quinta-feira, 29 de janeiro de 2009

Cânticos do Desterro (Conto)


Pendurados à beira do precipício.
Apenas dois míseros palmos de uma reentrância de terra escura e endurecida, salpicada por raízes retorcidas, nos separavam do vazio. O suficiente para mal acomodar o traseiro e colocar o ego em dia com as pendências. Além disso, repetindo uma experiência que tivera no deserto, sobrava a oportunidade única de contemplar a beleza da natureza em estado bruto, a harmonia oculta daquela gigantesca lacuna do relevo. Nem vale a pena mencionar os detalhes que nos conduziram e deixaram na presente situação. Atualmente vivíamos a parte mais excitante da tola desventura, melhor nos concentrarmos nela. O tempo escoava rapidamente, no seu ritmo insensível, exigindo atenção redobrada na postura corporal contra a força invisível que parecia nos atrair ao fundo daquele poço de almas. Até mesmo porquê, à mercê do desenlace, o antes e o depois desapareceriam no buraco negro das memórias órfãs, de autores anônimos.
Era desesperador contudo lançar o olhar na direção do abismo. Posso estar me contradizendo por obra da fraqueza e da vertigem. Flutuar num torrão ressequido, qual um minúsculo intruso na paisagem, restringia a perspectiva à lâmina de um pêndulo. A altura descomunal colocava em dúvida se estávamos mais próximos do céu ou do inferno. Havia nuvens sobre nós, retalhos suaves e plácidos como flocos de algodão. Sentia que podia tocá-las, que ficavam bem próximas das pontas dos dedos. Ao contrário do fundo sob nossos pés, cujas extremidades percebiam que o infinito residia ali, nos limites de um assento naturalmente desconfortável, bundas flácidas e esqueletos doloridos invadidos pela dormência.
Quando se colocarem numa enrascada dessas ao menos saibam escolher sua companhia. Ninguém sabe quanto vai durar a agonia, nem se o final será feliz. Meu companheiro de infortúnio se chama Sparta. Nome estranho, sempre achei. Os cacos de memória que restavam não informavam se alguma vez ele explicara o motivo de lhe batizarem assim. Mas como já andava de saco cheio dele isso carecia de importância. Suas idéias de merda nos colocaram naquela ínfima ravina projetada sobre o nada.
Andávamos tão dissociados que nossas conversas se tornaram apenas mentais. Se ele me ouvia, ou eu próprio ainda o escutava, sinceramente não posso afirmar. Jamais voltamos a nos encarar desde que caímos nessa armadilha. Algumas frutas na mochila e um resto de água numa garrafinha plástica tinham garantido nosso débil sustento nos últimos dois dias. Uma brisa suave e constante trazia refresco aos pensamentos confusos, dificultando assim o avanço da demência e renovando o ânimo. Não abrir a boca e falar bobagens era outra maneira de economizar as energias.
Enquanto devorava a metade de uma maçã, com casca, semente e tudo, lembrei o quanto Sparta podia ser místico em relação às suas empreitadas. Companheiro, havia me dito há meses, existe uma maneira de provar a existência de Deus.
Tive um velho professor de História que costumava comentar que para todo louco com uma idéia mirabolante existiam outros tantos dispostos a segui-lo. Sparta conseguiu apenas um. Entretanto bastou-lhe para desenvolver sua idéia de olhar a face do Criador. Aliás, quem dera fosse tão simples, pois a rigor seu plano apresentava matizes variadas e contrastes originais.
Não ergueremos uma torre atingindo o firmamento, como em Babel. Tal tarefa seria sobrehumana. Desceremos às profundezas. Para baixo todo santo ajuda. Se encontrarmos o Diabo, em contrapartida saberemos que Deus também existe.
