domingo, 20 de abril de 2008

O Bom Vizinho (Conto)


Todas as manhãs, exatamente às seis horas, o velho Lars descia com o saco de lixo rumo à calçada. Era uma tarefa cansativa para aquele corpo surrado. Entretanto, segundo fontes confiáveis, nunca deixou de fazê-lo durante os últimos quinze anos. Apesar da idade avançada possuía uma saúde de ferro. Desconhecia gripes ou males súbitos. Ignorava a friagem, o calor excessivo ou mesmo a atmosfera úmida. Qualquer um que tivesse o sono mais leve, ou o hábito de madrugar, ouvia diariamente aquele arrastar monótono pelo corredor e seguindo pela escada abaixo. Com o passar do tempo alguns se indagavam como aquele ancião solitário podia produzir tantas sobras, acumular tantos restos. Não que se importassem muito em descobrir hábitos do inofensivo vizinho. Apenas uma curiosidade momentânea do espírito. Igual à solução de uma charada ou o arremate em um diagrama de palavras cruzadas. Talvez para saciar inutilidades ele tivesse vivido por tantos anos.
Naquela manhã não houve sinal do pacato Lars arrastando seu fardo. Nem todos perceberam a ausência. Era domingo. A grande maioria aproveitava para se levantar bem tarde, quase na hora do almoço. Eu estava acordado porque mal conseguira pegar no sono. A noite em claro fizera-me agarrar a qualquer indício de vida ao meu redor. Sons de buzina, murmúrios distantes, discussão de amantes, lamúrias de bêbados, roedores famintos, bater de asas noturnas. As redondezas eram pródigas em oferecer ao anoitecer seu leque de variedades: movimento de trânsito, inferninhos, encontros, desencontros, bares, ratos e morcegos. O suficiente para que uma aventura terminasse em tragédia ou levasse os participantes para a cama mais próxima. Típica zona de caça, abatedouro de corpos ansiosos pelo prazer físico. Em locais assim, o sexo podia ser apenas uma isca, com o caçador levando a pior. O final da madrugada testemunhava gente enroscada terminando uma trepada num canto escuro. Ou cadáveres torcidos que jamais iriam transar novamente, aliviados das suas posses ao invés das roupas. Tudo assistido por uma fauna noturna inusitada. Bicho homem e animais nojentos de toda espécie. Um zoológico aberto em todas as direções. Cada predador lutando pela presa desejada.
Lugar perfeito para a cabeça de porco onde me enfurnara. Devem ter ouvido falar de histórias inacreditáveis sobre as manias de ricos excêntricos. Garanto-lhes que às relativas aos pobres excêntricos são incomparavelmente mais bizarras. O proprietário da construção, que ocupava o quinto andar, vivia envolvido em práticas místicas e crenças esotéricas. Estas lhe trouxeram confusão de idéias e caos financeiro, pois empregava o que auferia dos aluguéis em figas, búzios, baralhos de tarô, incensos, velas, cristais, materiais de magia em geral e livros de ocultismo. Apresentava-se como um iniciado em doutrinas secretas, percebendo cruciais indícios divinos nos fatos corriqueiros do cotidiano. Pretendia interpretar fielmente sinais e nos perseguia inquirindo sobre aquilo que tínhamos sonhado na véspera. Outros residentes completavam o leque, cada qual com sua peculiaridade. Havia a soprano do terceiro andar, incapaz de partir um cálice com seus agudos, porém uma diva absoluta na destruição dos tímpanos alheios. No mesmo pavimento, um completo fanático por educação física procurava modelar o corpo incessantemente, maltratando o piso com suas piruetas. Acima, na unidade contígua ao do velhinho, um casal de homossexuais que ganhava a vida como drag-queens numa boate fajuta do bairro, berravam repetidamente que nunca mais aceitariam dividir o palco fazendo juntas o mesmo número. E assim por diante. O curioso é que todas essas figuras tornavam-se identificáveis pelo som que produziam, pelo vestígio sonoro ou barulho que transmitiam regularmente a despeito da distância, ultrapassando paredes, portas e andares.
Não pareciam mesmo gente de verdade. Lembravam personagens de antigos e batidos programas humorísticos. Aqueles tipos clichês, tradicionais, que arrancam gargalhadas fáceis repetindo anedotas similares. Talvez não devesse ser tão rigoroso ao julgá-los, pois não sabia se me enxergavam igualmente. O nascer do sol vinha se tornando bastante constrangedor, um incômodo que tirava qualquer capacidade de bom raciocínio ou julgamento. Os bons vizinhos de cada dia não tinham culpa da dor que a aurora proporcionava. Seus ruídos, surrados ou originais, vinham assim me mantendo vivo, alimentavam de algum modo meu espírito.
Existiam ainda tipos mais assustadores: aqueles sem particularidade alguma, desprovidos de loucura ou desequilíbrio. Não conseguia distinguir um do outro, só produziam silêncio e mesmice. Desfilavam suas fisionomias anêmicas e despojadas de vivacidade sob absoluta inexpressividade. Deviam ser gente boa num certo nível. Mas não para mim. Eram incapazes de aguçar meus sentidos. Intercalavam-se aos quartos vazios em igual quantidade. No início da noite já estavam recolhidos nos seus, escondendo-se da própria sombra. Apagavam a luz, como já haviam desligado a si mesmos. O clique do interruptor valia como uma despedida surda, um estalido solitário. Felizmente, outros ali colaboravam para a minha vigília.
Assim, aguardando o curso natural dos ruídos esperei a contribuição de Lars. Um minuto depois das seis, já sabia que ela não viria. O velhote tinha uma pontualidade britânica e assombrosa. Conservava uma disciplina espartana. Não se deixava ver a troco de nada, era reservado em excesso. Sumia a maior parte do dia fazendo sabe-se lá o que. O quarto permanecia em silêncio absoluto. Portanto saía de casa, embora ninguém o visse partir. À noite, quando vez ou outra se cruzava com ele no corredor ou no saguão, esboçava um sorriso simpático e dirigia algumas poucas palavras de cortesia. Muito comedido e tímido. Todavia confiável, afável. Seus gestos estudados denunciavam a tentativa de autocontrole acima de tudo. Um recurso de camuflagem. De resultado infrutífero. Transmitia uma mágoa íntima, um perceptível desconforto, sob a proteção de uma barreira invisível que repelia qualquer um além do estágio das amenidades. No mais, nada que chamasse atenção. Trajes simples, leveza no andar, uma absoluta falta de pressa no semblante. Uma criatura de porte médio e idade avançada, o que tornava seu esforço cotidiano de puxar a sacola de lixo pelo longo corredor e descê-la três lances até a portaria, algo digno de menção.
