sábado, 23 de fevereiro de 2008

A Brincadeira (Conto)

Fora na primavera passada que Ravshi morrera.
As imagens ainda permaneciam nítidas: a tez cor de cal, o traje mortuário branco, um certo aroma indefinível produto da queima de velas, lírios espalhados e lágrimas nos lenços. A transparência, porém, não se revelava apenas nos restos mortais, nos apetrechos fúnebres ou na dor dos que o homenagearam na derradeira jornada. O próprio céu, de portas abertas para alma tão boa, mostrara-se cristalino, de um azul imaculado, puro como a água.
Na última primavera Ravshi partira, não havia dúvida. Depois se seguiram Amashi, Lebthi, Kiroshi e Hanara. Uma longa seqüência de perdas e cerimônias, onde nunca a sensação de estar vivo serviu de consolo. Todos tinham algo especial. Um modo de justificar sua presença no mundo, uma forma de conferir sentido a vida que os tornava especiais, únicos.
Amashi tinha sido famoso por seu amor incondicional aos livros. Pela vasta coleção de volumes e pergaminhos, alguns em linguagem obscura, desconhecida. Tratava-os como um verdadeiro tesouro, não importava a procedência. Zelo parecido ao do lacônico Lebthi com suas técnicas de jardinagem, esmero em podar as ramas e cuidado ao extirpar ervas daninhas. Seu jardim era um ponto de visitação. O próprio Kiroshi muitas vezes buscou inspiração para suas pinturas através das alamedas dele. Registrou numa série de telas uma beleza que, sob suas tintas, ganhava contornos inusitados, cores fosforescentes e sombras mais do que convidativas. Como dizia Hanara, usualmente prolífica em idéias, ambos sempre se misturavam, sem um anular ao outro. Ela sabia melhor do que ninguém colocar as coisas no seu devido lugar, com frases que todos podiam compreender.
Nosso grupo se completava com mais duas pessoas. Mas elas não tinham talento algum, nada de especial. Com certeza, nenhuma herança crucial para legar à posteridade. Mesmo assim foram acolhidas pelos outros quatro. Porque se Amashi possuía livros, Lebthi cuidava de flores, Kiroshi embelezava imagens e Hanara produzia idéias, eu dispunha apenas de meu amor por Tallara. E ela por mim. Mas isso, ao espírito sensível dos amigos, parecia compensar a arte, o panteísmo e a erudição ausentes. E talvez por essa total incapacidade de realização, elaboração e método tenhamos sido até então poupados, deixados por último pelos espectros.
-- Adrishi, está acordado?
Os olhos negros e despertos de Tallara procuravam os meus.
-- Estou, querida – murmurei, me aproximando.
-- Eles virão hoje? – perguntou, assustada.
-- Não sei. Perdi a noção do tempo aqui. Não há como riscar as paredes, contar os dias. Eles fazem de propósito.
-- Imagino como Lebthi sofreu. Ele amava a liberdade.
-- Todos amam a liberdade a seu modo. Todos sofreram.
Ela me abraçou e deitou a cabeça em meu peito.
-- Por que precisa ser assim, Adrishi?
-- Apesar do que pensa, não tenho todas as respostas – disse, sorrindo, enquanto acariciava seus vastos cabelos também negros.
Tallara devolveu o sorriso me encarando bem de perto.
-- Pode ser que não. Mas no dia que me pediu para segui-lo, bem que parecia saber tudo.
-- Ali foi diferente. Muito diferente.
-- Diz isso agora, querido. Na época foi bastante sedutor...
O sorriso tornou-se travesso, enquanto mergulhava no passado.
-- Lembra-se quando todos passamos férias em Maryla, querido? Nosso grupo nunca se divertiu tanto. Até os mais sérios trocaram o trabalho pelo prazer. Hanara me disse que lá, em meio aos jogos e devaneios, se sentiu revigorada para ao retornar produzir melhor do que nunca. Lebthi caminhava grandes distâncias e encontrava, naturalmente, novas mudas e espécies, deixando-as sossegadas. Amashi escrevia com um graveto, na areia úmida, poemas que o mar apagava. Com argila, Kiroshi pintou pedras e rochedos que abandonou à própria sorte. E nós, deitados na praia, procurando conchas, a mais colorida, a maior, a menor. Simplesmente uma brincadeira inofensiva, como tantas que fazíamos. Mas difíceis de apagar, de esquecer...
A dormência vinha aumentando recentemente. Começara leve na ponta dos dedos dos pés. Vinha subindo, se espalhando, obrigando-nos a ficar sentados, imobilizados. Sentíamos a presença dos espectros nos minando como uma praga, a vencer de início as resistências físicas e prosseguindo sua sanha destruidora. O ardor parecia queimar nervos e músculos, invadir os órgãos e navegar na corrente sanguínea. A prostração nos deixava cada vez mais convictos do fim próximo, apesar de mantermos silêncio sobre o assunto, colocando-nos em busca do amparo mútuo. Nada diverso do que fizemos desde sempre.
-- Sabe o que dizem, Adrishi? Que Lebthi em pessoa rasgou seus livros no instante derradeiro... Que Hanara renegou suas crenças, gritou a quem pudesse ouvir que nada do que defendera valia a pena.
Permaneci calado. Sabia onde pretendia chegar.
-- Ninguém sabe com certeza, querida.
-- Mas não acha que tem lógica?
-- Se existisse lógica estaríamos aqui, condenados ao inferno?
