quarta-feira, 23 de abril de 2008

Amor e Redenção (Conto)


Era uma vez...
Essa é a história de 16 e 17.
Nossos personagens não têm nome, pois vivem sob tratamento numa instituição especial, onde isso pouco importa. A doença que os aflige também não possui nome, apesar disso ter muita importância em lugares assim. Mas nenhum pesquisador ou cientista até hoje a batizou com aquele emaranhado hermético de termos em latim. Estão confusos sobre a moléstia, jamais se viu um caso similar. Para sua grande surpresa, no mesmo dia surgiram, simultaneamente, dois pacientes apresentando aqueles estranhos e fenomenais sintomas. O último detalhe que se preocupariam, portanto, seria com seus respectivos nomes.
Infelizmente, constataremos adiante que os principais interessados não podem ajudar. São incapazes de dizer como se chamam. Chegaram aqui após uma série de paradas e peregrinações, percorrendo uma longa linha de estabelecimentos do gênero. Onde o caráter excepcional do seu problema passou despercebido, classificado muitíssimo aquém de sua verdadeira extensão. Sem parentes ou amigos que insistissem junto às autoridades médicas, dependeram da eventualidade de um exame feito acidentalmente para surpreender os plantonistas.
Assim, 16, um homem, e 17, uma mulher, apenas carregam num crachá o número de seus quartos adjacentes. O destino demorou décadas em reuni-los, mas enfim cumpriu seu papel. Viveram a maior parte do tempo afastados de tudo e de todos, encerrados em ambientes de solidão e penumbra. Ambos ainda são jovens, em torno dos 30 anos, e o mal que os acomete acompanha-os desde o nascimento. Segundo o boletim de entrada, trata-se de uma variação original do autismo, embora certas peculiaridades impeçam de classificá-los assim. Com a palavra, o diretor da clínica, cujos nomes omitiremos, sendo irrelevantes no curso dessa narrativa:
- O autismo é um distúrbio agudo no qual, desde a mais tenra infância, o indivíduo não consegue desenvolver relações sociais normais com as pessoas e o mundo ao redor, preferindo o silêncio e se comportando de modo repetitivo na sua alienação, através de certos atos e rituais. Sua causa continua um mistério. É uma patologia diferente do retardo mental, pois não existe uma lesão.
- E no que afinal os sintomas de 16 e 17 os impedem de serem considerados autistas?
- Apesar da sintomática deles conter todas estas características existem outras que nunca lidamos... É complicado de explicar aos leigos... No ponto de partida da moléstia podemos considerá-los autistas típicos. À medida que pesquisamos seu córtex e o encéfalo somos obrigados a retroceder no conceito, pois descobrimos que, de algum modo, existe uma atividade subconsciente excêntrica, de metodologia normal, auferida por modernos e sofisticados equipamentos de mapeamento cerebral.
- Como assim? O que significa isso?
- Que no seu subconsciente percebem a vida em volta, igual a qualquer um de nós. Raciocinam razoavelmente, desejam coisas materiais, tiram conclusões, têm vontades naturais. Apenas não conseguem a partir daí comunicá-las ou concretizá-las como eu e você. A limitação da doença é uma barreira que os torna prisioneiros do próprio corpo físico. Nossos esforços, até hoje infrutíferos, concorrem no sentido de procurar um modo de driblar ou saltar este obstáculo. Seja através da ministração de drogas químicas ou terapias de estimulação dos sentidos. Tudo é muito tênue e sutil, os resultados obtidos se revelaram nulos, sem qualquer avanço mínimo ou perspectiva de superação...
Agora conhecem algo mais sobre 16 e 17. O que não significa tanto, pois ninguém sabe o que se passa no seu interior, quais as expectativas e os sonhos que regem o seu íntimo. A batalha entre seus anjos e demônios permanece oculta, soterrada sob forças inexplicáveis, nunca combatidas anteriormente. A equipe responsável pelo delicado tratamento, por razões próprias, sempre providenciou para que jamais se encontrassem ou dividissem uma sala de atendimento. Estavam instalados em quartos vizinhos, todavia a divisão de horários tornava impossível um encontro ou simples cruzamento casual nos corredores. Aos olhares individuais, eles ignoravam a existência mútua.
Certo dia, entretanto, alguém cometeu um grave erro. Se foi o enfermeiro responsável por ele ou a ajudante encarregada dela, persiste ainda a discussão. O fato é que, numa manhã distante, eles foram sentados lado a lado na seção de fisioterapia motora. Recentemente, 16 apresentava notáveis progressos na utilização das mãos e das pernas. Porém, sem controle algum das reações ou vestígio de vontade lógica, além do ritual obsessivo de apertar uma bolinha de espuma, deixá-la cair e em seguida juntá-la, somente para repetir o processo horas a fio. E se lhe tomassem o objeto quando estava no chão, cessava a atividade como sequer a houvesse iniciado. Sem esboçar as menores interjeições de desagrado ou expressões de súplica.