Meu jeito era completamente diferente. Displicente, deixava o lixo se acumulando para poupar viagens. Amontoava a pia de latas usadas e garrafas descartáveis. A pequena lixeira jogada ao lado do fogareiro abarrotava-se de caixas de papelão, restos de alimentos e plásticos amarrotados. Pura preguiça. Minha energia se encontrava crítica ao final do dia. E de manhã a última coisa que me preocupava a cabeça seria a limpeza do ambiente. Assim, empurrava aquilo sempre com a barriga. Tocava como podia até o momento de tomar vergonha. Reservava a rigor os domingos para desempenhar a tarefa. Como dormira mal certamente adiaria essa obrigação. Talvez deixasse para amanhã. Ou depois. Ou no domingo seguinte. Entretanto, não se tratava realmente de uma prioridade. Quando fosse possível acabaria acontecendo e tudo então recomeçaria.
A coisa estaria ainda muito pior se me alimentasse com regularidade. Porém meu relógio biológico andava todo desarranjado. Não por viver como um solteirão convicto ou um homem solitário. O cheiro e o gosto da comida vinham me deixando enjoado, indiferente. Sentia a boca pastosa, pegajosa, sem mencionar que trocava a noite pelo dia seguidamente. Meus dentes andavam sensíveis, as gengivas latejavam e a penúria me impedia de procurar tratamento. Nas horas avançadas ficava alerta, sentia-me cheio de vitalidade, embora uma estranha compulsão de procurar algo se fizesse sempre presente. Assim, naturalmente, detectava os ruídos de qualquer categoria ao redor.
As batidas na porta forçaram-me a levantar. Estava vestido igual na véspera. Não havia roupa a trocar mesmo. As roupas usadas, suadas e amassadas acumulavam-se em volta da cama, também ansiando por sua vez de receber minha atenção. Além do mais, deitara do jeito que chegara da rua. Não me passou pela cabeça que fosse estranho alguém chamar tão cedo. O fato dissolvia a monotonia.
- Ah, que bom que não o acordei! Já está até vestido. Não sei se você percebeu. O velhinho não desceu com o lixo hoje. Será que adoeceu? Tadinho!
Ela nunca cogitou que eu podia estar dormindo ou descansando com a intenção de espantar uma tremenda enxaqueca. Violar a vida alheia era a atitude mais normal do mundo. Sua gordura enchia os olhos. Balançava o corpanzil como uma sanfona. Não parava quieta. Ia da esquerda para a direita, voltava, deixava qualquer sujeito enjoado. Costumava ser precavida na sua gula. Ao menos, não filava comida alheia. Trazia consigo um volumoso pedaço de sanduíche, que felizmente nem pensou em oferecer. O bolso do roupão escondia o que parecia um grande pacote de biscoitos. Acabou de mastigar outro naco e recomeçou logo suas considerações.
- Ele anda tão pálido. Na certa não se alimenta direito. Já ofereci duas ou três vezes de lhe fazer um lanche e sempre recusou. Um homem solitário, na idade dele, às vezes se atrapalha com as necessidades. Vira uma criança indefesa. Os parentes, normalmente, pouco ligam. Restam os bons vizinhos, os de coração.
Entrou sem qualquer cerimônia. Abriu toda afoita o invólucro das bolachas já bem instalada na única cadeira livre. Devorou três sem respirar e só aí me estendeu o pacote. Considerava que o biscoito era o passaporte para me invadir sem exibir o mínimo constrangimento. Recusei a oferta com um gesto brusco e sentei numa cadeira onde repousavam jornais e revistas antigos. Se ela pedisse algo líquido para acompanhar a comilança perderia seu valiosíssimo tempo. A geladeira andava tão vazia quanto à embalagem dela ia se tornando.
- Minha filha, por exemplo... A morena alta que despenca aqui de dois em dois meses. Sim, porque aquilo não é visita. É um acidente de percurso. Acha que ela se preocupa como eu vivo entre uma vinda e outra?
- Sua filha parece ser uma boa moça, senhora. Atualmente é difícil dispor de uma brecha nos compromissos. Todos ajeitam as coisas como podem.
- Não estou me queixando da vida, rapaz. Pelo menos alguém ainda me procura ou bate na minha porta. Ao contrário do que ocorre com o velho Lars. Vocês jovens acham isso bobagem, claro. Utilizam a solidão como parte do charme.
Contribuiu para a urgência de uma faxina sacudindo os farelos da roupa e deixando-os ir ao chão. Nem se preocupou em recolher a sujeira antes ou depois. A quitinete era uma bagunça total e seria ridículo pretender protestar. Revirei os olhos para o teto, disparado a parte mais limpa do cômodo. Minha visão dorminhoca de raios-X esforçou-se por penetrar nas vigas e no concreto localizando Lars em seu pequeno mundo, sem sucesso. Ela aguçara minha curiosidade, porém a sonolência se aproximava rapidamente e a disposição estava comprometida. Não chegava a enxergar urgência alguma na novidade surpreendente. Aquele ancião tinha o direito e o dever de uma única vez evitar se repetir, mormente em tamanha banalidade.
- Ora, é apenas um velhinho inofensivo. A gente se acostuma com eles. Fazem parte do cenário. Nas poucas oportunidades que esbarrei nele aqui no prédio o achei muito legal. Nunca deixou de sorrir. No início achei que era afetado. Mas na verdade revelava uma certa complacência. Como se entendesse a gente e os nossos problemas imediatamente. Resultado da experiência. Deve ter vivido e visto um bocado de coisa. A senhora age com humanidade ao demonstrar sua preocupação. Não creio ter acontecido nada demais. Encheu-se da rotina e decidiu jogá-la para o alto. Tem até esse dever, como todo mortal. Se pudesse faria como ele.
A gorducha suspirou. Satisfeita por devorar a guloseima encarava a realidade cheia de expectativa e compreensão. Deixara de balançar o corpo, aquietara-se. Olhou-me docemente, buscando pelas palavras certas.
- Vive aqui somente há dois anos, Zack. Eu estou ao lado deve ter uma década. Só perco para o senhorio e o velho Lars. Ele chegou aqui faz quinze anos. O doutor me contou a estranheza que sentiu ao vê-lo a primeira vez. De como uma nuvem de melancolia parecia cercá-lo. Tristeza nos gestos, na atitude, como alguém fadado a um destino ingrato. Pouquíssima bagagem, uns apetrechos muito dos esquisitos e mistério de sobra. Tipo calado, apesar de educado e cortês. Nunca se soube do passado dele. Onde cresceu ou viveu. Se foi casado ou teve filhos. Não recebe visitas jamais. Ninguém pergunta sobre ele ou o procura. Como se houvesse caído sobre nós, remetido de um lugar longínquo ou de uma época distante. Pena...