Ela se agarrou ainda mais em mim, agora enterrando o rosto em meu ombro. O cárcere a deixara mais frágil, fisionomia macilenta, os ossos bem saltados, cabelos desgrenhados. Apesar disso, sua chama interior nunca brilhara tanto, debatendo-se contra a provação. Nunca a vira tão bela.
-- Ravshi gostava de pintar, Adrishi?
-- Não, esse era Kiroshi – respondi, num esforço. – Ravshi tinha predileção pela música. Tocou na festa quando decidimos ficar juntos.
O sobressalto dela me despertou do torpor.
-- Como pude me esquecer disso tão rápido? A hora está vindo, Adrishi. Vamos ser sugados no que temos de melhor. Irão tomar nossas lembranças, o que possuímos e somos. Aconteceu assim com eles, será igual conosco. Logo não teremos noção do que representamos nas nossas vidas.
-- Não acredito nisso, querida. Ninguém tem essa capacidade.
-- Não são pessoas, trata-se de espectros. Seres etéreos que nos contaminam por ordem dos que controlam tudo.
Ela se levantou desesperada.
-- Na hora final, Adrishi, além de desconhecê-lo, serei capaz de agredi-lo. Partiremos em meio ao ódio, o amor desaparecerá de nós. É o jeito de nos punirem por sermos diferentes, tendo ousado sonhar.
-- Se isso tudo for verdade, melhor poupar as energias. Ficarmos focados nas lembranças. Preservar nossos sentimentos acima de tudo.
-- Você é tão ingênuo! Não somos nada. Eles eram superiores a nós, tinham um legado às gerações futuras. Um trabalho para conectá-los com o amanhã. Um senso de eternidade. Apesar disso sucumbiram, foram abatidos.
-- Não nos tem em grande conta, Tallara...
-- Querido – disse, segurando meu rosto entre as mãos – Temos apenas um ao outro, jamais foi diferente.
Ao longe havia um som de tempestade. Apenas o barulho distante nos alcançava, não existiam ali janelas ou frestas para o exterior. Ao ver o desespero estampado na face dela, a maneira como arregalava os olhos, me indaguei se o medo de quem amava, o contato frio do metal da parede e o ruído da tormenta seriam as sensações finais que levaria deste mundo. Além da possibilidade de agredir a única pessoa que me despertara para a vida.
Tallara começou a tossir, a torcer o corpo à procura de um apoio inexistente, enquanto a respiração tornava-se comprometida por uma presença invisível, uma influência maléfica. Passara do estágio da dormência para as mesmas sensações agudas que eu procurava manter sob controle com esforço sobre-humano, percebendo que a luta aos poucos vinha sendo perdida. O ar já grudava nos pulmões, não achando o caminho de volta.
-- Adrishi... Temos de fazer alguma coisa, criar algo nosso. Mas que não seja maculado pelos espectros. Canalizar nosso amor, nossa fonte de energia, numa forma que não estejam habituados... Como em outra de nossas velhas brincadeiras... Como numa dança! A mais louca e deliciosa das danças!
Para meu espanto, antes que discordasse, ela se ergueu com uma força que não devia dispor mais. Começou a rodopiar loucamente, numa coreografia frenética, acompanhada pela música da chuva, pelos acordes dos trovões. Ela me estendia os braços, me chamando para acompanhá-la, de um jeito despojado, sensual, convidativo. Achei aquela atitude uma arrematada tolice, um equívoco completo. Busquei na concentração o antídoto contra o câncer que fazia a investida decisiva. A saída era direcionar tudo para o que desejavam de nós, formando uma barreira, uma couraça.
Mas quando Ravshi morrera mesmo? Amashi gostara afinal de livros ou de flores? Conhecera algum Kiroshi? Havia mais alguém no grupo? O nome de Tallara surgiu em minha mente como um último ponto de apoio. Sim, logo ela, que enlouquecera. A mulher que sempre amei e me amou, em atitudes sérias ou brincadeiras. T-a-l-l-a-r-a... T-a-l-l-a... T-a-l...
Foi por puro instinto que, antes de me atirar violentamente sobre ela, aceitei seu convite, segurei suas mãos e passei a acompanhá-la naquela dança patética e maravilhosa. Os espectros agora nos cercavam, mas não conseguiam penetrar nossa essência. Nos sugavam a existência embora impedidos de arrancar as lembranças. E quanto mais nos entregávamos na loucura do movimento, mais tudo parecia pertencer somente aos dois. Os companheiros de outrora nos saudavam novamente, as brincadeiras enfim prosseguiam, o sentimento comum ficava imortalizado, transcendia às fronteiras terrenas.
Assim, horas depois, quando a tempestade cessara e nossos corpos exaustos, entrelaçados e sem vida se acolhiam mutuamente, não havia traço de dor ou de brutalidade. O silêncio trouxera paz e serenidade ao ambiente, nos velando sem apetrechos fúnebres ou mesmo a presença de amigos saudosos. No entanto, as imagens nunca estiveram tão nítidas. E um sorriso pleno enfeitava nossos lábios descorados, registrando a mesma transparência da primavera passada, quando Ravshi morrera.
Amashi adorava livros, Lebthi cultivava flores, Kiroshi pintava quadros e Hanara concebia idéias. Eu e Tallara tínhamos apenas o nosso amor, que transformamos numa simples brincadeira.
Que ela valesse por toda uma eternidade.

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