Embora bastante próximos naquele recinto, as reações de 16 e 17 eram de absoluta falta de interesse um pelo outro, numa total passividade ao ambiente. Conservando uma postura rígida ao extremo, desprovida de qualquer sinal de vivacidade, parecia que os camisolões hospitalares trajados os tornavam invisíveis. Quem os visse julgaria que dois belos manequins de vitrine haviam sido despachados noutro endereço, pois sua aparência atraente e asseada se configurava a rigor asséptica e neutra. Ele começou o seu habitual esquema de aperta, larga e apanha bolinha de espuma. Os olhos opacos e vidrados, mexidos de cima para baixo, e vice-e-versa, numa atitude mecânica, não despertavam qualquer reação nela, assim como não provocaria nele se os papéis ficassem invertidos.
Num dado momento, em uma das quedas, a bolinha rolou mansamente na direção do pé direito de 17. Ele se inclinou automaticamente na sua direção para apanhá-la. Ao erguer o corpo de volta à posição estática que mantinha, roçou levemente na sua coxa e no seu braço.
- O que foi isso, esse tremor? – indagou o subconsciente dele.
- Que arrepio estranho e gostoso! – constatou o subconsciente dela.
- Quero fazer de novo... Tocar nela outra vez...
- Por que ele não repete aquele gesto?
Aquilo não estava ao alcance do desejo dele ou da vontade dela, por maiores tais que fossem, retomar a maravilhosa experiência. Exceto se a bolinha realizasse por acaso o mesmo trajeto, obrigando-o a encostar-se nela, involuntariamente, quando se abaixasse para recolhê-la. Suas mentes agora fervilhavam com o inusitado calor captado pelo contato de seus corpos, mas não havia caminho para expressar a sensação.
Após uma drástica reprimenda do comando do setor nos funcionários desatentos, 16 e 17 foram prontamente reconduzidos aos seus quartos, recuperando assim o tempo perdido no equívoco matinal, com a imediata antecipação da terapia áudio-visual.
- Quero ficar perto dela!
- Não me afastem dele!
- Nunca a vi antes!
- Desejo vê-lo sempre!
A única ocorrência que os mantinha próximos naquele instante, apesar de isolados nos seus aposentos, além da doce lembrança daquela impressão deliciosa, era um aparelho de televisão exibindo o mesmo vídeo. O diretor da clínica acreditava na estimulação sensorial indireta e na prescrição medicamentosa como fonte de uma reação neurológica que os libertasse da disfunção. O monitor exibia um filme obviamente romântico, em seu ponto culminante: ao crepúsculo, à beira de um lago, um casal, reclinado lado a lado, abraçava-se de forma intensa, a seguir se beijando apaixonadamente, fisionomias extasiadas.
- Deve ser isso que ele me causou!
- Aquele delicioso roçar nela...
A música crescia no encerramento e podia ser escutada nos corredores, onde num canto reservado, o enfermeiro e a encarregada causadores do indesejável encontro de 16 e 17 discutiam acaloradamente.
- Jamais me apoiou, querido. E nas horas de crise, invariavelmente, culpa a mim. Às quartas-feiras, o horário da manhã é sempre dela. Há um mês nós estabelecemos de comum acordo o cronograma. Você errou e nem comigo admite isso.
- Tudo bem, não nego... Mas se assumir o engano estou perto do olho da rua, Noelle. A melhor solução está em não mencionarmos uma divisão prévia. A desculpa da falha de comunicação na véspera livrará nossas caras. Não despedirão dois de uma mesma tacada. Existe uma carência de profissionais especializados.
- O problema é outro, já concordei com a justificativa... Não há mais diálogo algum entre nós. Nem consideração. Falamos línguas diferentes. Se alguém precisasse pagar pelo engano, seu egoísmo me sacrificaria sem pestanejar...
Culpas ou incongruências deixadas à parte, o exame de atividade cerebral realizado depois do almoço em 16 e 17 resultou alarmante. Os níveis atingiram subitamente índices acima do normal, numa freqüência inédita nos anais médicos. A quantidade de calor medida indicava um processo de cozimento mental, na ausência de melhor classificação. Os organismos do casal também registraram um preocupante aumento de temperatura, obrigando a imersão em banheira gelada.
- Qual a explicação, doutor? A probabilidade de ambos sofrerem juntos os mesmos revezes seria praticamente nula...
- Respostas... Se as tivéssemos disponíveis como imagina a Psiquiatria Clínica viraria uma ciência exata. Talvez algo maior influencie a situação. Esse caso sempre me perturbou. Como se a humanidade saltasse um passo à frente na sua evolução.
- Sua resposta soa mais mística do que científica... Em que dois indivíduos tão limitados representariam um novo e revolucionário estágio no desenvolvimento humano?
- Sua pergunta soa mais acadêmica do que jornalística. Uma manchete cheia de sensacionalismo seria mais adequada do que seu descrédito. E a exclusividade da história sempre lhe pertenceu. Conto que seja bem generoso conosco na matéria.
- Fique tranqüilo. Vou saber aproveitá-la e serei grato a vocês... O que decidiram afinal?