A descrição captara minha atenção. Ela falava com genuíno interesse e uma pontinha de paixão sutil. Ou vice-e-versa. Acima de tudo, aquela robusta e insaciável senhora mastigava também pormenores da vida alheia e conseguira abrir meu apetite. Imaginei rapidamente possíveis aspectos da biografia do velhote. Um ricaço arruinado que conservara a educação de berço e procurava escondê-la para não revelar sua trágica e definitiva derrocada... Um cirurgião habilidoso que vacilara fatalmente numa mesa de operação e acabara expulso da profissão, cujas finas luvas ocultando as suas mãos eram uma amarga reminiscência... Um criminoso, um antigo condenado da justiça que quitara sua longa pena e padecia agora do contato perdido com o mundo... Ora, o terreno era fértil às especulações. Estava diante de um perdigueiro de respeito, que me iniciara na arte de farejar as coisas dos outros.
- O que se pode fazer, dona?
- Pelo que passou, nada. Hoje nos resta certificar se ele precisa de ajuda. Um comportamento de anos e anos não é interrompido sem um bom motivo. O silêncio ao amanhecer foi estarrecedor. Contava com aquele ruído e ele não veio.
Menos mal, eu não era o único maníaco no prédio.
- Sugere batermos na porta dele? Na cara e na coragem?
- O máximo que pode acontecer, menino, é sermos escorraçados. Pelo menos saberemos que ele está vivo. Teremos cumprido nossa parte. Agido como vizinhos de verdade, em solidariedade. Daqueles que não se transformaram em números numa porta.
- Simpatizo com o velhote. Só acho delicado invadir sua privacidade.
- Invasão é uma palavra um pouco forte, Zack. Não iremos forçar a entrada. Tentaremos estabelecer contato. Obter um sinal de vida dele. Checar se está bem ou precisa de auxílio. Ele não é nenhum bicho-papão. Compreenderá a boa intenção. Ficará lisonjeado, até mesmo aliviado, ao constatar que alguém pensa nele. Demonstrar preocupação e atenção é outra maneira de transmitir amor.
Concordei logo com a cabeça. Não havia o que retrucar. A senhora Marino passava o dia se empanturrando de guloseimas. Todo aquele açúcar cristalizara em seu organismo induzindo uma viúva de meia-idade às boas ações. Ela era uma pessoa carente, desajeitada e sem desconfiômetro. Batia na porta nos horários impróprios, arquitetava missões de resgate a velhinhos solitários, zelava pela conservação do lugar nas reuniões de condomínio. Acumulara um vasto catálogo de informações sobre os moradores, fazendo sabe-se lá que uso prático de tanta baboseira e insignificância.
No corredor, tropeçamos de imediato no terceiro heróico morador do nosso andar, o jovem Ericsson. Vinha de uma óbvia noitada de farra, encharcado do aroma de perfume barato. Trôpego, aproveitou para apoiar-se em mim na tentativa de recompor-se. A fisionomia grave da senhora Marino fulminava-o com uma censura muda. Mas o rapaz era gente boa. Esperto e inofensivo. Trabalhava como técnico em um laboratório de análises químicas no Centro. Um tipo bastante observador, arguto, em função da profissão. Já o vira especular sobre indícios que passariam em branco à maioria. Sabia juntar peças e costurar fios soltos. Naquele ambiente sórdido, desprovido de charme, contribuía com uma nota de sofisticação através do raciocínio e da lógica. Já resolvera os mais prosaicos enigmas do cotidiano com uma clarividência capaz de tirar nosso senhorio de seu ponto de equilíbrio. Certa vez encontrara, sem se deslocar, a chave perdida do painel de força, reconstituindo apenas os passos do proprietário desde a hora do café da manhã. Vira seus dedos gordos, lambuzados de margarina, fartamente impregnados com uma espécie de farelo escuro. Ao saber que este detestava pão preto, concluiu ser aquilo na verdade limalha de ferro e que havia guardado por acidente a chave no pote de manteiga. Por essas e outras, antes que ela abrisse a boca para denunciar os malefícios da boêmia desregrada, calou-a com um comentário típico de sua percepção sobrenatural.
- O saco de lixo do velhote não estava na calçada. Adoeceu?
- É o que nós pretendemos verificar, mocinho – retrucou friamente a dona. – Saiba que existem inúmeras maneiras de se adoecer. Uma vida pouco regrada, devassidão constante e tendências notívagas são fórmulas para comprometer a saúde e destruir o corpo. Muito me admira que desconheça que não só de badalações vive um homem.
- Assino embaixo, senhora. Meus pais sempre diziam isso.
- Pelo jeito tapou os ouvidos sempre que falavam.
- Não! As orelhas estavam desimpedidas. A música é que tocava no volume máximo e não dava a menor chance.
- Não gosto de deboches, rapaz. Posso passar sem eles. O senhor continua com o mau hábito de tocar sua música bem alta, aliás. Nos horários mais impróprios. Dificulta que seus vizinhos descansem espalhando aqueles grunhidos típicos de roqueiros alcoolizados e drogados. Ninguém faz questão de compartilhar dos seus gostos duvidosos. Use um fone de ouvido ou toque seu som mais baixo.
- Prometo. Se a madame garantir também que agora assistirá às suas fitinhas pornográficas sem fazer tanto estardalhaço. Minha sobrinha adolescente me visitou na semana passada e foi constrangedor. Os gemidos foram de ensurdecer. Ninguém se excita com tal sinfonia. Use uma mordaça ou escolha vídeos infantis.
O cara pegou pesado. Fiquei surpreso com a aspereza. Ele trouxera à tona um fato verídico: a mulher costumava mesmo se divertir fazendo aquilo. Nos horários que lhe apetecesse, com freqüência e intensidade. Curioso como tudo hoje continuava se referindo aos sons peculiares: agora acrescentávamos as melodias estrondosas e os rugidos eróticos na lista. Qual seria o meu, afinal? Ou me enquadraria na asséptica categoria dos seres silenciosos, livre de classificação? Ora, nada me tornava tão especial no pardieiro. Cabia aos demais identificar meu ruído.
A senhora Marino encarou-o com uma expressão de raiva contida. Não pretendeu negar a verdade, pois sabia que não havia como escondê-la. Talvez incrementasse a intensidade de suas fantasias sexuais que os vizinhos machos participassem do seu pequeno show. O que ocorria na verdade. Impossível não tomar conhecimento de tanta animação solitária. Duas vezes me masturbara acompanhando a sessão à distância. Ericsson certamente já entrara nessa também. Porém era uma particularidade da dona e ela pretendia que permanecesse assim. O silêncio prosseguiu constrangedor num amanhecer tomado de barulhos e seus significados. Fiquei recolhido, aguardando um som salvador.
- Reunião matinal de condomínio?