Agora devem mais ou menos ter entendido como chegamos aqui. Após uma série de pesquisas complicadas, rastreando volumes senis, grossos e empoeirados nos corredores das bibliotecas, Sparta concluiu que as portas da morada infernal jaziam escondidas no fundo inatingível daquela vertente. Estávamos exilados no meio do desconhecido, no coração de uma selva sem nome, afastados de qualquer contato, porque o sigilo seria um componente fundamental ao sucesso da jornada.
Seu babaca, xinguei-lhe com toda força do pensamento.
Não suportaríamos encarar a luz divina, amigo. Ela nos cegaria em todo seu esplendor, ponderou. Precisa avaliar nossa jornada como um ato de contrição: o fogo demoníaco não consumiria nossos espíritos, blindados pela força pura da fé.
As divagações pretensiosas de Sparta momento algum afastavam a realidade crítica ao redor. Não tínhamos mais o material de escalada. Corrigindo: de descida. Os poucos metros acima que nos separavam de terreno plano e seguro tornaram-se então inatingíveis. A outra opção, a garganta abaixo, sequer exibia o que guardava. Não passava de um negrume longínquo, inacessível ao alcance dos olhos.
Me intrigava a possibilidade de que Sparta não tivesse a menor noção do beco sem saída que nos enfiáramos. Que suas constantes reflexões continuassem vagando entre delírios messiânicos, acalentados por desconexos ideais superiores. Sua cruzada fora detida no primeiro obstáculo, o fracasso das intenções se mostrava indiscutível ante às circunstâncias. Apesar disso, na sua total confusão íntima talvez interpretasse tudo como um recompensa celestial ou um castigo demoníaco. Deus estaria nos conferindo a chance de avaliarmos nossa pequenez ou o Diabo demonstrando o quanto as aparências são traiçoeiras? Ou seria o inverso? Gelava meu sangue imaginar que o líder da empreitada decidisse as lições aprendidas de acordo com um espírito otimista ou pessimista, rebelde ou conformado.
Percebe o problema, seu cretino? Notou que ficamos encurralados, aprisionados enfim numa rocha minúscula, incomunicáveis e segregados, sem avanço ou retrocesso, aguardando o final da contagem regressiva? A cavalaria não virá nos salvar no último segundo, Sparta.
Sua fé se revela extremamente decepcionante, camarada. Não enxergaria o Santo Graal mesmo que o encontrasse. Deseja segurança e garantia de êxito em questões que trafegam além destes valores terrenos.
Minha fé é tudo que me resta. Mas ela não impede que avalie as coisas como são. Fui reduzido a mero adereço dessa encosta. A expressão e a estima, a liberdade de ir e vir, me foram confiscadas. Sou o único responsável. Agi sem pensar, decidi por impulso e arrogância. Sequer disponho do consolo de descobrir se o veredicto veio de Deus ou do Diabo.
A cada segundo, a concentração exigida para firmar o corpo no assento incômodo redobrava de intensidade. Porém haviam poucas reservas vitais a recorrer. As pernas pairavam largadas e mortas sobre aquele despenhadeiro inclemente, dominadas por uma letargia absoluta, comprometidas pela circulação deficiente do sangue. As palmas das mãos, esfoladas e em carne viva, pouco auxílio podiam oferecer, procurando apoio em qualquer abertura. Anestesiadas pela dor e indefesas na ausência de esperança, teimavam em escorregar na superfície sebosa do terreno nauseabundo, atraídas pelo vácuo assombroso do abismo. A sacola não oferecia mais sustento, com exceção de um derradeiro gole de água. E as nuvens outrora alvas cederam sua pureza ao avanço viril da cor da fuligem.
Não saberia mais como rezar, rogar auxílio ou implorar piedade. Sparta acusara minhas crenças de serem frágeis e estava coberto de razão. O blefe de toda a existência ficava exposto perante nuvens negras, folhagens rasteiras e a bocarra que velava as portas da morada demoníaca. O suplício minara toda convicção filosófica ou espiritual, desnudando meu temperamento insosso, de convicções nulas. Entre a cruz e o tridente correria ligeiro para aquele que primeiro acenasse com a tênue promessa de salvação. A convulsão do choro se camuflava na revolta muda do desenlace medíocre, sem pompa ou circunstância, clarins ou trombetas.