- Vamos separar o estranho casal e encaminhá-los ainda hoje para instituições distantes. Não posso desconsiderar o fato concreto que, na única oportunidade que estiveram perto, desencadearam dentro de si uma reação poderosa. A primeira medida para entender o significado disso constitui em mantê-los afastados, puxando-os aos níveis clínicos padrões. Desconhecemos aquilo com o que lidamos. As perspectivas podem ser anárquicas ou catastróficas. Ao entardecer já terão partido daqui e tudo se aquietará para as partes envolvidas.
- O senhor não exagera? A resposta não é menos complexa? Além disso, abriu mão de realizar um estudo único na sua área?
- Exagero é ficar encerrado dias num laboratório de testes sem retornar para casa. O meu casamento está desmoronando. Minha esposa e eu não nos falamos mais sequer nas poucas vezes que sentamos à mesa. Parece que temos uma mordaça na boca e no coração. Nos amamos e somos incapazes de externar esse afeto. Abro mão desse estudo único, como afirmou, mas não da única mulher que desejei viver.
A ordem fora energicamente transmitida nos alto falantes: os pacientes 16 e 17 deveriam ser logo preparados para uma viagem que os levaria ao distanciamento eterno e seguro. Seguiriam em ambulâncias diferentes, às 18 horas, rumo ao seu próximo destino. Aguardariam na sala de espera especial da clínica, sentados cada qual frente uma mesa. Um par de cubículos divididos por uma grade que possibilitava a visão mútua, mas não o contato físico. Os enfermeiros ainda providenciaram uma jarra e um copo feitos de metal, para evitar acidentes quando sentissem sede. Um par de canetas hidrocor e blocos de desenhar para passatempo eram de praxe, apesar de inúteis aos doentes daquela categoria.
O estado geral deles estabilizara graças a uma dose química cavalar que forçara a queda da temperatura e cujos fortes efeitos colaterais também reduziam a atividade acelerada do cérebro. Uma medida emergencial e perigosa, mas que viabilizava seu deslocamento, porque o diretor e a cúpula do estabelecimento não cogitavam o risco de perdê-los enquanto responsáveis.
No corredor, contudo, ao se cruzarem rumo à sala de espera, 16 e 17 tiveram uma reação deveras extraordinária. Arregalando os olhos em total desespero, pareceram se devorar e implorar pelo outro, grunhindo palavras que ninguém compreendera. Chegaram até a balançar os corpos trôpegos, como aspirassem se libertar, inutilmente. A própria catatonia provocada pela sedação e a inércia natural da doença minaram suas pretensões aparentes, embora fosse impensável aos internos considerar isso um desejo consciente. Eles eram incapazes de atos e iniciativas deste porte, um ponto indiscutível.
- Quero ficar com você, querida...
- Sua presença me deixa viva!
- Será que você pensa igual?
- Você entende o que sinto?
- Tem idéia desse sentimento, 17?
- Eu te adoro, 16!
Superando as adversidades do sonífero e da moléstia, 16 se lembrou, na ânsia de declarar seus sentimentos para ela, da cena do filme romântico exibido mais cedo. Num gesto assombroso, que paralisou a todos que ali circulavam, demonstrou o sucesso da terapia motora diária. Apressado pela luz baixa do crepúsculo, que indicava a vinda da hora do adeus, agarrou o copo de metal e bateu-o fortemente na madeira da mesa, deformando-a. Encheu a depressão com a água da jarra e desenhou no dedo indicador direito, com a caneta pilot, dois olhos, um nariz e uma boca, encimados por um cabelo curto. Fez o mesmo na esquerda, com exceção do adorno de uma cabeleira feminina. Encarando 17 ternamente, inclinou um dedo pintado na direção do outro, encostando-os, fazendo a simulação do longo e ardoroso beijo, às margens do lago. O largo sorriso que preencheu sua face abatida e serena enfeitou também a dela, como reflexos no espelho ao entardecer.
Aqui vamos encerrando nossa história. Poderíamos ter contado a de Romeu e Julieta, Tristão e Isolda ou Abelardo e Heloísa. No entanto, preferimos narrar a de 16 e 17, torcendo que tenham compartilhado deste prazer. Quanto aos nossos apaixonados, no cair daquela tarde, após a explosão da emoção e exaustão da mente, prosseguiram separadamente sua trajetória, afastados pela intolerância humana. E, amplamente convictos na paz de seu universo interior, sabiam que se reencontrariam inevitavelmente, fundindo-se num mundo inacessível aos que não sonham ou proíbem sonhar, numa região cuja chave de acesso é o amor assumido e a redenção obtida.
Há muito tempo eles vivem lá.
Era uma vez...

2 comentários:

Bbl disse...

Impressionante!!!!!A maneira como vc (des)escreve o sentimento dos "personagens", passa ao leitor, a impressão de que vc viveu/vive esse momento. Q vc ja sentiu arder na "carne"...mas sei que não é o caso!
Bárbaro,fantástico.Publique!!! A vida é uma só!!!!!Não temos nada a perder...
Abraços
Bebel

Letícia Reis disse...

eeei querido do meu coração!

Lindoooo!
Vc é um amorzão só!!
Que maravlha isso.

Muito te ter por aqui, e poder conversar sempre nessa linguagem.

Te amo.