O guru soara o gongo. Nosso senhorio tinha a notável capacidade de materializar-se num passe de mágica, como que vindo do nada. Esta qualidade sim constituía um real prodígio esotérico, ao contrário das baboseiras que manipulava ou pretendia controlar. Chegara trajando sua longa túnica branca de dormir. Dizia ser um paramento para iniciados em alta magia, um complemento de seu espírito liberto ao percorrer as esferas superiores do sono. Ele sesteava um bocado. O estrondo de seu ronco nas primeiras horas da noite invadia todos os cantos do pulgueiro. Sua trajetória pelo nirvana custava à sanidade dos que ansiavam por silêncio e paz.
Era irônica a referência ao encontro de moradores. Não havia mais algum ali. Pagava-se barato por nada. Ou caro por tudo. Dependia da postura otimista ou pessimista de cada um. As paredes mulambentas viviam carecas e há muito não recebiam um tônico revigorante. A umidade nas estruturas solitárias exalava o cheiro do mofo e se casava feliz com a poeira dos corredores abandonados à própria sorte. A grana que entrava era totalmente destinada às práticas cretinas do proprietário e bancava sua folga de cochilar horas a fio. Corrigindo, para não melindrá-lo: a sua crescente percepção dos registros cósmicos e o desenvolvimento dos seus poderes latentes.
- Se existisse ainda tal tipo de coisa por aqui, senhor...
- Kalhani, senhora Marino. Simplesmente Kalhani. Nem senhor, nem doutor. Apenas meu nome de humilde postulante na congregação do Crepúsculo Reluzente. A sagrada e milenar ordem dos Cavaleiros da Luminosidade Oriental. A seu serviço.
- Tudo bem... Esse troço aí, que seja... Mas o prédio está um horror. Imundo dentro, caquético fora. Vai ver é a razão pela qual minha filha nem aparece mais. Trata-se de uma moça fina, bem casada, desacostumada da falta de limpeza. Além de habitado por tipos que ignoram a palavra respeito. Que ofendem sem cerimônia.
- Ora, senhora – interrompeu Ericsson. – Pode ser que sua filha não a visite pela imundície da moradia. Ou pelo refinamento que a posse de um marido rico trouxe para a vida tediosa dela. No entanto, a minha sobrinha foi afugentada por outro tipo de sujeira. Da que sai da boca e da garganta de madames incontroláveis.
- Calma, calma – apaziguou Kalhani, enquanto os dois remetiam-se mutuamente para os quintos dos infernos. – Saudaram o sol apenas para serem agressivos um com o outro? Absorvam a luz, irmãos, e purifiquem suas intenções.
- A questão não é a velocidade da luz, Kalhani – quebrei meu voto de silêncio, finalmente. – O problema é a velocidade do som, o modo como os ruídos fazem parte de nosso cotidiano. E o incômodo que sua ausência provoca.
- Compreendo, Zack. A falta do velho Lars e seu arrastar monótono.
Antes de confirmar, ele me interrompeu com um gesto superior.
- Não se impressionem. Nada de adivinhações. Percebi tudo através da aura coletiva de vocês. Existe uma lamentável carga contínua de desequilíbrio no ar. Uma sistemática que busco aperfeiçoar em todos os momentos, acima das convenções.
- Que cara de pau! – fulminou a gorducha, que parecia ainda maior quando estava enfurecida. – Então todo mundo agora é clarividente! Provavelmente fui a primeira pessoa a dar pelo fato. Depois, o que paira na atmosfera desse seu estabelecimento é o cheiro constante de bolor.
- Por favor, senhora Marino – implorou Kalhani, pedindo clemência com as mãos. – Vamos focar nossa energia naquilo que realmente importa. Suas queixas são mais apropriadas para as reuniões de condomínio. Estamos todos muito preocupados com o senhor Lars. Perdemos tempo discutindo enquanto ele pode precisar de ajuda. Estou com a chave mestra. Por que não me acompanham?
Ninguém se opôs à sugestão do guru e a missão de salvamento de um velhinho indefeso começou após tantas discussões inúteis. O grupo avançou em algazarra, cada qual abordando o assunto que mais lhe interessava. Como nenhum dos heróis de araque abriu mão de suas preferências, todos acabaram resmungando às paredes surdas. A senhora Marino e o jovem Ericsson acabaram por voltar à discussão de minutos antes. Kalhani entoou um mantra como forma de inspirar nossas melhores intenções. O barulho terminou atraindo alguns atrasados recalcitrantes. A passagem sob alarido do bloco dos bons samaritanos pelo terceiro andar adicionou ao bravo grupo Larissa, a soprano, hoje inteiramente afônica, segundo explicou por gestos e grunhidos. Quase de imediato, Norton, o mestre em modelagem física, apareceu capengando e reclamando com seu vozeirão que fora acordado à revelia. Suas explicações adicionais e confusas sobre “seu estiramento agudo do músculo adutor da coxa direita”, devem ter produzido eco suficiente para colocar à espera as esfuziantes She e Female, a dupla de travecas, no alto da escada do quarto andar. Não bastasse, apareceu ainda um dos silenciosos, típico espectro sem eira nem beira, nome ou sobrenome, seguindo-nos como um zumbi. O exemplo perfeito do autômato seguindo sinais vitais que ele próprio não possuía.
- Não precisa também esta tropa toda... – iniciou a senhora Marino no tom mais professoral possível.
- Só faltava mesmo essa! – protestou She, assessorada por Female. – Estamos no nosso andar e o velhinho é nosso vizinho. Você veio lá de baixo se meter em assuntos fora da sua alçada, querida.
A réplica indignada dela foi abafada pelos grunhidos inúteis de Larissa tentando explicar sua rouquidão. Norton, solidário, sem diminuir um mínimo o tom habitual, usava sua contusão como consolo e exemplo “do que sofre um profissional dedicado na tentativa de atingir à perfeição”. Por outro lado, buscando serenar nossos humores, Kalhani recrudescia a intensidade do seu mantra. Ericsson, conformado, me olhou de relance sinalizando o zumbi, que assistia tudo com o olhar vidrado, perdido no meio à palidez do rosto. O contraponto ideal àquela agitação matinal desmedida.
- Porra, colega... Eu passo a noite na gandaia, mas você que parece ter se esbaldado a valer. Já vi que dormir cedo não faz tão bem assim como dizem!
Caímos no riso ajudando a aumentar a confusão. O sujeito limitou-se a concordar timidamente, balançando os ombros arriados de modo conformado, pouco ligando se aquilo era bom ou ruim, engraçado ou de mau gosto. Permaneceu apático, ao mesmo tempo em que o barulho diminuía e a toada mística chegava ao fim.