O grito desesperado que soltei da garganta jamais derrubaria as muralhas de Jericó ou até os arbustos próximos. No entanto serviu para esfumaçar Sparta, despachá-lo em definitivo. Uma consciência torpe era algo inútil próximo ao fim. Fosse por um companheiro imaginário ou um alter-ego recalcitrante, o indício inconstestável de que a origem de minhas atribulações se incubava no meu interior caótico configurava-se insuportável. Ele alcançara a serenidade sem merecimento, descansava em paz noutra dimensão, provavelmente abrindo caminho ao dono que acabara de lhe conceder alforria. Se a morada era infernal ou paradisíaca... Sim, estou me contradizendo novamente.
A aragem agradável ganhara velocidade e anunciava tempestade. O frescor mais escaldante que experimentei até hoje. O sibilar agudo do vento passando entre as ramas e as folhagens densas da montanha representavam uma estranha cacofonia. A percepção comprometida tentava teimosamente descortinar algum sentido naquilo. Pareciam trechos musicais desencontrados, melodias pouco adocicadas e amorfas introduzindo uma coleção de cânticos de desterro. Um hino ao pobre indivíduo solitário, isolado do mundo naquela poltrona empedernida ridícula, prestes a ejetá-lo sem pára-quedas num vôo previamente condenado.
O frenesi do corpo em colapso embotava os sentidos. Inúmeros sonhos antigos de grandeza pareciam aptos a ensaiar sua patética despedida, conferindo um sabor ácido ao passado. Amores perdidos, sentimentos abortados, ideais melancólicos, promessas desfeitas, estratagemas engenhosos, transas consumadas, trepadas frustrantes, amizades ocasionais, talentos desperdiçados, emoções outonais. No descompasso generalizado, as notas do réquiem, os sons do exílio, o concerto de galhos e caules adquiriam formas sonoras estranhas, nuances excêntricas. O olhar procurava seguidamente um ponto de descanso, iludido pelos vórtices que invadiam as pupilas cansadas. As imagens alucinatórias eram da magnificência de um turbulento circo romano, onde a derrota seguia-se ao escárnio por parte da multidão ávida. Os polegares de patrícios e plebeus viravam-se para baixo, negando anistia ou compaixão. A cavalaria não apareceria mesmo no instante crucial.
Quando meu corpo morimbundo começou a deslizar rumo ao abismo uma última gargalhada foi o adeus que reservei à vida. Ou a saudação que destinei à morte? De qualquer modo, um misto de sarcasmo e desencanto. Nem Deus, nem Diabo. Muito menos, o dilema entre a cruz ou o tridente. Para baixo todo santo inegavelmente ajudava, conforme o finado Sparta. Minhas vãs esperanças miravam a coroa de louros do Imperador, o cetro reluzente em seu poder. A linha tênue entre a vida e a morte repousava nas suas mãos sagradas, no seu perfil divino, não importando mais o certo e o errado, a ilusão e a realidade. Não seria doravante cristão mas um súdito leal. Ao invés de um indivíduo desgarrado, um cidadão do império, temente ao panteão dos deuses pagãos, incensados nas oferendas.
Ave César, os que vão morrer te saúdam...

Um comentário:

Madalena Gatto disse...

Roberto,este seu conto é muito angustiante. Você gosta de colocar seus personagens em situações limite,sem saída... Mas, realmente algumas vezes nos sentimos imobilizados pela vida, sem possibilidade de voltar atrás e sem coragem de dar um passo à frente, rumo ao que nos parece um vazio aterrorizante, porém, se seguirmos em frente , provavelmente não encontraremos o céu nem o inferno de nossa imaginação, apenas talvez um novo caminho...