhe mostrei durante tantos anos, em seu cotidiano... – observou o gigante, enquanto se acomodava pela última vez na cadeira ao lado da cama. – A temperatura das nascentes, a rebeldia da tormenta, o temperamento do urso e o sabor dos melhores cogumelos... Esses pormenores são sua herança, meu filho... Sua autêntica riqueza, meu pai... Use-as da maneira adequada e entenderá o segredo da naturalidade, da percepção, do que é espontâneo. Nenhum problema se manifestará como insolúvel então. Risco algum será gratuito, infinito ou até mesmo assustador. As experiências nunca escreverão um capítulo derradeiro, mas um prólogo para novas narrativas. Existirá sempre uma saída, pois amará a vida e o prazer de viver acima de tudo... E confiará no futuro, no curso dos acontecimentos e, especialmente, na felicidade.
“Adeus, Nicholas”, murmurou, nos segundos que o corpanzil precisou empregar para se erguer resoluto, menear a cabeça, caminhar uns poucos passos e dissolver-se através da parede que o separava do ambiente exterior, do universo infinito. A visão marejada bastou para acompanhar ele se afastando e sumindo em um horizonte que parecia todo encomendado sob medida para a ocasião, gerando uma solenidade particular. Ele era imortal, sobreviveria em qualquer circunstância.
Surpreendeu-se por sua reação não conter tristeza ao vê-lo partir. Ao invés, uma doce resignação em forma de saudade. A mesma de quem lembra de um brinquedo da infância ou um namoro da juventude. Com a diferença que conseguia visualizá-la à perfeição nesse exato momento, medindo seu calor, sua consistência, seu comportamento e seu sabor.
Nascentes, tormentas, ursos e cogumelos... Sim, as lições do camarada Serpinsky, que ganhava mundo diante de seus olhos e ficava gravado em seu coração eternamente. Afinal, era o mesmo Nickie que um dia lhe estendeu a mão, espantou seus temores e despertou sua confiança, fazendo de uma criança algo mais que um homem, um ser humano.
E que hoje lhe dera adeus pela última vez.


Um comentário:

E Bernal disse...

Acabei de fazer um passeio especial em uma obra de um grande escritor por excelência. Estou comovida e emocionada. Tudo que ele toca com palavras transforma em Midas. Por que o tempo me privou de não tê-lo conhecido muito antes? Seu instrumento de trabalho é, sem dúvida, a pena, e sua arte um dom.

E nesse conto que acabei de ler está muito mais que comprovado o quão brilhante literato é. Brinda o mundo e todos os leitores com uma história maravilhosa, formidável. Esteve tão distante, muito longe do seu povo; teve que atravessar meio mundo para nos mostrar uma outra cultura, outro povo a sua criação tão bela.

Só prova que para um escritor especial não existe fronteira. E cada dia mais a minha admiração por ele só aumenta. O nome desse escritor? Roberto Souza. Adorei fazer essa viagem! Parabéns.