- Acho que agora devemos tratar do que viemos fazer, amigos. Muito reconfortante saber que existe tamanha generosidade nesta pequena comunidade. Além do mais, acredito que o velho e cortês Lars precisa realmente de ajuda. Fizemos algazarra para acordar um batalhão e nenhum sinal dele. Para quem sempre se levanta cedo, esta manhã dorme como uma pedra. Infelizmente, temo pelo pior. Vamos logo com isso. Nosso bom vizinho conta conosco.
O grupo se aproximou da porta em completo silêncio, procurando demonstrar uma seriedade que não possuía. Havia uma preocupação comum que, no entanto, era incapaz de superar a insegurança e a expectativa. Eu havia dito no início que o sentimento dominante era de desconforto, a partir do qual a curiosidade surgia com toda sua morbidez. Estivesse bem ou mal, o destino do velhinho não mudaria a existência de ninguém, apenas exercitaria um sentido efêmero e ligeiro de compaixão, mesmo que todos simulassem sentir sua perda profundamente. Um bando de ratinhos procurava seu pedaço de queijo. Puta merda, pensei, me deixei arrastar na correnteza da banalidade. Engrossei o coro da emoção vazia. Somente o Zumbi apresentava coerência naquele exército perdido. Arrastava-se por instinto.
Kalhani retirou a chave mestra do bolso interno da túnica. Antes de girá-la na fechadura, bateu de leve uma, duas, três vezes. Colou o ouvido à porta e aguardou alguns segundos. Nenhuma resposta ou sinal de movimento lá dentro. Repetiu o gesto colocando mais força e rapidez, chamando-o pelo nome. Nada. Escutávamos apenas nossa respiração, misturada com uma ou outra palavra sussurrada. A matilha agrupada fingia estudar o próximo passo, exibindo um bom senso ou conhecimento que não dispunha. Sob o signo inatacável da benevolência e do amor ao próximo, éramos um bando de cruzados esperando pelas decisões de um líder anacrônico.
A senhora Marino aproveitou o impasse para roçar ao máximo o corpo musculoso e rijo de Norton. O jovem Ericsson fez igual com Larissa, aproveitando o pouco espaço do corredor e o ajuntamento. She e Female se agarraram contritas, acariciando-se mutuamente, exibindo em público o que normalmente reservavam para sua intimidade. O Zumbi vibrava o corpo a cada pancada inútil do senhorio na porta, parecendo prestes a se desintegrar. Era um camarada mesmo estranho. Não recordava tê-lo visto muitas vezes, se é que o vi alguma. Começava a detestar tudo aquilo, podia estar enfim dormindo após a noite em claro. Não adiantava qualquer arrependimento neste momento. Também tinha meu lado mórbido e estava curioso.
Desistindo de chamar a atenção de quem não sabia ao certo morto ou vivo, Kalhani, decidido, girou a gazua na fechadura e nos descortinou os domínios pessoais do velho Lars. A turma entrou afoita, meio que tropeçando uns sobre os outros, cessando abruptamente a bolinação desenfreada, todos indóceis na intenção de descobrir o que ocorria.
O aposento nada apresentava de excepcional. As cortinas grossas, cerradas com precisão, filtravam praticamente toda a luz, reforçadas por um forro de plástico negro. Um lustre rachado e empoeirado, pendendo inclinado do teto por uma corrente retorcida, iluminava com limitações o minúsculo espaço. O ambiente era desagradável e soturno, nada condizente com a impressão simpática que o velhinho transmitia. O ar pesado indicava a necessidade rápida de renovação. Havia uma tênue camada de poeira no chão e fomos imprimindo involuntariamente nossas pegadas no assoalho. Lembrávamos aqueles antigos exploradores, tateando com cuidado em terreno desconhecido.
As dimensões eram iguais ao do meu quarto, dois pavimentos abaixo. À esquerda, havia uma geladeira entreaberta, desligada e, segundo percebi, vazia. Na pequena pia em frente, restos do que pareciam ser montes de terra úmida ou argila. Vários sacos plásticos para retirar lixo, do tipo que todos se acostumaram a vê-lo carregar até a véspera, amontoavam-se largados ou amassados. Na metade do caminho para a cama, uma mesa riscada, colorida pelos restos da mesma argila, amparava bandejas de plástico, pequenas pás e instrumentos de metal diversos. Nunca vira aquele tipo de coisa, sequer tinha idéia de sua utilidade. No canto, à direita, mais sacolas, estas inteiramente abarrotadas, estufadas, fechadas com um nó duplo e cuidadoso, guardando sabe-se lá o que. Ao lado, estirado, repousava em meio aos lençóis rotos o velho Lars, exibindo o branco dos olhos, boca entreaberta exalando mau hálito, pele sem viço, amarelecida, cabelos desgrenhados e oleosos.
- Meu Deus, meu Deus – começou a soluçar a senhora Marino. – Chegamos tarde, o pobre homem está morto. Esperamos muito tempo para vir...
Esquecendo a recente altercação do corredor, as drags procuraram consolá-la, amparando-a lado a lado. Female retirou da pequena bolsa a tiracolo, da qual nunca se separava, um lenço rendado que ofereceu gentilmente a senhora Marino. O restante cercou o leito cautelosamente, procurando certificar-se da sorte de Lars.
Kalhani reclinou-se sobre ele e procurou o pulso. Puxou um braço esquálido e cheio de feridas, enterrado na roupa de cama sebosa e embaralhada, tentando distinguir algum vestígio de atividade vital naquele organismo enfraquecido. A sensação, enquanto ele variava a posição do toque, era que qualquer pressão demasiada iria esfarelar o corpo depauperado dele. Parecia preste a rachar, decompor-se em mil pedaços, um arremedo humano flagelado por vicissitudes que lhe arrasavam sem piedade. O cheiro de morte e doença o envolvia num abraço apertado, apaixonado.
- A pulsação está bem fraca, mas ainda vive! – anunciou exultante.
Felizmente todos tiveram o bom senso de evitar palmas ou gritos de comemoração. Ficava óbvio que seu estado de saúde era gravíssimo. Mais do que inspirar cuidados ele talvez precisasse de um autêntico milagre para sobreviver. Uma série de tremores sacudia-lhe o corpo periodicamente, enquanto balbuciava palavras incompreensíveis. Uma espuma esbranquiçada brotava viscosa do canto dos lábios anêmicos, escorrendo vagarosamente pela face rachada, reforçando a sensação de abandono. As pernas se cruzavam lânguidas numa atitude defensiva, como que protegendo num reflexo desesperado os últimos sinais vitais ainda disponíveis. Sim, estava vivo, entretanto tudo seria uma questão de tempo. Ou mesmo sequer disso.
- Temos de chamar o pronto-socorro – sentenciou Kalhani.
- Que esperança! – replicou Ericsson. – Aqui, nesta parte da cidade? E logo num domingo? Até eles chegarem, isso se vierem, o velhinho já embatucou.
- Nós precisamos fazer alguma coisa por ele...
- Vamos com isso, pessoal! – recuperou-se a senhora Marino. – Um de nós vai ligando para a emergência do hospital. Os outros ficam aqui, ajudando da forma que puderem. O importante é agirmos e não largarmos o velho de mão.
O senhorio se prontificou a descer e fazer a chamada telefônica, disposto a exigir um urgente atendimento. Ericsson começou a fuçar em volta atentamente, soltando diversas interjeições de surpresa. Larissa providenciou um pano umedecido para refrescar a testa de Lars, enquanto as drags se esmeravam em arrumar-lhe a cama, ajeitando o travesseiro sob sua cabeleira grisalha. Aproximei-me de Norton e da senhora Marino, que cochichavam.
- Nunca pensei que ele vivesse nessas condições – murmurou ela. – Ele parecia tão distinto, organizado. O quarto é sujo, mal cuidado, não tem nada...
- Ora, ele pode estar na dureza – ponderou Norton.
- Falta de dinheiro não serve como desculpa, querido - sentenciou, colocando o braço parrudo em torno dos seus ombros largos. - Nenhum de nós é abonado, porém sempre se procura fazer o melhor. Minha aposentadoria é uma piada, o que não impede que o lugar onde moro seja decente. Por estas e outras vivo me aborrecendo nas reuniões de condomínio. Um mínimo de arrumação e de limpeza nunca foi artigo de luxo. Pelo visto sou a única que pensa assim aqui.
Era engraçado escutá-la dizer tanto, e com tanta propriedade, após o exército de farelos que havia espalhado no meu quarto, uma hora antes. Evitei a temeridade de apontar a contradição entre teoria e prática. Porque ela observara certas incongruências acertadamente. A imagem que todos faziam de Lars era bem outra. Seu porte nobre e maneiras dignas desabavam ante a visão do estado das coisas ali. O resultado evidente do desleixo não podia ser produto de um único dia de mal estar ou enfermidade. Tudo fora largado havia tempo, manifestando falta de esmero.
Aliás, isso tornava o quadro ainda mais esquisito, alçando Lars como pivô de uma polêmica dominical. Se o velhinho descia sempre com seu lixo, numa rotina diária, meticulosa e inalterável, o que carregava dentro dos sacolões afinal? A poeira se acumulava por todos os cantos, misturada com a estranha terra avermelhada. A geladeira, conforme informava o atento Ericsson, também estava imunda, mas não com vestígios de comida ou mantimentos. Muito menos encontrara pratos, copos ou talheres nos armários abaixo da pia, com exceção dos vários suportes plásticos e apetrechos similares aos que repousavam sobre a mesa encardida. Em suma, nada indicava que se alimentasse, nem que fizesse uma faxina regular em seu cubículo. Contestando tais deduções óbvias, opunha-se o tradicional desfile matinal com o qual todos se habituaram desde que vieram morar no lugar. Ele parecera até hoje asseado, cuidadoso e metódico. No dia que provavelmente seria seu derradeiro neste mundo, a imagem desmoronava de forma trágica e definitiva.
- Meu Deus... Fico imaginando se vou ter um fim igual. Um velho esquecido, sem ninguém, deixado no meio da sujeira, amparado por desconhecidos...
Ericsson abandonara suas conjecturas, exprimindo um pensamento que acometera todos perante o panorama que assistíamos. Coloquei a mão sobre seu ombro procurando animá-lo. Talvez não passasse de um clima de ressaca, embora a própria senhora Marino, seu desafeto, se emocionasse com o tom condoído das suas palavras. Antes que ela pudesse consolá-lo, Larissa se aproximou ansiosa, puxando Norton pelo braço, disparando uma saraivada de grunhidos inteiramente absurdos.
- Baixa o timbre, menina! – implorou o atleta esmagado pelo nível insuportável dos grasnados. – Te acalma, tenta explicar por gestos, sei lá, cacete...
Ela respirou conformada e, lembrando que uma imagem vale mais do que mil palavras, desenrolou um papel grosso, encorpado, um pouco amarelado, antes sinalizando tê-lo encontrado largado ao lado da cama, enquanto se ajoelhara aplicando outra compressa molhada na fronte do velho. Ericsson de imediato despertou do seu torpor de misericórdia, revelando um brilho febril no olhar ao lançar-se sobre o curioso achado. Não foi o único enfeitiçado, pois todos ao redor estavam envolvidos no clima de mistério.
Para mim aquilo pouco significava. Tratava-se de um mero desenho, um tipo de esboço, feito toscamente a lápis preto ou carvão. Não era extraordinário, mas não chegava a ser ruim. As linhas traçadas com certa firmeza e orientação revelavam um jovem rosto de mulher, de origem nitidamente européia. Um tipo de qualquer forma estranho e exótico, uma espécie de beleza antiga, perdida no tempo. Os olhos grandes e arredondados saltavam em magnetismo, dominando o nariz minúsculo, a boca delgada e bem definida, o queixo ovalado e delicado, emoldurados por um cabelo negro preso na altura da nuca. O único enfeite era um diadema cingindo-lhe o alto da testa estreita e um discreto colar de contas em torno do pescoço esbelto e elegante. Tudo exercia grande fascínio e sedução, apesar de parecer datado e fora de época.
Agarrando o desenho enquanto o esticava totalmente sobre a mesa, Ericsson passou levemente o polegar e o indicador sobre o papel. Percorreu-o de canto a canto, sentindo sua textura, procurando eliminar alguns vincos, examinando tudo com a máxima atenção. Parava em determinados pontos realizando seguidos movimentos circulares, sorrindo maroto de satisfação sabe-se lá o porquê. De vez em quando erguia a mão, cheirando e verificando a ponta dos dedos. A esta altura, o poder hipnótico da figura e dos gestos ritmados dele capturara o grupo, exceto She e Female que prosseguiam remexendo na roupa de cama sem jamais encontrarem a disposição ideal. Até o Zumbi, que desde nossa chegada se mantivera à parte, guardando em reverência o leito à distância, aproximou-se e ganhou vida na presença da magnética imagem. As duas mulheres tentaram não dar o braço a torcer, escondendo infrutiferamente uma inveja íntima e profunda. Os homens tiveram a respiração alterada, escravizados pelo par de olhos elétricos e linhas sensuais que pulavam da figura, sublimando seu desejo como fosse possível.
Ericsson, que jamais negligenciaria sua condição de detetive amador, fugiu do encantamento e se aproximou resoluto do velho, erguendo seu braço fino e anêmico, embora não com intenções de verificar-lhe a pulsação. Examinou a mão descarnada e sardenta de alto a baixo, trazendo os dedos para bem perto da vista.
Pareceu bastante interessado nas unhas. Mesmo à distância, não havia como deixar de reparar que eram mal cuidadas. Estavam roídas e manchadas, tomadas por uma espécie de nódoa escura. Tentando enxergar seu interior, Ericsson puxou o quanto pôde a pele no topo, procurando expor ao máximo a fresta natural das cutículas. Uma expressão de triunfo iluminou seu rosto, enquanto se dirigia ansioso aos grandes sacos de lixo atados com nós reforçados perto da cama. Desamarrou o laço duplo e foi enfiando a mão em seu interior, como se já soubesse exatamente que tipo de coisa descobriria ali. Continuou a fuçar sem hesitar, até que demonstrou achar aquilo que esperava. Sem perder a pose, ergueu lentamente um nariz cor de barro em tamanho normal e algo que lembrava uma orelha humana, igualmente modelada. O conteúdo bizarro, se não fosse em argila, indicaria os despojos da atividade escusa de um sádico serial killer escondendo as provas de sua crueldade insana. Contudo a solução não seria assim tão simples. Os poucos pedaços mal eram tocados se esfarelavam, retornando ao pó de onde vieram. Pela primeira vez o silêncio dominava a situação.
Estávamos tão absortos, ora no desenho, ora no mágico desempenho do nosso investigador oficial, que sequer percebemos Kalhani vindo discretamente por trás, numa leveza digna dos seres etéreos e superiores. Sua surpresa foi instântanea com o repentino estado das coisas reveladas em sua ausência no refúgio do estranho Lars.
- O que é tudo isso? – balbuciou, indicando o desenho e os despojos.
- As respostas de todas as perguntas – disparou eufórico Ericsson, assumindo em definitivo o controle da brilhante performance que vinha oferecendo.
- Antes de se empertigar todo, seu convencido, existem coisas mais importantes a tratar do que sua vaidade – recriminou a senhora Marino. – E então, senhor Kalhani? Conseguiu falar com o hospital? Este socorro vem quando, afinal?
- Assim que seja possível. Sem previsão. Foi somente o que obtive deles – respondeu, baixando a cabeça, desanimado.
- O velho não agüenta tanto! – exasperou-se Norton.
- Pobrezinho... – lamentou She, logo acompanhada Female. – Ele vai morrer e não vamos poder fazer nada!
- Bom Deus, como tudo chegou a esse ponto? – sussurrou condoída a senhora Marino. – Até ontem ele estava normal, do jeito reservado dele. E hoje...
- Não percebem que se alguém deseja a morte, não existe remédio ou tratamento que salve? Nem mesmo sua preocupação e esforços? – observou Ericsson, conformado.
Antes de imaginar um argumento contrário percebi, assim como os demais, que nosso investigador lançara um clarão nas trevas. Não compreendíamos ainda, em nossa ignorância, qual seria o motivo, portanto todos permaneceram calados. Todavia, tornava-se inegável que aquela inusitada e esdrúxula situação apenas poderia mesmo ser explicada convincentemente pelas palavras dele, por mais dolorosas que fossem: o velho Lars decretara sua hora de partir.
- A resposta sobrevive ao redor de vocês, meus amigos – prosseguiu Ericsson. – O passado do ancião o assombrou noite após noite. Suas lembranças o traíram e desertaram. Lutou contra elas bravamente. A noção da perda era insuportável. Depois tentou desesperadamente resgatá-las, empenhou-se nisso e finalmente, vencido, entregou os pontos.
Ele apontou o desenho, os restos de argila, os apetrechos espalhados e bateu na ponta dos próprios dedos.
- Um rosto de mulher foi tudo que sobrou. Aquela que amou um dia e provavelmente por toda a sua vida. Mas o tempo prega peças na memória. A velhice cobra um preço bastante caro. Lars percebeu que a imagem dela se desvanecia e escapava. Procurou primeiro desenhá-la. Muito pouco para quem amou tanto. Então tentou moldá-la em barro ou argila. Esculpir um busto que lhe fizesse companhia e alimentasse a alma saudosa. Notem que é uma figura de outra época, um vulto distante da juventude. Talvez uma paixão única e jamais consumada. Como saber? Infelizmente, faltou-lhe capacidade para criar a forma tão desejada. E diariamente o fruto do fracasso era colocado em sacos de lixo que empurrava até à calçada. Achou mais fácil trabalhar na calmaria da noite e dormir durante o dia. A rigor, com exceção disso, ao contrário do que especulávamos, não saía mais para absolutamente nada.
Ericsson enrolou cuidadosamente a gravura que abrira na mesa.
- O velho Lars trabalhava nesse móvel. Observem que os arranhões das espátulas, plainas e pás marcaram a superfície, acabando por serem vedados pelos restos do material avermelhado que raspava ou misturava com água nas bandejas. Utilizava a geladeira como local de secagem rápida da mistura, produzindo uma massa consistente. O interior de suas unhas está impregnado, tal como o desenho que manuseava, recorrendo como modelo. No entanto, ele desistiu de lutar contra o esquecimento e a impossibilidade de reviver a jovem que tanto amou. Aos poucos se largou, deixou de comer e cuidar de si. Aquele saco junto da cama, de onde retirei o nariz e a orelha, são os tributos derradeiros ao crepúsculo dessa paixão avassaladora. O momento em que decretou o final das tentativas e decidiu morrer na esperança de reencontrá-la noutro lugar...
Ele fora bastante racional e lógico, porém num tom solene carregado de emoção. Não havia quem escapasse à compaixão oriunda de tais revelações, imaginando aquele homem anos a fio na sua luta inútil de concretizar a fisionomia que conquistara seu coração e povoara seus sonhos. Não consegui perceber meus olhos úmidos, a despeito do meu desejo nesse sentido, mas os de todos os presentes estavam. As idéias espocavam soltas na minha mente, se iniciando de um jeito e desenvolvendo de outro, sem encontrar um final coerente.
Houve quem sugerisse que não deveriam continuar ali, respeitando a privacidade e o estado de Lars. Claro que ninguém cogitou deixá-lo abandonado até que o atendimento médico comparecesse. Assim, aos poucos, aquele exército da salvação começou enfim a debandar. Kalhani, como responsável e proprietário, de imediato se prontificou a permanecer. O Zumbi, debilmente, apenas escorou-se num canto próximo à cama, mantendo sua passividade inabalável. Também resolvi ficar, embora não compreendesse o porquê dessa decisão. Algo me dizia que aquilo não terminara, que minhas lágrimas talvez ainda escorressem. Ericsson, assim como os outros, veio então se despedir. Considerava a missão encerrada e ansiava pelo aconchego do próprio quarto. Pelo jeito que Larissa se dependurava nele, seu esperado descanso seria adiado e ela, mesmo afônica, manteria a boca ocupada toda manhã. Aliás, todos pareciam ter formado pares, inspirados pelo sentimento que consumira as últimas energias do velho moribundo: Norton saiu puxando carinhosamente a senhora Marino pela mão, insinuando que ela poderia dispensar os vídeos eróticos pelo resto do domingo, enquanto as escandalosas She e Female, grudadinhas, apenas reafirmaram o afeto que nutriam uma pela outra.
Antes dos travestis partirem, consegui emprestado o espelhinho de maquiagem que carregavam na bolsa abarrotada. Era bastante complicado distinguir a respiração do velho Lars. O corpo parecia mergulhado em irrestrita imobilidade, sem reações perceptíveis. Enquanto Kalhani sentara-se à mesa e fechara os olhos para entoar um “cântico de cura”, me aproximei resoluto do rosto de Lars, silenciosamente.
Posicionei o espelho abaixo de suas narinas e ligeiramente inclinado sobre a boca de lábios delgados e sem coloração, aguardando que o embaçamento revelasse um vestígio de vida naquele organismo alquebrado. Entretanto, acima das mais loucas expectativas, o susto me fez levantar, derrubar o objeto que se estilhaçou no piso e recuar na direção do Zumbi. Não havia capturado um reflexo do velho, como se ele fosse um fantasma ou sequer estivesse presente.
Kalhani, imerso na sua cantilena monótona, não despertou com meu sobressalto. O Zumbi mantinha-se impassível como antes. Uma outra surpresa foi observar o esforço hercúleo do velho Lars em abrir os olhos vazios, esboçar um sorriso doloroso e chamar-me para perto de si com o indicador descarnado. Ele procurou ser prosaico e adicionar vivacidade ao convite. Porém a espuma saindo pela boca denunciava o limite da sua condição. Sua inofensividade era tão patente que automaticamente caminhei na sua direção, aceitando aquela convocação. Sentei na beira da cama, baixando o ouvido o mais perto possível de sua face. A voz quase inaudível, trêmula, soou como um gongo que despertasse minha alma.
- Seu amigo estava certo, meu irmão de fileiras... Eu a perdi há tantos séculos... Não sei mais quantos... Nem minha memória conseguiu conservá-la... A imortalidade perdeu o encanto. A eternidade virou um fardo insuportável... A hora chegou, já posso e quero partir. Assuma meu lugar, faz parte do seu destino... Devemos cuidar dos humanos, como tomei conta daquele que chamam Zumbi... Suguei boa parte do sangue dele, como faço somente com os que não amam ou respeitam a vida, seja própria ou alheia. Isso se percebe ao vasculharmos seus espíritos e consciências. Reparou como eles são facilmente influenciáveis pela nossa vontade ou ânimo? Não somos os monstros retratados pela tradição. Ao contrário, constituímos os maiores justiceiros da raça. A condição de vampiro exige entrega e dedicação. Sinto que será um dos melhores, Zack...
- Acho que a falta de sono me deixou sonhando acordado - balbuciei.
- Não consegue dormir ao à noite, pois é uma criatura noturna. Seu organismo irá regularizar quando começar a beber sangue. Não será vítima de doenças mortais, seus dentes cessarão de doer e crescerão no instante necessário. Termine com o Zumbi, sem pressa. Eles se tornam letárgicos quando gradualmente os drenamos... Percebo que não acredita no que digo... Pense bem, Zack... A comida não lhe provoca repulsa? Não costuma sentir-se destinado a algo maior que o mero sucesso mundano ou organizar seus pertences? Não escuta através da madrugada sons que ninguém detecta? Seus ouvidos aflorados não ouvem ao longe asas batendo, roedores devorando sua presa e a baixeza dos indivíduos nocivos que arrancam a alma dos semelhantes? E, finalmente, não acha todos eles banais, repetitivos, previsíveis ou insípidos? Soa familiar? Representa uma outra estirpe de seres... Você acostumará agora que possui essa consciência... Sua transformação se iniciará em seguida...
Foram estas suas últimas palavras. Apagou-se como uma vela que consome o pavio. Sem alarde ou aviso, a conseqüência direta da decisão de abrir mão da vida eterna, da necessidade de tomar o sangue dos que não merecem a dádiva superior de existir. Nunca saberei porque aquele amor imenso não frutificou, que mecanismos os afastaram de compartilhar a felicidade. De qualquer forma, aquilo perdera a importância. O velho Lars não precisaria mais arrastar em monotonia os restos de uma lembrança esmaecida pelo tempo. Agora repousava ao lado da mulher amada, saboreando o genuíno estágio da evolução.
Tratei de me afastar discretamente. Meus movimentos doravante eram de uma criatura sutil, que não deixa vestígios materiais por onde transita. Minhas pegadas de volta sequer ficaram marcadas no assoalho imundo. Puxei o Zumbi pelo braço e desci com ele até seu andar. Estava sob minha exclusiva responsabilidade e, ao anoitecer, cuidaria dele, seguindo as indicações do velho Lars, meu nobre irmão de fileiras. Dirigindo-me ao meu quarto discerni claramente, como se nada existisse impedindo, os ardentes ruídos de Ericsson e da senhora Marino fazendo amor. E também os de Norton e Larissa, mesmo ele machucado para se contorcer ou ela afônica para gemer. Os de She e Female pareciam situados dentro dos meus aposentos, assim como o cântico enjoado de Kalhani vários andares acima. Os sons ganhavam uma dimensão extra. Não meramente os identificava, mas os dimensionava ante minha percepção e julgamento.
Estava exausto. A manhã avançava e precisava dormir para minha primeira vigília noturna. A existência caótica ganhara um significado palpável. O instinto bloqueava provisoriamente meus novos e aguçados sentidos, proporcionando as condições ideais de descanso. Enquanto a letargia vampiresca se espalhava, refleti sobre quantos amores poderia conhecer e perder nos séculos vindouros. Ou quanto tempo transcorreria até a solidão me esgotar e fazer desejar seguir o rastro do velho Lars, imitar aquele êxtase supremo de desencanto que agora trazia um nó à garganta e sufocava o peito. As lágrimas finalmente escorreram dos olhos e aqueceram minha face, rolando livres ao infinito como meu espírito inquieto.
Uma tarefa árdua acenava à frente, cobrando o melhor da essência imortal que dispunha. Refleti poucos segundos antes de adormecer se algum daqueles pitorescos companheiros de moradia exigiria meus caninos cravados em seu pescoço, me provocando um sorriso compreensivo que dava boa vinda aos sonhos. Intimamente, com exceção do Zumbi, os sabia dignos de indulgência. Apesar dos erros, defeitos, malícias e vícios nenhum deles, a rigor, comprometia o equilíbrio vigente.
Afinal, apenas algumas horas atrás, cada um havia demonstrado ser um bom vizinho.

Um comentário:

Bbl disse...

Fascinante! O comentário é: sem palavras...Fábula!!!